Aforismos sobre educação
A pedagogia do oprimido de Paulo Freire continua a ser o modelo crítico que mais se aproxima das intenções de uma teoria crítica da educação. Mesmo quando abraça a linguagem existencialista, bem como o seu estilo de pensar, não deixa de ser uma pedagogia dialéctica, na medida em que medeia constantemente os opostos em função da sua possível reconciliação. De certo modo, «corporifica» o pensamento de Adorno, despindo-o do seu preconceito «elitista».
A pedagogia do oprimido de Paulo Freire continua a ser o modelo crítico que mais se aproxima das intenções de uma teoria crítica da educação. Mesmo quando abraça a linguagem existencialista, bem como o seu estilo de pensar, não deixa de ser uma pedagogia dialéctica, na medida em que medeia constantemente os opostos em função da sua possível reconciliação. De certo modo, «corporifica» o pensamento de Adorno, despindo-o do seu preconceito «elitista».
Professor e aluno devem reconstruir, em constante diálogo «horizontal» e liberto da coerção, a sua subjectividade, libertando-a do seu elemento estranho — a adesão ao opressor.
A subjectividade rebelde é uma subjectividade que se recusa, mediante uma revolta permanente consigo mesma e com o mundo, a ser novamente colonizada pela ideologia do opressor.
A escola como instituição colonizada afunda-se naquilo que devia denunciar e ajudar a transcender: a sociedade massificada.
A escola transformou-se, ela mesma e com o empurrão da racionalidade administrativa, numa indústria cultural e, como esta, atrofia aquilo que devia ajudar a libertar: o poder da imaginação.
Os professores que tratam os seus alunos como «atrasados mentais» esquecem-se de que eles próprios são tratados do mesmo modo pelo aparelho administrativo escolar.
A pedagogia do atrasado mental aplica-se, pois, tanto aos professores como aos seus alunos: ambos são vasilhas enchidas pelos conteúdos da ideologia opressora.
Não se pode planificar aquilo que se desconhece: a cultura na sua possibilidade transcendental. Quando se refugiam por detrás da sua «profissionalização», os professores denunciam-se como aquilo que são: eus colonizados pelo opressor, incapazes de pensar conjuntamente com os seus alunos sobre a realidade que os oprime interna e externamente, de modo a transcendê-la.
A profissionalização do exercício de ensinar é realizada contra aquilo que devia ser o ensino — torna-se impotente perante a acção pedagógica. Se este é o objectivo do opressor, não o é daquele que resiste a ser tratado como uma mera coisa. Coisificação e planificação pedagógica são a mesma coisa — necrofilia.
A escola como agência de socialização integrada coisifica os alunos, em vez de os transformar em sujeitos conscientes e autónomos capazes de se libertarem da reificação.
Sob o efeito todo-poderoso do princípio de troca, a escola silencia o não-idêntico, reproduzindo continuamente, qual fábrica de produção industrial, a falsa identidade da sociedade repressiva a que se devia opor como defensora da diferença. Matando as almas, a escola reproduz corpos idênticos uns aos outros e — o que é ainda pior — felizes por puderem ser abastecidos em qualquer grande área comercial. O corpo converte-se em carne digerível por qual outro instrumento.
A cultura integrada converteu-se numa imensa cadeia alimentar: as mentes anestesiadas entregam-se facilmente — a si mesmas enquanto corpos colonizados — ao consumo em massa.
Pensar é aquilo que não se faz numa sala de aula, cujo professor seja um profissional do ensino tecnológico zeloso do seu título.
A teoria crítica, neste hora de ofuscamento total, é forçada a encarar-se a si mesma como uma praxis, não tanto política mas sobretudo pedagógica, e, como tal, procura infiltrar-se nos interstícios não colonizados da escola, na tentativa de fornecer orientação aos professores e aos alunos, levando-os a reconhecerem dentro de si mesmos a presença de um hóspede que não foi convidado: o opressor.
A pedagogia crítica que só pode ser assumida por aqueles professores que odeiam visceralmente a opressão e a injustiça visa descolonizar o eu dos alunos, de modo a prepará-los para a libertação.
