sábado, 20 de agosto de 2011

António Nobre: A Solidão na Era do Zé-Ninguém


Porto: 1867-1900
Vaidade, Tudo Vaidade!


Vaidade, meu amor, tudo vaidade!
Ouve: quando eu, um dia, for alguém, 
Tuas amigas ter-te-ão amizade, 
(Se isso é amizade) mais do que, hoje, têm. 

Vaidade é o luxo, a gloria, a caridade, 
Tudo vaidade! E, se pensares bem, 
Verás, perdoa-me esta crueldade, 
Que é uma vaidade o amor de tua mãe... 

Vaidade! Um dia, foi-se-me a Fortuna 
E eu vi-me só no mar com minha escuna, 
E ninguém me valeu na tempestade! 

Hoje, já voltam com seu ar composto, 
Mas eu, vê lá! eu volto-lhes o rosto... 
E isto em mim não será uma vaidade? (António Nobre)


Uma das funções da Filosofia é apreender o espírito da época em que vivemos e procurar dar-lhe uma forma orientadora e esclarecida. Porém, a nossa época é avessa à Filosofia, à Arte e à Religião: a figura do zé-ninguém tomou conta dos palcos públicos, onde faz ouvir o ruído da sua voz. Aquilo que tem sido enaltecido nas crónicas de Fernão Lopes, a sua concepção popular da história, é precisamente aquilo que deve ser condenado: a turba da "arraia meúda" não faz história; pelo contrário, liquida a história. As palavras eloquentes de Hernâni Cidade - «Fernão Lopes é o primeiro (cronista europeu) que faz do povo uma das personagens principais do imenso drama que é a história de uma Nação» - devem ser ponderadas e, substancialmente, corrigidas: a personagem anónima que é o povo faz da história uma tragédia que condena a aventura humana sobre a Terra à catástrofe. Mas o que começou por ser uma tragédia é hoje uma farsa: a partir do momento em que o zé-ninguém teve acesso à palavra, o mundo civilizado tal como o conhecemos através da literatura começou a declinar e a regredir. A cultura superior foi sendo alvo dos ataques do zé-ninguém que, pelo facto de se julgar igual aos seus criadores, começou a transformar as suas flatulências em "pensamentos" tão mal-cheirosos que mergulharam o mundo na sua imensa merda. A História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito - uma recolha de doze histórias contadas por sobreviventes portugueses de naufrágios nos séculos XVI e XVII - tem o mérito de ter introduzido a tragédia no cerne da história de Portugal: a história de Portugal é, efectivamente, a história de uma tragédia contínua, em que as forças individuais e criativas são bloqueadas ou mesmo liquidadas pelas forças colectivas da mediocridade nacional. A poética de António Nobre é, ao contrário da gaia ciência de Nietzsche, uma poética da melancolia que dá expressão ao sentimento de exílio vivido e sentido pelos portugueses criativos. A tristeza é o estado de alma de todos nós que ousamos pensar mundos novos, sabendo que seremos alvo da inveja patológica da "arraia meúda". Portugal é um túmulo para as forças que protagonizam a inteligência e a imaginação criadora: a "arraia meúda" não tolera a DIFERENÇA e, sempre que esta se manifesta na obra de um português, ela apressa-se a sepultá-los, ao autor e à sua obra. (O zé-ninguém nega as diferenças sexuais, as diferenças biológicas, as diferenças culturais, as diferenças sociais, enfim as diferenças entre o homem e os animais, sem se aperceber que esta negação alucinada lhe retira a humanidade; ele nega a diferença para afirmar a sua mediocridade. A existência do zé-ninguém é um crime contra a humanidade!) Com o 25 de Abril, a tragédia que é a história de Portugal converteu-se em farsa, cuja essência foi sempre-já explicitada por Gil Vicente: tudo aquilo que tinha sido construído com esforço e preservado do esquecimento pelos intelectuais comprometidos na luta contra o fascismo foi destruído, quase de um dia para o outro, pelas forças amorfas que bloqueiam o futuro de Portugal. O reinado do zé-ninguém legou-nos a triste realidade que vivemos neste momento de desagregação da Europa: destruição da economia, liquidação da educação, degradação da justiça, produção em série de má-arte, feudalização da comunicação social, liquidação da política, manipulação da opinião pública, corrupção da consciência, falta de qualidade do jornalismo, corrupção galopante, agravamento das desigualdades sociais e das assimetrias regionais, perda da vergonha e da honra, abolição da cultura superior, enfim Portugal regrediu de tal modo em todas as esferas da sociedade, da personalidade e do mundo da vida que já não tem reservas cognitivas para inverter esse rumo catastrófico. Em nome da IGUALDADE que uniformiza tudo e todos a partir de baixo, a tragédia transformou-se em farsa que mergulhou o país numa profunda crise-caos mental: a loucura alucinada do zé-ninguém tornou-se ubíqua, omnipresente, omnisciente e omnipotente. Portugal é hoje um hospício de alienados mentais. Há uma frase de Teixeira de Pascoaes que resume o significado-resultado da liquidação da