«Durante 200 anos de fecunda elaboração reforma a Europa culta as ciências antigas; cria seis ou sete ciências novas - a anatomia, a filosofia, a química, a mecânica celeste, o cálculo diferencial, a crítica histórica, a geografia; aparecem os Newton, os Descartes, os Bacon, os Leibniz, os Harvey, os Buffon, os Ducange, os Lavoisier, os Vico. Onde está, entre os nomes destes e de outros verdadeiros heróis da epopeia do pensamento, um nome espanhol ou português? Que nome espanhol ou português se liga à descoberta de uma grande lei científica, de um sistema, de um facto capital? A Europa culta engrandeceu-se, subiu sobretudo pela ciência: foi sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos anulámos. A alma moderna morreu dentro de nós completamente». (Antero de Quental)
«Infelizmente os Portugueses, com notória negligência, deram no passado o exemplo de desleixar a sua literatura e, ainda hoje, mal compreendem, ao que parece, as suas grandes riquezas e ainda maiores possibilidades no domínio da prosa. O excessivo número de escritores, a excessiva produção de cada um, e o desleixo, que tem feito perder inumeráveis livros e manuscritos de excepcional interesse - tudo isto pode atribuir-se à mesma origem: falta de crítica. Uma nação, como esta, de poetas, essencialmente lírica, sem nenhum génio dramático, mas capaz de escrever encantadora e naturalmente sem esforço visível, precisava e precisa de severa educação clássica e de crítica rigorosa, para lhe lembrar que a epopeia não é história rimada, nem o verso branco prosa às tiras; que na poesia bucólica a extensão prejudica a intensidade; que lhe convém deixar o abstracto pelo particular e concreto; e que deve cristalizar o vago fluxo do seu talento. Mas em Portugal, fora do círculo dos próprios escritores, mal tem existido até hoje um público leitor, e no ambiente fechado que daqui resulta perdeu-se inevitavelmente o senso da proporção, assim mesmo como caem no vácuo com igual velocidade uma pena e uma pedra. A crítica tem sido em regra pessoal, mais pronta para contestar a originalidade ou exactidão de um escritor, do que para considerar os méritos literários da sua obra». (Aubrey F.G. Bell)
«Se se tivesse de escolher entre a perda das obras de Homero, ou Dante, ou Shakespeare, e a de toda a literatura portuguesa, seria preferível passarmos sem esta; mas isto não quer dizer que a perda não fosse muito grave». (Aubrey F.G. Bell)
Antero de Quental constatou que a alma moderna era completamente estranha aos portugueses, e Aubrey Bell sacrifica toda a literatura portuguesa para salvar as obras de Homero, Dante e Shakespeare. A minha visão de Portugal está próxima destas duas perspectivas - uma nacional e outra estrangeira. Porém, é mais radical quando atribui o atraso histórico de Portugal ao arcaísmo mental dos seus habitantes: o primitivismo mental dos portugueses é um facto incontornável que não pode ser negligenciado quando se analisa a cultura portuguesa. O povo português nunca esteve à altura das suas mentes mais brilhantes: os portugueses são em geral idiotas culturais que, em vez de aprender com aquelas mentes brilhantes que pensaram para os libertar do atraso mental e histórico, preferem aniquilá-las. A história do povo português confirma a conexão estreita entre o atraso mental e o homicídio: os idiotas culturais são homicidas culturais. Paradoxalmente, depois do 25 de Abril, os assassinos culturais tomaram de assalto as instituições culturais e implantaram nelas a sua tirania da mediocridade. A história da cultura portuguesa no período que se segue ao 25 de Abril é a história da liquidação da cultura e da perseguição sistemática do mérito: as universidades portuguesas são hoje espaços de pesadelo, onde os medíocres se instalam de modo a assassinar as mentes brilhantes. O povo que nunca lutou pela liberdade e pela democracia usa-as para liquidar o mérito, vedando o acesso à universidade e esquecendo a obra das mentes brilhantes do passado: a mediocridade instalada em todas as esferas do poder social não produziu uma única obra de qualidade depois do 25 de Abril. Portugal regrediu em termos mentais e cognitivos nestes últimos trinta e sete anos. O desleixo dos portugueses mencionado por Aubrey Bell tem outro nome: a inveja patológica dos portugueses que não suportam o mérito. A cultura portuguesa, em especial a literatura portuguesa, foi resgatada por estrangeiros: o resgate estrangeiro salvou a cultura portuguesa do esquecimento e da perda, e o seu resgate nacional é obra de estudiosos que viveram as suas vidas académicas antes do 25 de Abril. A III República é um crime que parodia a I República - cujo desfecho