Defender o pensamento independente é resistir à inércia administrativa dos Programas e da Planificações impostos de cima — heteronomamente; é dignificar o professor, o aluno e a escola, vencendo o seu «medo à liberdade», de modo a libertá-los para a tarefa de recuperarem a sua subjectividade rebelde: a única que os protege da estupidificação em curso.
A acção pedagógica do teórico crítico da educação regula-se apenas pelo interesse da emancipação: autonomizar os alunos dos efeitos castradores e mutiladores da pedagogia bancária.
Educar para a libertação: eis o lema da teoria crítica da educação.
O professor que abandone a investigação fundamental depois de ter obtido o diploma de licenciatura ou qualquer outro grau académico mais avançado, na maior parte das vezes obtido de modo precipitado e demasiado fácil, deixa, por isso, de ser um professor empenhado e responsável e, mais cedo ou mais tarde, ingressa na categoria dos frustrados que consultam o psiquiatra para adormecer o seu vazio existencial.
Pedagogia e investigação contínua sempre foram inseparáveis até que se criou a burocratização da arte de ensinar; a partir desse momento, os professores, bem como os alunos, foram aprisionados, condenados a não ter direito à palavra.
A pedagogia administrativa monopoliza a palavra e, ao negá-la aos outros participantes do processo educativo, mais não pretende que silenciar o seu protesto — o protesto contra a invasão da consciência por parte dos inimigos do pensamento e da imaginação criadores.
A cultura como alimento digerível democraticamente é cultura tóxica: o corpo engorda enquanto a mente se atrofia. A obesidade é uma figura do pensamento colonizado: as toxinas do invasor invadem o corpo do hospedeiro, de modo a colocá-lo ao serviço da reprodução social.
O currículo oculto que se insinua na prática diária pedagógica é consciência reificada.
A consciência colonizada é consciência coisificada que, incapaz de problematizar, se deixa pensar pelo opressor. Pura heteronomia!
A linguagem pedagógica é sedimento do pensamento único.
Dar a palavra ao oprimido é renovar e recriar uma nova linguagem: a que nomeia as coisas pelo seu verdadeiro nome.
O consenso obtido na e pela linguagem ordinária é a vitória do opressor.
A linguagem vulgar silencia a voz do oprimido: nela o oprimido vê-se a si mesmo com os olhos do opressor.
Pensamento gordo = pensamento domesticado = pensamento colonizado = pensamento do opressor = pensamento único = pensamento passivo. O empirismo sempre foi a filosofia do opressor.
A pedagogia crítica tal como tem sido elaborada nos Estados Unidos, e nas suas diversas orientações teóricas e vertentes, mostra pouca familiaridade com a história dogmática da teoria crítica: os fundadores raramente são nomeados a partir dos seus próprios textos. Este lapso dos textos fundadores esvazia a teoria crítica.
Giroux tem toda a razão quando afirma que não basta denunciar a escola como uma agência da socialização integrada: a denúncia que se satisfaz consigo mesma é resignação. «As escolas são locais contraditórios» (p.28): há portanto espaço para levar a cabo a tarefa de libertar o futuro, de modo a que Auschwitz nunca mais se repita.
O défice político da actual teoria crítica é compensado por uma prática pedagógica «empenhada»: o pensamento independente luta contra a sua própria integração e, só mediante o «sucesso» desta luta permanente, pode ele conservar a esperança de contribuir para a mudança social qualitativa. A sua revolução é a revolução molecular: a preparação da subjectividade rebelde para a tarefa da Grande Recusa. O empenhamento político congela o pensamento que devia realizar: a teoria crítica recusa toda a praxis que a congele; ela é a sua própria praxis que se mantém viva enquanto salvaguarda a sua independência. As pedagogias críticas que abraçam levianamente uma tendência partidária correm o risco de serem absorvidas por aquilo contra o qual lutam: a inércia conservadora do sistema reificado. A guerrilha institucional é inimiga da liberdade: a violência, mesmo quando exercida em nome da pacificação da vida social, nunca é legítima. O argumento da legitimidade da violência não tem qualquer legitimidade diante da violência consumada. A memória de Auschwitz ainda permanece viva naqueles que não desejam a sua repetição. A política é a consumação da estratégia conceptual: a violência do conceito realiza-se na violência real. A identidade é sempre falsa: viola o não-idêntico que resiste à integração.
