sábado, 1 de outubro de 2011

História da Arte Militar Moçambicana?

Mapa de Moçambique
«Desde a resistência do Monomotapa à insurreição do Báruè, a história moçambicana orgulha-se dos gloriosos feitos das massas na luta pela defesa da liberdade e da independência. A derrota da histórica resistência do Povo deve-se exclusivamente à traição das classes feudais no poder, à sua cobiça e ambição, que permitiram que o inimigo dividisse o Povo e o conquistasse.» (Samora Machel)

«Os portugueses fixaram-se no nosso País em 1505 e só em 1920 terminou a resistência armada anticolonial no período pré-Frelimo. Qual foi, entre esses dois acontecimentos, a organização militar dos Moçambicanos? E por que perdemos nas lutas contra o colonizador? O tema deste livro é a tentativa de resposta a essas duas perguntas.» (Carlos Serra)

Afinal, tenho alguns livros sobre a História de Moçambique, entre os quais este que descobri hoje: Para a História da Arte Militar Moçambicana (1505-1920) de Carlos Serra. O autor, ele próprio descendente de colonizadores, parece abraçar a concepção marxista da História, mas falha quando aplica a Moçambique um esquema de desenvolvimento histórico que só ocorreu na Europa. Tal como Samora Machel, Carlos Serra tenta aplicar as categorias ocidentais para reconstruir a história de uma zona primitiva do mundo que nem sequer produziu os seus próprios documentos escritos: o resultado deste empreendimento ideológico levado a cabo em nome da construção do socialismo em Moçambique é a falsificação do passado dos diversos povos que ocupavam o território que os portugueses colonizaram, dando-lhe uma identidade exterior que não correspondia à sua diversidade étnico-cultural. Moçambique é uma invenção dos portugueses: o que quer dizer que não há uma história pré-colonial de Moçambique, mas apenas a história da sua construção colonial. Antes da chegada dos portugueses às costas orientais africanas, havia muita coisa, mas não havia essa entidade geo-histórica e política a que chamamos Moçambique. Se os portugueses não tivessem vencido a resistência dos povos indígenas que ocupavam os territórios colonizados, não teria havido Moçambique: Carlos Serra não teria nascido para forjar a história imaginária da arte militar "moçambicana". E, se não tivessem sido os portugueses a colonizar esse território, teriam sido os ingleses, os franceses, os alemães ou os holandeses. A preferência demonstrada pelos autores não-portugueses revela tão-somente o ódio que Carlos Serra nutre pelos portugueses: a actual configuração territorial de Moçambique resultou de uma negociação entre as potências europeias com ambições coloniais. O projecto português de ligar Angola a Moçambique foi bloqueado, não pela resistência dos povos africanos, mas pela vitória obtida pelos ingleses nessas negociações. A falsificação ideológica operada por Carlos Serra privou Moçambique - já independente - da sua história colonial, isolando-o do mundo civilizado e desenvolvido. Em nome de uma ideologia ocidental que lhe foi vendida pelo poder soviético, Moçambique destruiu todas as suas infra-estruturas e superstruturas coloniais para construir o quê?, o socialismo? Alucinação colectiva! Falsificar a história de povos sem história não traz a felicidade desses povos, nem sequer garante a sua entrada na via do desenvolvimento. Os portugueses não se fixaram num "País" chamado Moçambique: construíram esse país lutando não contra o "Povo" - afinal que povo era esse? - mas contra diversos povos ou organizações primitivas que desconheciam o significado da luta armada das "massas" em defesa da "liberdade" e da "independência". Tanto Samora Machel como Carlos Serra foram colonizados mentalmente pelos portugueses e depois pelos soviéticos, chegando ao ponto de utilizar as nossas categorias - aquelas que reflectem o desenvolvimento da Europa - contra o nosso próprio domínio. O colonizado pensa como o colonizador, cujo domínio deseja imitar oprimindo o seu próprio povo.