nos mergulhou no fascismo - e a prova disso está na actual crise nacional, com os portugueses a precisarem de ajuda externa - o resgate financeiro. Sempre que precisa de ajuda externa Portugal reconhece o primitivismo mental dos seus habitantes. Entregues a si próprios e vivendo em democracia, os portugueses não conseguem governar-se e gerir o seu próprio património cultural: só o resgate externo os livra do desleixo e os prepara para o resgate interno, pelo menos durante algum período de tempo, após o qual tudo regressa ao mesmo desleixo de sempre. Antes do 25 de Abril, foram editados diversos manuais escolares de literatura portuguesa de elevada qualidade, tendo em conta que se destinavam a alunos dos cursos liceais. Porém, com a irrupção do 25 de Abril, o ensino foi abolindo o rigor dos programas de estudo e os manuais perderam qualidade: a exigência cedeu o seu lugar ao facilitismo e a universidade foi reduzida a uma mera recapitulação ou reforço da mediocridade ensinada no ensino secundário. As universidades começaram a diplomar os «burros» e a reproduzi-los em série: Portugal mergulhou na mentira diplomada. Os burros diplomados que julgam ter nascido já ensinados são geralmente criaturas arrogantes que gostam de ensinar aos outros aquilo que aprenderam com eles, usando as mesmas palavras, e que, quando questionados sobre os romances que aconselham aos outros, respondem de uma forma estereotipada e imbecil: "Não permito que teste os meus conhecimentos e, por isso, não lhe digo do que tratam as obras que lhe recomendei". Mas como é que os burros diplomados poderiam falar daquilo que desconhecem? A resposta imbecil confirma a sua profunda ignorância que escondem e encobrem referindo obras e autores que nunca leram e estudaram. Vou exemplificar esta tese - sobre a necessidade do chicote para governar e educar Portugal - referindo e comentando algumas obras de história da cultura e da literatura portuguesas sem pretender ser exaustivo.
1. Bell, Aubrey F. G. (1931). A Literatura Portuguesa: História e Crítica. Coimbra: Imprensa da Universidade. Aqui está um exemplo interessante do resgate estrangeiro da literatura portuguesa. Aubrey Bell alimentou a ilusão de que o seu estudo da literatura iria ajudar a remediar os defeitos literários nacionais, com o fomento da crítica e o progressivo aumento de leitores. Mas a verdade é que a sua obra foi esquecida. Para os portugueses, a crítica significa eliminar os adversários cheios de mérito, e a leitura é algo que detestam profundamente: a cultura popular portuguesa é uma cultura de rebanho que se exibe na praia e nos grandes centros comerciais. O ensino em Portugal - sobretudo depois do 25 de Abril - é um descalabro total: as estatísticas dos diplomados valem tanto como as contas públicas - não valem nada. A bancarrota de Portugal é total.
2. Michaëlis de Vasconcelos, Carolina (1996). A Saudade Portuguesa. Lisboa: Guimarães Editores. Veio de Berlim para o Porto para resgatar a língua e a literatura portuguesas: a sua História da Literatura Portuguesa é uma obra seminal que foi esquecida neste nosso tempo indigente. A sua escola preparou as mentes nacionais para a tarefa de resgatar a literatura portuguesa. (Infelizmente, a sua casa situada na Rua de Cedofeita encontra-se abandonada.)
3. Cidade, Hernâni (1948-1951). Lições de Cultura e Literatura Portuguesas, 2 volumes. Coimbra: Coimbra Editora. Uma das obras pioneiras do resgate nacional da cultura e da literatura portuguesas que merece ser frequentada. Hernâni Cidade soube captar os grandes momentos criativos da literatura e da cultura portuguesas e, ao contrário de outros críticos literários posteriores (António Sérgio e Jorge de Sena, por exemplo), não nutriu aquela animosidade feroz em relação ao romantismo português que empobreceu a alma lusitana. Fidelino de Figueiredo escreveu duas histórias da literatura interessantes: a História da Literatura Romântica (1913) e a História da Literatura Realista (1913).
4. Cidade, Hernâni (1973). Portugal Histórico-Cultural. Lisboa: Círculo de Leitores. Obra de leitura fascinante que resultou da reformulação de cinco lições sobre Literatura Portuguesa proferidas na Academia de Letras da Baía: a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto não foi esquecida, mas a análise da obra fica aquém das expectativas. Infelizmente, a obra de Mendes Pinto ainda não foi objecto de uma análise estética e filosófica de qualidade. (Jaime Cortesão dedicou-lhe um estudo interessante.) Salvo raras excepções, a anemia da literatura portuguesa deve-se à ausência de pensamento filosófico estruturado. Sem filosofia não há literatura de elevada qualidade.
