Endossando a noção cientificamente correcta enunciada por Anaxágoras, Hipócrates afirma que «do cérebro, e apenas do cérebro, surgem os nossos prazeres, alegrias, bem como as nossas tristezas, dor, pesar e lágrimas. É este mesmo órgão que nos torna loucos ou delirantes, influencia-nos com terror e medo, traz a insónia e a ansiedade despropositada». (Hipócrates)
«Quando o corpo está desperto, a alma é a sua serva e divide a sua atenção entre ouvir, ver, etc., mas quando o corpo está em repouso, a alma administra o seu próprio lar». (Hipócrates)
A tradição situa Hipócrates de Cós (460-377) em relação a Demócrito: a actividade médica de Hipócrates levou-o até a cidade natal de Demócrito - Abdera na Grécia setentrional - e a afinidade espiritual entre ambos reside no desejo comum de explicação científica dos processos naturais. Na Grécia Antiga existia uma conexão muito estreita entre a medicina e a religião e esta conexão manifestava-se na medicina dos Templos, com as suas curas milagrosas celebradas, por exemplo, nas inscrições votivas de Epidauro. É na luta contra esta medicina dos Templos, exercida nos santuários de Esculápio - Asclépios - e dos demónios médicos ou sacerdotes-curadores associados com ele, que se elabora a medicina científica de Hipócrates: quer dizer que a nova ciência médica - tal como a Filosofia - entra em cena como um protesto contra a fé religiosa tradicional. Os médicos racionalistas estavam em constante conflito com os médicos dos templos que proporcionavam curas mágicas: o debate entre dois estilos diferentes de tratamento, um racional e o outro sobrenatural, implicava também uma feroz competitividade pela conquista de pacientes. O mestre de Hipócrates que o iniciou na arte médica foi Heródico de Selimbra que, opondo-se à escola médica de Cnido, insistia na dietética e definia a medicina como a «educação científica para a vida natural»: a causa da doença era para ele o desvio dessa vida natural. A escola médica de Cós confrontou-se com outras duas escolas médicas (Cf. J. Ilberg, 1894, 1924; J. Jouanna, 1974; H. Grensemann, 1975; W. Smith, 1973; A. Thivel, 1977; Bourgey, 1953; V. di Benedetto, 1980): a escola de Cnido que praticava uma medicina empírica ou pragmática, preocupada fundamentalmente com a eficácia terapêutica, e a escola dogmática que promovia uma medicina teórica ou especulativa, apoiando as suas doutrinas médicas nas teorias filosóficas. A escola de Cós protagoniza uma medicina racional e positiva que não só rejeita a tradição religiosa da medicina, como também reclama a sua autonomia em relação à filosofia. A separação da medicina da filosofia - operada pela medicina hipocrática, com a ajuda da sofística - constitui o primeiro exemplo importante de autonomização das ciências particulares. Um escrito intitulado Sobre a Medicina Antiga - que não pode ser atribuído a Hipócrates pelo facto de ignorar a medicina meteorológica e de recusar toda a «hipótese», rendendo homenagem ao empirismo puro - inverte completamente as relações entre a filosofia e a medicina: em vez de ser a medicina a aprender da Filosofia, é a filosofia a aprender da Medicina, a única investigação - segundo o seu autor - a «conseguir um verdadeiro conhecimento da natureza». Apesar da distância temporal que separa a medicina grega da medicina dos tempos modernos, a ambição da primeira encontra-se ainda presente na obra de Paracelsus (1493-1541), que procurou criar uma nova Filosofia capaz de incluir a terapêutica: o médico - para Paracelsus - é sempre um mestre do pensamento filosófico e, dado ser superior às outras coisas, ele deve «saber mais» e ser «um pai da Filosofia». A medicina hipocrática entrelaçou-se com elementos sofísticos e gnósticos, abrindo-se às tendências antropológicas da Filosofia Antiga, através do princípio "Conhece-te a ti mesmo" do oráculo de Delfos e do logos de Heráclito - "Investiguei-me a mim mesmo": a noção de médico como «pai da Filosofia» avançada por Paracelsus retoma o dito de Hipócrates sobre o iatros philosophos isotheos - o médico digno de ser considerado filósofo deve ser denominado divino, no qual se idealiza visivelmente o auto-projecto na imagem do deus da cura, Apolo, aliás evidenciado no Juramento Hipocrático.
