«Je suis. Mais je ne suis pas en possession de moi-même. Telle est l'origine de notre devenir». (Ernst Bloch) Com o advento do estruturalismo e das ciências sociais e humanas, o conceito de essência ou natureza do homem tornou-se alvo de críticas desconstrutivistas, embora não tenha sido completamente abandonado pela antropologia filosófica. Este recuo em relação ao estudo filosófico do homem conduziu ao triunfo do pensamento conformista e, se quisermos mudar qualitativamente a sociedade estabelecida, não podemos abdicar do conceito de natureza do homem. É necessário retomá-lo de novo e demarcá-lo das abordagens das demais teorias clássicas do homem.
A este propósito a história do desenvolvimento do pensamento de Karl Marx é exemplar. Althusser demonstrou de modo inteligente que Marx, a partir de 1845, «rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência do homem». O desenvolvimento do pensamento científico-filosófico de Marx é atravessado por uma ruptura epistemológica que o divide em dois grandes períodos essenciais: o período ainda ideológico de juventude, anterior à ruptura de 1845, e o período científico, posterior à ruptura de 1845. O primeiro período, sobretudo a sua segunda etapa (1842-1845), é dominado pela problemática teórica do humanismo, em particular do humanismo comunitário de Feuerbach. Com efeito, o homem é pensado como ser comunitário, ou seja, como um ser que só se realiza teórica e praticamente nas relações humanas universais, tanto com os homens como com os seus objectos. É nesta essência do homem que se fundam a história e a política. Assim, a história mais não é que a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem verdadeiro no homem alienado: «Nos produtos alienados do seu trabalho (mercadorias, Estado, religião), o homem, sem o saber, realiza a essência do homem. Esta perda do homem, que produz a história e o homem, supõe efectivamente uma essência preexistente definida. No final da história, este homem, transformado em objectividade inumana, não terá mais do que tomar, como sujeito, a sua própria essência alienada na propriedade, na religião e no Estado, para vir a ser o homem total, o homem verdadeiro» (Althusser).
Ora, se a história mais não é do que a alienação do homem, ou seja, a exteriorização da sua essência nos produtos alienados do seu trabalho, a acção política deverá ser uma reapropriação prática da sua essência pelo homem: «Com efeito, o Estado, como a religião, é efectivamente o homem, mas o homem na sua desapossessão; o homem está cindido entre o cidadão (Estado) e o homem civil, duas abstracções. No céu do Estado, nos "direitos do cidadão", o homem vive imaginariamente a comunidade humana de que está privado na terra dos "direitos do homem". A revolução não será mais somente política (reforma liberal racional do Estado), mas também "humana" ("comunista"), para restituir ao homem a sua natureza alienada na forma fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses. Por conseguinte, esta revolução prática será a obra comum da filosofia e do proletariado porquanto, na filosofia, o homem é afirmado teoricamente; no proletariado, ele é negado praticamente. A penetração da filosofia no proletariado será a revolta consciente da afirmação contra a sua própria negação, a revolta do homem contra as suas condições inumanas. Então, o proletariado negará a sua própria negação e tomará posse de si mesmo no comunismo. A revolução é a prática mesma da lógica imanente à alienação: é o momento em que a critica, até aí desarmada, reconhece as suas armas no proletariado. Ela dá ao proletariado a teoria do que ele é: o proletariado dá-lhe, por sua vez, a sua força armada, uma só e mesma força em que cada um se alia como que consigo mesmo. A aliança revolucionária do proletariado e da filosofia é, pois, ainda aqui, selada na essência do homem» (Althusser).