É provável que o livro de Carlos Serra tenha algum valor histórico, mas a construção ideológica de um Povo Místico que luta contra o colonialismo português desde 1505 e o seu ódio pelos portugueses não me permitem descobrir e identificar esse valor. Carlos Serra não gosta de explicar os acontecimentos que narra, preferindo sonhar com o futuro socialista de Moçambique - a sua ilusão do futuro! - sem se aperceber que se tratava de outra forma de colonização ocidental. Porém, quando aborda as grandes causas da derrota da chamada resistência moçambicana, faz afirmações hilariantes, descortinando quatro causas fundamentais: as contradições etno-políticas (1), a inexistência de uma concepção de luta prolongada (2), a carência de espingardas modernas e de artilharia (3) e a falta de um sistema de abastecimento e transporte (4). Se perdêssemos algum tempo a ponderar cada uma destas causas, chegaríamos facilmente a uma outra visão distinta daquela que Carlos Serra reconstrói ligando entre si factos-cacos pela síntese ideológica e pela hipótese fantasiosa. A primeira grande causa nega a unidade-fantasma do povo moçambicano, o principal protagonista da história imaginária da arte militar moçambicana; as outras três causas que são tudo menos causas efectivas, são a forma escolhida por Carlos Serra para reconhecer o carácter primitivo da organização social dos povos que tentaram resistir à colonização portuguesa. O ódio de Carlos Serra pelos portugueses ofuscou-lhe a mente, privando-o da possibilidade de vislumbrar a formação histórica de Moçambique como uma construção colonial portuguesa, envolvendo diversos protagonistas, não só os colonizadores e os colonizados, mas também a rivalidade entre diversos povos colonizadores, entre os quais os árabes, e as lutas intestinais entre diferentes etnias indígenas. A tentativa desesperada de ligar esta resistência dos povos nativos à luta da Frelimo levou Carlos Serra a encarar toda a história militar de Moçambique à luz da construção de uma sociedade socialista. Marx é invocado para dar guarida à concepção segundo a qual «só através da mais desenvolvida e variada organização social da história humana - a sociedade socialista - se torna possível entender, nas suas particularidades, nos seus limites e nos seus erros, as formas de vida desaparecidas sobre cujos escombros ela se edificou e continua a edificar-se». Carlos Serra não só deforma e desfigura a história de Moçambique, como também presta um mau serviço à teoria marxista da História. Os escritos de Marx sobre o colonialismo não permitem uma tal leitura da história colonial: Marx nunca depositou a sua confiança revolucionária em povos arcaicos e, se fosse vivo em 1962, quando a Frelimo entrou em cena, teria desaprovado o seu terrorismo selvagem. Como é que povos selvagens que nunca conheceram uma história propriamente dita poderiam dar um salto sobre o abismo, transitando magicamente de uma organização social primitiva para uma sociedade livre? E, o que é ainda mais milagroso, sem a ajuda dos colonizadores europeus? Carlos Serra procede com as fontes escritas portuguesas tal como a Frelimo procedeu com os portugueses depois da independência de Moçambique em 1975, apropriando-se dos seus bens - materiais e teóricos - e expulsando-os do território que eles construíram. Diz Carlos Serra que o recurso às fontes portuguesas lhe trouxe algumas servidões, obrigando-o a «descascar as descrições da ideologia que as enfaixava com diferentes níveis, tonalidades e interesses», de modo a tentar saber «onde começava a verdade e terminava a opinião, a ignorância, o conhecimento de outiva, a deturpação ou a apologia». Mas mais adiante reconhece que o colonialismo português não poderia «ter sobrevivido tanto tempo se os Portugueses não tivessem aprendido, década após década, século após século, a conhecer (e, portanto, também a descrever) a nossa realidade, em particular as nossas insuficiências, para nos vencer, manietar e explorar». Enfim, Carlos Serra acusa os colonizadores portugueses - em especial José Botelho (1934-36), autor da magnífica História Militar e Política dos Portugueses em Moçambique, 2 vols. - daquilo que ele próprio fez: a elaboração ideológica e, portanto, falsa de uma história imaginária de Moçambique que, a partir do momento em que expulsa teórica e efectivamente os portugueses da sua construção colonial, sofre, como o decorrer do tempo o demonstrou, uma regressão histórica significativa, estando hoje a tentar resistir à colonização chinesa. Marx sorri no seu túmulo: a expulsão do elemento civilizador que forçava os povos arcaicos a vencer a inércia do seu próprio tempo social entregou-os e devolveu-os ao primitivismo da sua «nobreza avoenga». As infra-estruturas degradaram-se, a património sofreu a usura do tempo e as mentalidades foram reconquistadas pelas mezinhas mágicas. (Os moçambicanos devem zelar pelo património que os portugueses lhes deixaram: a sua memória histórica mora neste património colonial.) A descolonização foi fatal para o futuro de África e, se não operarmos rapidamente uma mudança de perspectivas, os povos africanos - os povos mais débeis da humanidade - estão condenados a sofrer os efeitos destrutivos de um colonialismo terrorista, o chinês.