5. Lapa, M. Rodrigues (1966). Lições de Literatura Portuguesa: Época Medieval. Coimbra: Coimbra Editora. Uma visão fabulosa da cultura trovadoresca e do ciclo arturiano: as suas bibliografias referem os autores estrangeiros - István Frank, Silvio Pellegrini, Bellermann, F. Wolf, López-Aydillo, Friedrich Diez, Adolfo Mussafia, Friedrich Hanssen, O. Nobiling, Henry Thomas, etc. - que resgataram a cultura portuguesa. A distância que afasta a literatura portuguesa da literatura estrangeira é a mesma distância que separa o Fausto de Goethe do Fausto de Fernando Pessoa: uma distância filosófica infinita. No entanto, houve um tempo em que a literatura portuguesa esteve avançada: Rodrigues Lapa analisa esse período de avanço em que a língua portuguesa era utilizada pelos poetas da nossa vizinha Espanha.
6. Pascoaes, Teixeira de (1987). Os Poetas Lusíadas. Lisboa: Assírio & Alvim. Uma das melhores análises estéticas da poesia portuguesa, que, além disso, fornece um programa estético original: o saudosismo. Os historiadores e os críticos literários portugueses desprezam os programas estéticos dos poetas portugueses, privando-se assim de um dos elementos fundamentais para realizar a crítica das obras. Almeida Garrett é outro autor portuense que alinhavou toda uma ideologia estética do romantismo. Atribuo as deficiências da crítica e da recepção das obras à ignorância filosófica dos críticos portugueses: a lacuna filosófica dos críticos nacionais só pode ser colmatada por um resgate estrangeiro. A Conferência do Casino de Eça de Queiroz sobre «A Literatura Nova: o Realismo como Nova Expressão de Arte» apresenta um programa estético realista contra o romantismo, nomeadamente o de Camilo Castelo Branco: à arte da apoteose do sentimento, opõe Eça de Queiroz a arte do realismo que faz a anatomia do carácter, a crítica do homem, que nos habilita a melhor nos conhecermos, para melhor nos corrigirmos. Porém, o ministro do Reino, o Marquês de Ávila e Bolama, preocupado com o facto dos conferencistas - Antero de Quental, Augusto Soromenho, Eça de Queiroz e Adolfo Coelho - não proferirem palavras de conformidade com o património das crenças estabelecidas, proibiu as conferências que deveriam seguir-se à de Adolfo Coelho sobre o ensino - as de Salomão Sáragga (judeu), Oliveira Martins, Augusto Fuschini e Teófilo Braga. O poder português não suporta a «crítica (socialista) e (a) reforma das instituições» (Antero de Quental). Um dos problemas de Portugal reside no facto das suas classes dirigentes pensarem que o exercício do poder lhes garante um status intelectual: os políticos portugueses gostam de simular a detenção de cultura intelectual, quando na verdade nem sequer sabem governar o país.
7. Bruno, Sampaio (1984). A Geração Nova. Porto: Lello & Irmão Editores. Uma obra ousada escrita por aquele que é considerado o pai do pensamento português. Apesar da brutalidade de algumas das suas críticas, Joel Serrão dedicou-lhe uma obra interessante.
8. Saraiva, António José (1991-1994). A Cultura em Portugal, 2 volumes. Lisboa: Gradiva. Esta obra de António José Saraiva revela a fragilidade do seu pensamento crítico: não ter compreendido o marxismo que abraçou durante muito tempo: «Como é possível estabelecer o nexo necessário entre a economia portuguesa do século XVI e, por exemplo, Camões? E que explicação socioeconómica há para o facto de Fernando Pessoa se ter manifestado no primeiro terço do século XX em Portugal?» Ao formular estas duas questões, António José Saraiva mostra que não captou o espírito dialéctico e histórico que move a análise marxista das obras culturais: a estética marxista é-lhe completamente estranha, bem como a crítica da ideologia. António José Saraiva culpabiliza a filosofia de Marx pelas suas próprias deficiências pessoais de compreensão. Além disso, não consegue apresentar uma definição de cultura, nas suas relações dialécticas com as ideologias dominantes - incluindo as ideologias estéticas - em cada período histórico: a sua enorme erudição foi sempre superficial e enganadora, porque, se tivesse compreendido os livros que parece ter lido e as teorias que parece seguir, teria captado todo o processo de formação cultural em evolução. António José Saraiva esboça a história da cultura portuguesa sem ter clarificado o que entende por cultura ou ter alinhavado uma teoria da cultura: o resultado é uma obra aparentemente erudita mas carente de teoria.