Após a ruptura de 1845, Marx não só rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência do homem, como também parece romper radicalmente com toda a antropologia filosófica ou todo o humanismo teórico. Os três aspectos indissociáveis desta ruptura são os seguintes: 1) formação de uma teoria da história e da política fundada em conceitos radicalmente novos, tais como os conceitos de formação social, modo de produção, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determinação em última instância pela economia, determinação específica dos outros níveis, etc.; 2) crítica radical das pretensões teóricas de todo o humanismo filosófico; e 3) definição do humanismo como ideologia. A essência do homem criticada (2) é definida como ideologia (3), categoria esta que pertence à nova teoria da sociedade e da história (1). Esta ruptura é, num só e mesmo acto epistemológico, a rejeição da problemática da filosofia anterior e a adopção de uma problemática nova, desta vez "científica". A filosofia anterior idealista repousava, em todos os seus domínios e desenvolvimentos, sobre uma problemática da natureza humana, constituída por um sistema coerente de conceitos precisos, estreitamente articulados uns aos outros. Os seus dois postulados complementares e indissociáveis, analisados por Marx na sua VI Tese sobre Feuerbach, precisam que existe uma essência universal do homem (1), a qual é o atributo dos indivíduos tomados isoladamente, que são os seus sujeitos reais (2).
Althusser demonstrou que a sua existência e a sua unidade pressupõem toda uma concepção empirista-idealista do mundo: «Para que a essência do homem seja atributo universal, é preciso, com efeito, que os sujeitos concretos existam como dados absolutos: o que implica um empirismo do sujeito. Para que esses indivíduos empíricos sejam homens, é preciso que tragam cada um em si toda a essência humana, se não de facto, ao menos de direito: o que implica, pois, o idealismo da essência. O idealismo do sujeito implica, pois, o idealismo da essência e reciprocamente». É certo que esta relação se pode inverter no seu contrário (empirismo do conceito/idealismo do sujeito), mas esta inversão somente diz respeito à estrutura fundamental dessa problemática, que permanece fixa. Isto significa que os termos em presença e a sua relação só variam no interior de uma estrutura-tipo invariante, que constitui a própria problemática: «a um idealismo da essência corresponde sempre um empirismo do sujeito ou a um idealismo do sujeito, um empirismo da essência» (Althusser). Quando rejeitou a essência do homem como fundamento teórico da teoria da história e da política, Marx rejeita igualmente todo o sistema orgânico de postulados da problemática antropológico-humanista anterior a si. Os antigos conceitos são não só recusados como também substituídos por conceitos novos: «Com efeito, Marx funda uma nova problemática, um novo modo sistemático de apresentar as questões ao mundo, novos princípios e um novo método» (Althusser). Esta descoberta científica de Marx, que está contida imediatamente na teoria do "materialismo histórico", propõe uma nova teoria da história das sociedades humanas e uma nova concepção da filosofia, mais precisamente uma teoria materialista dialéctico-histórica dos diferentes níveis específicos da prática humana nas suas articulações próprias, fundadas nas articulações específicas da unidade da sociedade humana.
Se Marx — ou para sermos mais precisos, se Althusser — rompe radicalmente com toda a teoria que funda a história e a política numa essência humana preexistente definida, e se a substitui por uma nova teoria da história e por uma nova prática da filosofia, cabe-nos o direito legítimo de perguntar se ainda é possível uma teoria do homem, isto é, uma Antropologia. Parece-nos que nem Marx nem Althusser negaram completamente a possibilidade de uma antropologia, desde que não se caia nas armadilhas de uma problemática do humanismo da essência. Como se sabe, Marx afirmou, em O Capital, que o seu «método analítico não parte do homem, mas do período social economicamente dado...». Após os seus "Elementos de Auto-crítica", Althusser escreveu, na sua resposta a John Lewis, que «"o homem" é um mito da ideologia burguesa: o Marxismo-Leninismo não pode partir do "homem". "Parte do período social economicamente determinado": e, no termo da sua análise, ele pode "chegar" aos