A emergência filogenética da auto-consciência — da consciência de si mesmo como indivíduo — trouxe ao mundo, pela primeira vez, o sofrimento: o sofrimento resultante de uma existência vivida na solidão substancial. O indivíduo desde que nasce até que morre sabe, em cada momento crucial da sua vida, que está absolutamente sozinho num mundo que nunca é verdadeiramente o seu mundo, mas o mundo dos outros generalizados que, pelo facto de estarem-aí, negam a sua própria existência e todas as suas possibilidades. O outro generalizado é uma crueldade, porque me nega como existência autêntica. Estamos sozinhos e sem desculpas. As garantias que temos, sobretudo o amor maternal, são efémeras: a morte rouba-as quando mais precisamos delas e a natureza, na sua evolução, não nos deu outras adaptações filogenéticas que nos protegem desta situação quase-transcendental que é viver na solidão, sabendo que a estrela que nos acompanhou no nascimento abandona-nos na morte.
A pedagogia da resistência terá que começar por vencer a resistência de todos aqueles, tanto professores como alunos, que temem mergulhar na interioridade da sua subjectividade. A consciência feliz predominante prefere a ilusão da sua falsa felicidade à verdade da sua infelicidade essencial. Sair da caverna e olhar de frente a noite causa horror a qualquer indivíduo que se satisfaz com o comércio inautêntico com os outros. Descobrir a solidão instalada no interior da sua subjectividade encarnada é descobrir a vida no seu sofrimento mais profundo.
A natureza lançou-nos um desafio tremendo: sermos indivíduos auto-conscientes que precisamos dos outros para nos realizarmos até mesmo como indivíduos autónomos. A sociedade que ao mesmo tempo nos individualiza socializa-nos. Mas a socialização mesmo quando bem sucedida não amortece o sofrimento da solidão. Este reaparece em toda a sua força nas situações-limite, quando temos de contar somente connosco mesmos. A subjectividade rebelde é uma subjectividade infeliz que persegue tenazmente a felicidade, embora reconheça a sua impotência para a alcançar sozinha. O pensamento crítico é uma actividade extremamente solitária. Mediante o seu exercício, a consciência mergulha em si mesma, sabendo que todo o seu esforço autêntico pode ser gratuito, tanto para si mesma como para os outros que resistem ao sofrimento resultante de estarem sozinhos num mundo absolutamente solitário. Nesta resistência ao diálogo encontra o pensamento crítico a sua impotência: a sua palavra — a palavra de uma consciência que procura alcançar o outro num esforço derradeiro de transcender a sua solidão — não é escutada pelo outro.
Diante deste sofrimento metafísico qualquer tentativa de querer distinguir entre opressores e oprimidos torna-se demasiado supérflua: todos somos ao mesmo tempo opressores e oprimidos enquanto indivíduos que somos e, perante a sociedade, todos somos oprimidos. A sociedade estabelecida é um cárcere que consente alguma liberdade de movimento: a individualidade só pode surgir no seio de uma sociedade por mais opressora que ela seja. A comunidade não deixa manifestar-se no seu bojo a individualidade e muito menos a individualidade rebelde.