história e da política levada a cabo pelo zé-ninguém: O destino do homem não é ser um mero antropóide, prisioneiro da "actividade vegetal" - "nascer para comer e comer para morrer" - num planeta convertido em "refeitório e cemitério". A esperança que Teixeira de Pascoaes depositava no destino de Portugal foi gorada aquando da ascensão do zé-ninguém, o antropóide que nasce para comer e come para morrer neste imenso refeitório-cemitério gerido pelos economistas neoliberais e afins. Porém, apesar de preferir a intuição em vez da razão discursiva, Teixeira de Pascoaes opta pela segunda quando elabora a sua teoria do homem universal: a tentação totalitária inerente ao conceito manifesta-se na sua universalidade que não tolera a diferença. É certo que é impossível pensar sem identificar, mas o pensamento dialéctico, ao virar o conceito contra o conceito, pode evitar a realização do sonho capitalista da grande unificação global, fazendo estalar a diferença - o elemento rebelde - no seio da própria identidade. Os portugueses perderam a capacidade de se exceder: Portugal Mentira-Farsa perdeu o rumo e, se a ditadura do zé-ninguém não for quebrada, não tem futuro. Marx só cometeu um grande erro: ter integrado no seio do marxismo uma peça que não lhe pertence, precisamente o terrível reino da igualdade - que nivela por baixo - chamado comunismo. A luta de classes deve ser compatibilizada com a circulação das elites de Vilfredo Pareto e, de certo modo, o próprio Marx levou a cabo essa tarefa teórica quando escreveu O 18 de Brumário: as análises concretas de Marx inscrevem-se na complexidade da trama das contradições sociais e das conjunturas políticas, sem reduzir tudo a um confronto entre duas classes sociais homogéneas e puras. A burocracia como governo de ninguém - isto é, do zé-ninguém - foi pensada por Marx nestes termos: «A centralização política de que a sociedade moderna tem necessidade só pode surgir das ruínas da máquina governamental, militar e burocrática, forjada para lutar contra o feudalismo. A destruição do aparelho de Estado não porá em perigo a centralização. A burocracia não é mais que a forma baixa e brutal duma centralização que ainda não se libertou do seu contrário, o feudalismo». Hoje, neste tempo sombrio e indigente em que o neoliberalismo retoma colorações feudais e relações de vassalagem no quadro da União Europeia, tendo Angela Merkel no lugar de Carlos Magno, a dialéctica volta-se para o pensamento biológico, não para pensar uma base biológica para o socialismo, mas para animar a revolta da natureza contra o sonho totalitário do capitalismo. Onde há resistência, oposição contra o sistema em movimento, há dialéctica: a dialéctica odeia a passividade social-democrata que tem sacrificado o destino da humanidade no altar da economia de mercado, colocando o Estado e todos os seus aparelhos repressivos e ideológicos ao serviço do capital e do seu processo de acumulação. O carácter de classe do Estado revela-se na natureza das actuais políticas de austeridade: o Estado é usado pelo grande capital para espoliar tudo e todos. Os instalados da Direita e da pseudo-Esquerda socialista ou social-democrata - homens sem mérito e sem dignidade, mentirosos compulsivos que sonham com reinos medievais remotos - atribuem ao sovietismo aquilo que pertence, por natureza, ao capitalismo: o totalitarismo brutal que condena a população à prisão da necessidade, lá onde ela nunca poderá ser verdadeiramente livre. Estaline até pode ter exagerado no uso da força para industrializar a URSS, mas a sua inteligência subtil e a sua sensibilidade estética envergonham a miséria mental e a ignorância activa dos actuais lideres europeus que nunca leram ou produziram uma obra digna de mérito; as bestas irracionais ditas democráticas são aniquiladores da cultura e assassinos mundiais. Estaline sujou as mãos, mas nem por isso deixou de ser um intelectual brilhante que soube defender a autonomia da linguagem da redução económica e um zeloso guardador do lugar da Grande Tradição: ele não jogou a vida da população mundial nas bolsas, como fazem os malditos especuladores. Basta de mentiras: os ditadores são os políticos medíocres e oportunistas que temos à frente dos destinos do mundo. A missão da dialéctica é incendiar o sistema, levando os homens a lutar uns contra os outros, porque é à chama dessa luta incendiária que se forja o futuro. A Grande Mentira do mundo livre deve ser lançada à fogueira: capitalismo, liberdade e democracia são incompatíveis. O capitalismo é um imenso livro negro, cujas páginas foram escritas com o sangue vital das suas vítimas. O capitalismo é morte encarnada que faz da nossa vida breve um inferno.


J Francisco Saraiva de Sousa

1 comentário:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, introduzi alguns esclarecimentos no texto.