homens reais. Esses são então o ponto de chegada de uma análise que parte das relações sociais do modo de produção existente, das relações de classe e da luta de classes. Esses homens são radicalmente diferentes do "homem" da ideologia burguesa». E Althusser acrescenta: «"A sociedade não é composta de indivíduos", diz Marx. Efectivamente: a sociedade não é uma "composição", uma "adição" de indivíduos; o que a constitui é o sistema das suas relações sociais em que vivem, trabalham e lutam os seus indivíduos. Efectivamente: a sociedade não é composta de indivíduos em geral, quaisquer, os quais seriam outros tantos exemplares do "homem"; porque cada sociedade tem os seus indivíduos, histórica e socialmente determinados. O indivíduo-escravo não é o indivíduo-servo nem o indivíduo-proletário, e o mesmo se passa quanto aos indivíduos de cada classe dominante correspondente. No mesmo sentido, mesmo uma classe não é "composta" de quaisquer indivíduos: cada classe tem os seus indivíduos, modelados na sua individualidade pelas suas condições de vida, de trabalho, de exploração e de luta — pelas relações da luta de classes. Na sua massa, os homens reais são aquilo que as condições de classe deles fazem. Essas condições não dependem da "natureza" burguesa do "homem": a liberdade. Pelo contrário, as suas liberdades, incluindo as formas e os limites dessas liberdades, dependem dessas condições». Este texto não deixa margem para dúvidas: a teoria da subjectividade e da individualidade, ou seja, a antropologia é possível, desde que se fundamente na teoria do "materialismo histórico". Althusser, embora crítico intransigente do humanismo da essência, está, no entanto, de acordo com Georg Luckács quando este escreve que «para o marxismo não há, pois, em última análise, ciência jurídica, economia política, história, etc., autónomas: há somente uma ciência, histórica e dialéctica, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade». Isto quer dizer que a antropologia só é possível enquanto teoria regional (e dependente) da teoria do materialismo histórico, ou seja, da ciência da história das sociedades humanas. Até mesmo certos antropólogos de orientação marxista, como por exemplo J. Copans, S. Tornay, M. Godelier ou C. Backès-Clément, que criticam pontualmente certas teses defendidas por Althusser, reconhecem que o projecto de uma antropologia geral deverá defini-la como a «ciência única das formações sociais e históricas». Com a definição da antropologia como ciência do desenvolvimento das sociedades humanas, os marxistas pretendem salvaguardar a sua problemática teórica de toda e qualquer investida por parte da problemática com a qual Marx tinha (supostamente) rompido em 1845. Quando responde às críticas de John Lewis, Althusser aproveita a ocasião para criticar severamente a antropologia de Sartre e não só. Após Marx, Nietzsche e Freud, tem-se vindo a assistir à consumação da ruína do essencialismo metafísico enquanto corrente do pensamento filosófico. Um dos seus momentos, e não o menos importante, foi o êxito das várias correntes do existencialismo, em particular do existencialismo ateu de Sartre. Na verdade, Jean-Paul Sartre teve sempre como projecto fundamental lançar as bases para a formulação da antropologia dos tempos modernos. Como pretendia realmente romper com a sociedade burguesa e emancipar o homem, Sartre teve de dialogar com o marxismo, que ocupava precisamente esse terreno. Desse diálogo resultou a sua conversão ao marxismo. Para Sartre, o marxismo é «a única antropologia possível, que deve ser simultaneamente histórica e estrutural. É a única, ao mesmo tempo, que toma o homem na sua totalidade, isto é, a partir da materialidade da sua condição». Contudo, o marxismo congelado apresenta uma falha: «Ele perdeu por completo o sentido do que é um homem», empobrecendo e desumanizando assim a sua própria concepção da história e da dialéctica, ou seja, «o marxismo tende a eliminar o questionador da sua investigação e a fazer do questionado o objecto de um Saber absoluto». É, por isso, que «nós podemos, ao mesmo tempo, declarar-nos em profundo acordo com a filosofia marxista e manter, provisoriamente, a autonomia da ideologia existencial». Ora, se há no próprio âmago da filosofia marxista «o lugar vago de uma antropologia concreta», a função do existencialismo será a de «reconquistar o homem no interior do marxismo».