9. Saraiva, António José & Lopes, Óscar (1978). História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora. Pelas razões aduzidas no parágrafo anterior, não aprecio esta obra. No entanto, deve ser consultada por todos aqueles que se iniciam na literatura portuguesa.
10. Serrão, Joel (1978-1983). Temas da Cultura Portuguesa, 2 volumes. Lisboa: Livros Horizonte. Aprecio muito a obra de Joel Serrão: um grande contributo para a história da cultura portuguesa.
Se compararmos uma destas histórias da literatura portuguesa com uma história da literatura alemã, a de Bösch por exemplo, somos confrontados não só com a pobreza estética e analítica das nossas histórias, mas também com o facto da literatura brasileira não fazer parte da literatura portuguesa: as relações culturais entre Portugal e Brasil não são nada fáceis, até porque o português falado e escrito no Brasil está a degradar a língua portuguesa, roubando-lhe toda a sua riqueza e todas as suas potencialidades de pensamento original. (Já li as obras de Jorge Amado em português do Brasil e em português de Portugal e prefiro lê-lo em português europeu. E não é mais sedutor para o espírito culto ler a poesia de Vinicius de Moraes ou mesmo os contos de Guimarães Rosa em português europeu? E quem é que suporta as traduções brasileiras das obras de Hegel ou de Heidegger?) Uma história da literatura em língua portuguesa deveria ser organizada como reflexo da formação do espírito e da existência humanas, abarcando todas as obras escritas em língua portuguesa e situando-as nas correntes gerais da sua época. A novo acordo ortográfico deve ser queimado: Portugal não pode ser privado do rigor da língua portuguesa e o Brasil já devia ter compreendido que usa um português corrompido que não facilita a sua abertura ao mundo culto e civilizado. Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Goa, Macau e Timor devem denunciar este acordo ortográfico e articular a sua literatura com toda a literatura em língua portuguesa. Fazer uma tal história alargada da literatura portuguesa - sem barreiras nacionalistas e étnicas - é reforçar os laços linguísticos e culturais entre todos os países que falam a língua portuguesa: a literatura nacional de cada um destes países fica mais rica quando integrada numa história mais vasta que incluí a própria génese da língua portuguesa. Ao elaborar a doutrina do humanismo universalista de Portugal, o seu grande contributo para a história da civilização, Jaime Cortesão estabeleceu as pontes para o diálogo produtivo entre os povos que falam a língua portuguesa, com especial destaque do povo brasileiro (Cf. Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro), mas as suas obras foram esquecidas, tanto pelos portugueses como pelos brasileiros: o futuro da comunidade lusófona joga-se na dilatação da língua portuguesa e dos seus tesouros cognitivos. (Os romances de Ferreira de Castro - A Selva, por exemplo - aproximam Portugal do Brasil.) Garantida a unidade da língua portuguesa, podemos resgatar toda a cultura e toda a literatura em língua portuguesa, de modo a projectá-la no mundo. (O ideal seria converter o antigo Império Português numa nova Federação Mundial Portuguesa, capaz de rivalizar com outros potentados económicos que dominam este novo mundo cada vez mais global: o sinal dos tempos é a reunificação daquilo que foi outrora separado. Todos juntos e unidos - a nossa pátria é a língua portuguesa (Fernando Pessoa) - podemos triunfar no mundo global e ter capacidade de decisão sem estarmos dependentes da Europa - a Europa Central e do Norte chefiada pela Alemanha - e dos USA. Podemos ser uma Alternativa Global.)
Anexo: A Imprensa Nacional - Casa da Moeda está a prestar um mau serviço à difusão da cultura portuguesa: além de publicar muitas obras medíocres que não serão lidas por ninguém, publica os grandes clássicos a preços muito elevados que não estão ao alcance da bolsa dos portugueses. Uma boa política da cultura exige uma outra política editorial. É preciso eliminar os incompetentes que dirigem estas instituições públicas em benefício das redes de amigos. Editar teses de doutoramento de péssima qualidade é má política editorial, a menos que esses livros sejam usados como provas públicas da incompetência que reina nas universidades portuguesas.
J Francisco Saraiva de Sousa