terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Prós e Contras: Mundo em Mudança

«A genuína e própria filosofia começa no Ocidente. Só no Ocidente se ergue a liberdade da autoconsciência, desaparece a consciência natural e o espírito desce dentro de si próprio. No esplendor do Oriente desaparece o indivíduo; só no Ocidente a luz se torna a lâmpada do pensamento que se ilumina a si própria, criando por si o seu mundo. (...) A liberdade no Oriente, na Grécia e no mundo germânico pode definir-se de modo provisório e superficial com as seguintes fórmulas: no Oriente é livre um só, o déspota; na Grécia são livres alguns; na vida germânica vale o axioma que todos são livres, isto é, o homem é livre enquanto homem». (Hegel)

Prós e Contras debateu hoje (7 de Fevereiro) a revolução árabe - o efeito dominó de Fátima Campos Ferreira, cujo epicentro se localizou primeiramente na Tunísia, contagiando a seguir o Egipto -, em especial as revoltas dos jovens egípcios na Praça Tahrir - Cairo - que se iniciaram no dia 25 de Janeiro. Com o levantamento da Tunísia, o Egipto perdeu o medo (Miguel Portas) e os jovens com ganhos de instrução e de educação exigem a queda do regime de Hosni Mubarak. Conforme mostrou Ângelo Correia, as realidades sociais dos países árabes são muito diferentes entre si, e estas diferenças geram lógicas revolucionárias específicas. Porém, apesar da especificidade de cada país, "nada vai ser igual no futuro" (Ângelo Correia), porque o mundo islâmico está em mutação: o levantamento sem fronteiras devolve o orgulho ao mundo árabe. Em relação ao Egipto, Ângelo Correia apontou três ordens de razões que ajudam a compreender a irrupção inesperada das manifestações anti-Mubarak na Praça Tahrir: a pressão demográfica e a escassez de recursos, a luta contra a corrupção e a iniquidade e a angústia das novas gerações provenientes da pequena e média burguesia. A sociedade egípcia é demograficamente uma sociedade jovem: os jovens egípcios estão condenados à pobreza e ao desemprego e, tal como sucede na Europa, "estudam para ser escravos" (Miguel Portas) ou para ficar no desemprego. A alta burguesia egípcia monopoliza todos os recursos nacionais, recusando partilhá-los com os jovens desempregados e com os pobres. A cleptocracia egípcia denunciada neste debate é muito idêntica à cleptocracia que reina nas democracias ocidentais e, quando criticou a ineficácia da Plataforma de Barcelona, Ângelo Correia chamou a atenção para a corrupção europeia: a democracia e a ideologia hipócrita dos direitos humanos não nos protegem do Estado governado por ladrões. O nosso mundo em mudança exige uma nova filosofia política e uma nova filosofia da história: tentar aplicar-lhe as categorias clássicas adia o inevitável, isto é, a consumação da revolução global. A filosofia da história de Hegel, retomada fraudulentamente por Fukuyama em chave neoliberal, enganou-se quando supôs que o islamismo - a Irmandade Muçulmana - tinha desaparecido do «solo da história universal, refugiando-se na comodidade e sossego orientais»: 11 de Setembro mostrou a sua vitalidade e a potência agressora - a América - foi brutalmente atacada no seu interior e no seu orgulho. As revoltas árabes voltam a colocar na ordem do dia a importância civilizacional do Mediterrâneo, e a China, ao comprar a dívida pública da Grécia e de Portugal, está interessada em controlá-lo. O novo pensamento político que precisamos para pensar o nosso mundo global só pode ser elaborado a partir do marxismo liberto desse fardo pesado que foi o comunismo: o marxismo - tomado como crítica do progresso - é a única filosofia capaz de unir as diversas culturas sem as privar da sua identidade.