Quando no seu empreendimento filosófico se depara com o essencialismo metafísico, Sartre rejeita-o e, na "Crítica da Razão Dialéctica", afirma que é impossível «elaborar a definição de algo como uma essência humana, ou seja, um conjunto fixo de determinações a partir das quais seria possível consignar um lugar definido aos objectos estudados». Deste modo, Sartre vê-se impossibilitado de ultrapassar o essencialismo metafísico. Em vez de o superar, opõe-se-lhe no âmbito do seu próprio terreno, o da filosofia especulativa. Assim, à ideia de que o homem em geral se define por uma essência humana abstracta, opõe a simples inexistência dessa essência abstracta. Esta tese não o liberta da concepção do homem em geral, mas leva-o antes a defini-lo através da ausência de uma essência preestabelecida, ou seja, por uma liberdade abstracta, ontologicamente constitutiva da realidade humana. Isto significa que toda a sua antropologia é construída à base de entidades abstractas, tais como o em-si, o para-si, o homem, o outro, a liberdade, não passando as suas análises concretas de partes justificativas da construção filosófica. Como não reconhece claramente a excentricidade posicional da essência humana real, Sartre remete todos os problemas inerentes à mudança social para a escolha, para o projecto livre do homem, ou seja, do indivíduo em geral, concebido enquanto suporte e origem última de todas as relações sociais. Quando afirma que «o homem não é‚ senão aquilo que faz de si mesmo», Sartre mais não faz do que conceder a prioridade ontológica essencial ao indivíduo em geral relativamente às relações sociais. E a tese fundamental da "Crítica da Razão Dialéctica" continua a ser a mesma. Efectivamente, escreve Sartre, «o único fundamento concreto da dialéctica histórica é a estrutura dialéctica da acção individual», ou seja, os únicos agentes dessa dialéctica histórica «são os homens individuais enquanto executantes de livres actividades». Quer dizer que o homem, enquanto indivíduo livre, é obrigatoriamente considerado como factor da história, e simultaneamente da sua própria história. Dado que não reconhece os homens individuais como sendo um produto prévio das relações sociais, Sartre, que mais não faz do que considerá-los como sendo anteriores às relações sociais, acaba por psicologizar e subjectivar invencivelmente todas as coordenadas de base da antropologia, impedindo deste modo a constituição de uma antropologia verdadeiramente científica e filosófica.
O desenvolvimento de um certo número de ciências humanas no âmbito do seu positivismo acarretou necessariamente a dissolução da vasta influência do existencialismo. Assim, a psicanálise, a linguística e a etnologia mostraram que a antropologia não pode encontrar outro fundamento que não seja nas estruturas objectivas, impessoais e inconscientes que subentendem e informam toda a existência humana. É precisamente esta a ideia central que Lévi-Strauss opõe a Sartre quando, no último capítulo de "O Pensamento Selvagem", escreve que «quem começa por se instalar nas pretensas evidências do eu nunca mais de lá sai». E a sua crítica a Sartre continua nestes termos: «Entrincheirado no individualismo e no empirismo, um Cogito — que quer ser ingénuo e primitivo — perde-se nos impasses da psicologia social. Porque é evidente que as situações a partir das quais Sartre procura definir as condições formais da realidade social: greve, combates de boxe, desafio de futebol, bicha de espera numa paragem de autocarro, não passam todas senão de incidentes secundários da vida em sociedade; elas não podem, portanto, servir para desvendar os seus fundamentos (...). Ao mesmo tempo que rendemos homenagem à fenomenologia sartriana, não esperamos encontrar nela senão um ponto de chegada, nunca um ponto de partida». Apesar da sua crítica severa mas justa à fenomenologia sartriana, Lévi-Strauss não consegue superar a antropologia e o humanismo filosóficos através de uma concepção rigorosa das ciências humanas, uma vez que a sua leitura se baseia implícita ou explicitamente numa concepção geral do homem que se distingue sobretudo por uma ausência: a estrutura das relações de produção, no que diz respeito ao contributo de Marx. É certo que Lévi-Strauss clama por inúmeras vezes a importância que dedica ao «incontestável primado das infra-estruturas», mas, quando as reduz aos dados geográficos, apercebemo-nos imediatamente o quão afastado está da economia política, no referente à sua acepção marxista. Lévi-Strauss é assim levado a substituir as infra-estruturas económicas, colocadas entre parêntesis, por outras, que irão preencher por completo o papel de estruturas de base. Estas outras estruturas mais não são do que as estruturas linguísticas que foram promovidas a essa função pela antropologia estrutural. A partir do contributo das ciências linguísticas para o estudo dos factos culturais, e mediante uma constante passagem sub-reptícia ao sentido generalizado em que, por oposição ao natural, o termo cultural pretende designar tudo o que é social, a antropologia estrutural é levada a construir, na base dessas ciências, a ciência-piloto para o conjunto das ciências humanas. Deste modo, apresenta a linguagem como sendo a essência de tudo o que é humano. Com efeito, Lévi-Strauss afirma inequivocamente que «a linguagem é ao mesmo tempo o facto cultural por excelência (que distingue o homem do animal) e aquele por intermédio do qual todas as formas de vida social se estabelecem e perpetuam». Dado que têm por contextura a linguagem, as instituições sociais e as condutas individuais são apenas «modalidades temporais das leis universais em que consiste a actividade inconsciente do espírito». Ao afirmar que as leis universais do espírito humano orientam e governam o mundo, Lévi-Strauss nada mais faz do que modernizar a velha tradição do idealismo sociológico francês — a do comtismo por oposição ao marxismo, sem lograr no entanto uma vitória contundente sobre o humanismo existencialista.