Anexo: Bem, lendo esta série de posts - dedicada a Um texto de Samora Machel - de Carlos Serra, constato que ele não aprendeu com os erros do passado recente de Moçambique. A desfiguração da História de Moçambique levada a cabo em nome de uma mitologia conceptual não ajuda os moçambicanos a superar as suas dificuldades de desenvolvimento. Carlos Serra ainda não compreendeu que Moçambique é uma construção colonial portuguesa e que, enquanto país independente, só pode sonhar com o futuro se souber preservar a memória do seu passado colonial. Os povos africanos só entraram na rota da civilização graças à acção colonizadora dos europeus: o que quer dizer que rompendo com o seu passado colonial se colocam fora do movimento da história, tornando-se presas fáceis da expansão chinesa ou islâmica. (Carlos Serra está a escrever outra série hilariante dedicada à Teoria do conhecimento de Samora Machel. Escusado será dizer que todos nós filósofos profissionais nos fartamos de rir!)


J Francisco Saraiva de Sousa 

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, está concluído. Não sei se farei alguma melhoria ou acrescento: o essencial foi dito.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, o meu blog aparece em determinados sites com a bandeira dos USA - american blog.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este texto teve uma ampla difusão, tendo sido editado no blog Moçambique para Todos.

Florêncio disse...

Prezado Francisco,
Ciclicamente, Carlos Serra volta, morbidamente, ao eudeusamente de Samora, intoxicando seus acólitos com “mais do mesmo”.
Samora foi sem dúvida, um homem com carisma, líder, intuitivo. Porém, como governante /estadista destruiu a economia, ordenou execuções públicas sem julgamento, promulgou a “lei do chamboco” (da chicotada) e tantas mais barbaridades: À luz da actual Constituição de Moçambique, foi um criminoso!
Carlos Serra vê em Samora o Pastor: “olha para o que eu digo e não para o que eu faço!” e, entretem-se com exercícios de “masturbação mental” sustentados em slogans do regime.

Sobre nações africanas, recordo sempre o último Presidente da África do Sul do Apartheid, Johannes Vorster. Aos que defendiam que o poder deveria ser entregue à maioria (negra), Vorster argumentava que a Africa de Sul era um país de minorias: composto de várias nações negras, com território, língua e cultura próprias, e de uma nação branca maioritariamente afrikaner. Isoladamente, em população, nenhuma destas nações era maioritária.

Moçambique é, também, o somatório de quase duas dezenas de nações, com território, língua e cultura muito diferenciadas, ou seja: se antes o solgan colonial dizia que “Moçambique é Moçambique, porque é Portugal”, hoje pode dizer-se, com propriedade, que Moçambique é Moçambique, porque FOI Portugal”. Só um mentecapto não entende esta realidade!
Um abraço.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Prezado Florêncio

Eu pensei que o Carlos Serra tinha melhorado da sua doença, mas, quando li os últimos posts dele, vi que tinha piorado. Sim, de facto, ele envenena... não faz sentido todo esse veneno: o que interessa é libertar o nosso futuro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ui, não gosto da Lei do Chamboco... muito ditatorial.

Abraço