Joshua Ruah teme que o estabelecimento da democracia no Egipto possa vir a prejudicar os interesses estratégicos de Israel, mas, apesar do carácter mesquinho desta perspectiva, tanto ele como os outros participantes acreditam que a revolução árabe visa derrubar os regimes autoritários e cleptocráticos, pelo menos nas Repúblicas do mundo árabe (Loureiro dos Santos), e, nas palavras enfáticas de Adel Sidarus, operar a abertura árabe ao mundo, à modernidade e à democracia. Helena Trindade Lopes, que citou Sólon para diminuir os méritos da civilização grega em relação à civilização egípcia, esquece que a democracia que os egípcios parecem reclamar é precisamente uma invenção grega e que, sem a emergência da filosofia na Grécia, o Ocidente não teria tido os instrumentos teóricos para operar a modernidade. O Egipto e a Suméria foram efectivamente grandes civilizações (Ângelo Correia), mas não atingiram o nível de desenvolvimento cognitivo, social e político alcançado tanto pela Grécia Antiga como pelo Império Romano. O que me choca não é tanto esta reverência pelo Domínio do Faraó - aliás sintomática! - mas sobretudo o facto de Miguel Portas e da Esquerda estarem reféns da agenda ocidental - neoliberal, claro! - da democracia e dos direitos humanos: o Holocausto desmentiu a eficácia de uma política levada a cabo em nome dos direitos humanos (Hannah Arendt) e as lógicas neoliberais expulsam todos os dias os desempregados e as vítimas da corrupção da humanidade. Al Jazeera possibilita o diálogo dos árabes uns com os outros e a globalização da comunicação mostra-lhes a existência de outros mundos, nomeadamente do mundo ocidental. Porém, o Ocidente tal como o conhecemos é a catástrofe, e, depois desta revelação da crise financeira e económica, já não pode ser apresentado como imagem de libertação. Os problemas que afligem os jovens egípcios são os mesmos problemas que deviam preocupar os jovens europeus: pobreza, desemprego, fome, escravatura, miséria, vagabundagem, privação, educação deficitária, nomadismo, vida errante, vida precária, desenraizamento, ausência de futuro, insegurança ontológica, incerteza, violência, vida angustiada, tristeza, enfim alienação. A democracia não protegeu ninguém dos malefícios do neoliberalismo e da gula irracional dos especuladores - amigos das prostitutas de luxo! - de Wall Street. Não há apenas um Mubarak mas diversos Mubarak's no mundo inteiro, incluindo a Europa e a América: a existência plural dos Mubarak's - todos eles obscena e corruptamente ladrões ricos que não abdicam do poder, onde permanecem até morrer - apaga a diferença entre regimes democráticos e regimes autoritários. No Ocidente, a democracia vigente confirma a suspeita de Aristóteles de que a democracia impulsiona e provoca a tirania, no nosso caso a cleptocracia totalitária: a aliança fatal entre democracia e capitalismo impede o regime democrático de resolver os problemas sociais que o capitalismo gera, precisamente a pobreza, as desigualdades sociais e a corrupção. Ora, se a democracia não aboliu a pobreza no Ocidente, também não o poderá fazer no Oriente ou em qualquer outra parte do mundo: os cidadãos do mundo global que usam as redes sociais para comunicar entre si têm um inimigo comum que é o capitalismo. Quando um autor reaccionário como Robert A. Dahl escreve que «a teoria democrática continua a ser muito insatisfatória», ele mais não faz do que condenar o capitalismo que bloqueia o desenvolvimento democrático, mesmo que não tenha consciência disso. A Esquerda já devia saber que, no quadro da actual democracia capitalista, não podemos sonhar com a construção efectiva de um mundo melhor: não há diálogo possível entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. A situação precária dos jovens egípcios não vai melhorar se a mudança de regime político não for acompanhada por uma mudança de sistema social: a democracia não põe comida no prato, se o motivo da revolta for tão-somente a auto-preservação sem transcendência. A luta entre gerações deve converter-se em luta política pela conquista do poder: a eliminação física das geriatrias instaladas acabará por acontecer mais tarde ou mais cedo, sobretudo aqui na Europa. O mundo europeu envelhecido que sobrecarrega a segurança social e o mundo árabe juvenil dominado por velhos corruptos apontam, cada um seguindo o seu próprio caminho, nessa direcção: o prolongamento da vida não é uma utopia, como pensou Ernst Bloch, mas sim uma anti-utopia, na medida em que subverte a própria dinâmica de renovação da vida. E hoje em dia lutar pela vida é lutar contra o capitalismo, cuja lógica necrófila nos rouba a dignidade da vida humana. Entre o princípio de Robespierre la liberté et la terreur e o princípio islâmico la religion et la terreur, prefiro o primeiro, embora seja obrigado a reconhecer a vitalidade do segundo.

J Francisco Saraiva de Sousa

2 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Enfim, a Europa perdeu a autoridade, porque também ela é corrupta. Basta pensar em certos lideres europeus e compará-los com outros corruptos africanos, árabes, americanos e asiáticos. Um horror de semelhança total! E todos eles permanecem no poder até morrer, mesmo na dita Europa democrática, incluindo Portugal. Mubarak trinta anos de poder! E os Mubarak's portugueses quantos anos no poder! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, o Egipto libertou-se hoje de Mubarak: 11 de Fevereiro de 2011.