A fenomenologia sartriana e a antropologia estrutural são, portanto, duas abordagens antropológicas literalmente opostas, mas, a um nível bastante mais profundo, perfeitamente análogas. Sartre, ao defender a prioridade ontológica essencial do indivíduo relativamente às relações sociais, e Lévi-Strauss, ao afirmar axiomaticamente que a linguagem impregna todas as categorias sociais, nada podendo existir sem ela na ordem dos fenómenos sociais, remetem-nos, pelo menos parcialmente, para aquém da revolução teórica operada por Marx. Como não conseguiram ultrapassar real e cientificamente o essencialismo metafísico, ambos permaneceram prisioneiros de uma problemática antropológica tradicional e sobretudo de um conceito metafísico, não dialéctico e não histórico, de essência humana, claramente desmistificado por Marx na VI Tese sobre Feuerbach, onde se diz que a natureza humana é «o conjunto das relações sociais». A partir desse momento, qualquer teoria antropológica que se pretenda cientifica deve, se não quiser ser tratada como especulativa e abstracta, substituir a concepção pré-dialéctica de essência humana por uma nova concepção dialéctica e histórica, sem no entanto procurar reduzi-la a um único traço fixo. Com efeito, o que desaparece hoje não é, de forma alguma, a essência humana, mas sim a forma ideológica mistificada sob a qual esta era apresentada. O essencialismo metafísico afirmava que os indivíduos eram exemplos singulares do homem em geral, cuja essência era definida por um conjunto de propriedades universais e imutáveis, possuindo em si mesmas a forma psicológica, propriedades naturais ou sobrenaturais mas, em todo o caso, não históricas. Ou seja, o essencialismo metafísico mais não é do que uma teoria de uma essência humana abstracta, espontaneamente inerente ao indivíduo isolado. Marx rompeu radicalmente com uma tal problemática filosófico-antropológica: ao fazê-lo tornou possível um conhecimento genuinamente científico e filosófico do homem. Contudo, se a antropologia pretende abarcar a totalidade do homem, procurando implicitamente o conhecimento do ser da realidade humana, o conceito marxista de essência humana, enquanto conjunto das relações sociais, apresenta-se como insuficiente, uma vez que escamoteia a complexidade da organização humana. Althusser e, de um modo geral, os marxistas dizem, e com toda a razão, que cada sociedade ou cada classe social possui os seus próprios indivíduos reais, mas esquecem-se de acrescentar que esses indivíduos foram modelados pelo seu meio social porque os seus cérebros são dotados geneticamente de uma organização morfológica aberta às instruções do meio exterior. Assim, os indivíduos sociais são aqueles que já trazem, na estrutura fina dos seus cérebros, a marca cultural da sua sociedade e/ou da sua classe social. Tal como o modelo marxista ortodoxo, a maior parte dos modelos antropológicos, com excepção dos de Max Scheler, H. Plessner, A. Portmann, Arnold Gehlen e Herbert Marcuse, nem sempre levam em conta a complexidade da natureza humana, mesmo que, como os de Sartre ou de Lévi-Strauss, reclamem o conhecimento da totalidade do homem. Convém retomar a antropologia a partir de baixo, representada por A. Gehlen, H. Plessner ou A. Portmann, que procura apreender a essência do homem a partir de uma reflexão vigorosa da biologia moderna e não somente a partir das chamadas ciências humanas que demoliram a noção de homem, e ser céptico em relação a uma antropologia a partir de cima, onde se poderia incluir a antropologia estrutural, a antropologia existencial, a antropologia dialogal (M. Buber, F. Ebner) e a