O poder político é uma abstracção castradora e convém ter isso presente quando se fala de poder. O Estado não corporifica todo o poder — o poder dá-se nas relações que estabelecemos com os outros, sobretudo com os mais próximos. São estes e não tanto os que estão mais distantes — ocupando funções administrativas, que ameaçam directamente a nossa existência nas suas possibilidades mais autênticas. O pedagogo crítico sabe muito bem que os seus inimigos não são tanto os quadros administrativos do Estado mas sobretudo e fundamentalmente o grupo anónimo dos seus colegas. Esta turba de mediocridade é um inimigo com atributos quase divinos — omnipotente, omnipresente e omniconsciente, excepto omnigenerosa. A sua vigilância permanente faz sentir os seus efeitos de modo tanto mais forte quanto mais ousada for a atitude do professor crítico. O pensamento amedronta-a e, sobretudo, desmistifica a terrível ilusão em que vive: não é fácil assumir-se como um usurpador do lugar que não lhe pertence quer por direito quer efectivamente. O professor colonizado, sobretudo quando tem consciência tética da sua mediocridade, só é movido por um interesse: impedir que os seus alunos conheçam outro professor digno desse nome e que façam a comparação e tirem as devidas conclusões. O professor colonizado é mais que um Velho do Restelo — é um vampiro que só vive a custa do sacrifício do outro. A sua resistência é a mais cruel com que se defronta a pedagogia crítica. Superá-la exige libertar os alunos da «pedagogia do atrasado mental» e convidá-los a ter uma nova experiência — a experiência antecipada da liberdade. A resistência dos alunos é menos organizada: uma metodologia centrada em problemas geradores — associada evidentemente à competência científica do professor — é suficiente para render o opressor que há neles. Apesar do pensamento crítico ser um salto no abismo, vale a pena correr esse risco: quem arrisca sofre, mas só este sofrimento lhe permitirá experimentar a alegria — a alegria de estar vivo num mundo em que todos queriam que estivesse morto. Este é o único tipo de vingança que a subjectividade rebelde se permite. Ir mais longe que isso seria deixar-se aprisionar novamente no cárcere do opressor. Ser igual ao opressor é o que mais teme o indivíduo emancipado; a partir do momento em que se descobre como indivíduo emancipado, o seu maior medo é a loucura. A morte é preferível, na medida em que põe termo a uma existência sem lhe roubar a sua dignidade — de ter sido uma consciência que resistiu à heteronomia. A sua lembrança será guardada tanto por aqueles que ajudou a libertarem-se como por aqueles que a odiaram, porque estes últimos, depois da sua denúncia silenciosa, nunca mais poderão manter a sua anterior auto-imagem. Os mártires que morrem sozinhos são sempre lembrados como a boa consciência daqueles que a perderam. Ninguém que se descubra como medíocre, depois de se ter julgado expert, volta a acreditar em si mesmo: resta-lhe o silêncio ressentido que se alimenta de mil e uma vinganças — mas nenhuma delas, mesmo que bem sucedida, lhe permite reencontrar novamente o estado de ilusão anterior. A sua existência é culpa permanente. Se não se der por satisfeito, consultará o psiquiatra que, mediante um bom tratamento com anti-depressivos, depressa o anula como projecto de ser. O vencedor pode ser vencido, sobretudo quando se interna num hospital psiquiátrico, donde nunca devia ter saído.
A mimesis cativante é o elemento da teoria crítica da educação.
A pedagogia da resistência é a que resiste aos obstáculos que lhe colocam as consciências colonizadas, ao mesmo tempo que procura imunizar outras consciências contra esta ameaça.
Pensar é esquecer-se de si mesmo e entregar-se ao fascínio das ideias e dos conceitos. Quem, quando pensa, reivindica nesse acto o privilégio do seu umbigo, não pensa: a sua preocupação imediata é a auto-preservação. O pensamento verdadeiro transcende o seu contexto de produção, bem como os interesses imediatos daquele que o exteriorizou pela primeira vez. O pensamento só é verdadeiro quando escapa à relatividade do seu contexto de produção: o pensamento que permanece prisioneiro do contexto é ideologia — pura apatia diante da crueldade existente.
Quem diz que não pode saber mais porque a situação não o permite, não merece a atenção que se lhe dedica: as dificuldades materiais não respondem pela falta de conhecimento.
Quem tem pretensões intelectuais tem que as justificar perante os outros: a cultura não é irresponsabilidade.
Estes aforismos estão na base de uma comunicação apresentada na 1ª Conferência Internacional de Filosofia da Educação - Diversidade e Identidade, e posteriormente publicada com o título "Heteronomia e Subjectividade Rebelde" (Porto, 1998).
Contudo, estes aforismos visam criticar severamente a introdução das ciências pedagógicas no ensino superior que converteram a arte de ensinar num procedimento burocrático, que seca o conhecimento e a competência e uniformiza a cultura. Ensino da pedagogia e crise do ensino coincidem (Arendt).
J Francisco Saraiva de Sousa
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