antropologia cultural (Ernst Cassirer, E. Rothacker, M. Landmann, H. J. Schoeps). Com efeito, na medida em que conhecemos o ser humano, conhecemo-lo como interrogação, como liberdade e abertura. Como dizem os teólogos: o homem é mistério. Se, como diz H. Plessner, «somos, mas não nos possuímos», então a consequência desta condição humana foi claramente inferida por Ernst Bloch: «Essa a razão por que não fazemos mais que nos transformar». A nova antropologia dialéctica, portanto, negativa, deve ser simultaneamente científica e filosófica no sentido estabelecido pelo Jovem-Marx, muito diferente daquele apresentado por Althusser: a verdadeira teoria do Homem não pretende liquidar a humanidade, apresentando o "enigma resolvido" do homem em termos de estruturas objectivas, tal como pretendiam Lévi-Strauss e os estruturalistas, incluindo Althusser e Foucault, mas sonhar com o futuro do homem novo. Sem a consciência antecipante, aquela que considera uma vida social futura ainda-não-existente, alicerçada na utopia concreta, não podemos romper com o nosso tempo inumano e ajudar a construir um mundo melhor.
J Francisco Saraiva de Sousa
6 comentários:
Os autores citados no último parágrafo já foram analisados noutros posts, bem como outros autores. Por isso, abstive-me de os desenvolver, apesar de ter estabelecido alguns links.
A antropologia de Ernst Bloch será analisada num próximo post antes de ir de férias.
O mundo luso é deveras estranho e esta estranheza só pode ser vista à luz da neuropatologia... Infelizmente, não há uma psicologia portuguesa mas apenas uma psicopatologia lusa. :(
Francisco, vou ler o seu texto com muita atenção, pois quero aprofundar o meu contato Althusser.
Marx é um autor sempre atual. Nunca se deve deixar de o ler.
Interessante a sua frase:
"não há uma psicologia portuguesa mas apenas uma psicopatologia lusa".
O mesmo pode ser dito sobre o Brasil. E aqui as psicopatologias tupiniquins são infinitas.
Olá André
Althusser é deveras interessante e marcou a minha leitura de Marx. Contudo, ao rejeitar as obras de juventude de Marx, Althusser ficou impossibilitado de transformar o mundo e o homem: a política perdeu sentido... Além disso, leu os Manuscritos de 84 de modo muito redutor, esquecendo a dialéctica e a natureza...
Caro Francisco Saraiva de Sousa
É sempre deveras estimulantes ler as suas incursões em matérias de elevado grau de complexidade.
Cada disciplina, cada escola de ideias, cria os seus métodos de análise autónomos, fixa os seus postulados e desenvolve as suas proposições derivadas ou argumentos. É difícil os argumentos convergirem quando confrontamos escolas diferentes, precisamente por os premissas básicas, que delimitam os conceitos (ou as acepções) fundamentais podem conter já os germens da diferença. A propósito, deixo um pequeno desafio, bem nais simples do que o conceito de homem. Apenas a palavra homem.
Votos de boas férias, se for o caso. Ou de continuação de bom trabalho, no caso contrário.
Caro António Chaves Ferrão
O seu exercício gramatical é deveras interessante (referi-me ao seu post sobre a palavra homem) e já existem estudos gramaticais comparativos: a palavra "homem" é usada entre os selvagens para designar o seu grupo por oposição aos outros, os não-homens, antihomens ou simplesmente inimigos. Tudo depende em última análise do sistema de classificação.
Hoje em dia as férias não são incompatíveis com a actividade mediada por computador. Porém, no próximo mês, é provável que a produção diminua substancialmente. Logo se vê a minha disponibilidade... :)
Abraço
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