A nova ciência médica elaborada por Hipócrates pode ser caracterizada por dois traços fundamentais - além da sua rigorosa etiologia: a consideração do homem, da sua saúde e da sua doença, em relação não só com todo o seu organismo, mas também com toda a natureza que o rodeia, e até mesmo com o cosmos no seu conjunto, em especial com os fenómenos meteorológicos, donde resultou a designação medicina meteorológica dada ao seu método (1), e o profundo respeito pela natureza que define de modo quase religioso o grande médico, bem como a sua profunda compreensão racional da natureza (2). O Juramento de Hipócrates ajuda a compreender a adesão do médico ao habitus antropológico: a intervenção médica, com a sua tendência a melhorar a condição vital do homem e a curar, desperta no seio da ciência médica o problema da concepção do homem, cuja saúde se pretende restaurar. O ideal do meio com a função de uma mediação necessária no processo de restauração da saúde desempenha um papel fundamental na medicina hipocrática e na cultura médica antiga: a Fisiologia hipocrática elementar e a Patologia humoral - um contributo do genro de Hipócrates, Polibo (Vide Sobre a Natureza do Homem) - exibem uma orientação cosmológica, e o homem - enquanto natureza biológica, physis - está orientado para um nomos sociologicamente estilizado, atribuindo-se à medicina funções harmonizadoras. O corpo humano como imitação do universo é um pequeno mundo com todas as relações lábeis de equilíbrio, tais como as que são produzidas pela mudança das estações, pela circulação dos elementos, e pela mudança do clima: «Quem quiser aprender bem a arte de médico - escreve Hipócrates - deve proceder assim: em primeiro lugar há-de ter presentes as estações do ano e os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios, começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de cada região. Deve ter presentes também os efeitos dos diversos géneros de água. Estas distinguem-se não só pela densidade e pelo sabor, mas ainda por suas virtudes. Quando um médico - o médico ambulante ou nómada - chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve determinar, antes de mais, a posição que ela ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto demasiadamente orientado para a ciência - a ciência da Jónia, claro -, mas quem tal pensar pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com a mudança do clima» (Sobre os Ventos, a Água e os Lugares). A physis que garante a estrutura cósmica é uma força que age por trás sem se apresentar como pura força natural; pelo contrário, a physis apresenta o homem como um ser repleto de deficiências. A função da terapêutica é compensar essas deficiências do homem, de modo a devolver-lhe a saúde: «A arte dos médicos liberta apenas da dor, eliminando desta forma o que torna a pessoa doente e restituindo-lhe a saúde. Também a natureza pode fazer isto, aliás por si mesma, sem ser instruída por ninguém e produzindo sempre o que é correcto» (Hipócrates). Neste sentido, a medicina é essencialmente formação do homem, isto é, antropoplástica, e a sua techne therapeutike - arte terapêutica - consiste no cuidado privado do corpo e num serviço público em prol da saúde (politike). De acordo com esta concepção, a saúde como critério de equilíbrio ou simetria das forças na proporção adequada - a noção de isomoiria de Sólon, isto é, a ideia de que o estado são e normal depende da proporção idêntica entre os elementos fundamentais de um organismo e da natureza no seu conjunto - refere-se sempre à natureza, ao mesmo tempo que a ultrapassa para englobar todas as condições de vida e da sociedade, incluindo a luz e o ar, a comida e a bebida, o trabalho e o descanso, o sono e o estado de vigília, as excreções e as eliminações ou até mesmo os afectos da alma. Além do regime alimentar, incluem-se aqui - juntamente com a Dietética - as influências ou os efeitos do ar e da água, os grandes ritmos do trabalho e do lazer, do estar acordado e do sono, os exercícios corporais e a higiene sexual, o domínio das paixões, enfim tudo o que pode ser útil à saúde e capaz de recuperar o justo meio termo (mesotes) perdido pelo homem doente: o verdadeiro temperamentum é, pois, orientar o homem para uma Ortobiótica e para uma Macrobiótica, para a arte de prolongar a vida, dando-lhe maior profundidade, enriquecendo-a e imprimindo-lhe sentido.
O chamado Corpus Hippocraticum (Cf. E. Littré, 1839) reúne cinquenta e três escritos, mas nem todos eles são da autoria de Hipócrates: só os escritos mais antigos podem ser atribuídos a Hipócrates e, destes últimos, os mais notáveis são Sobre a Doença Sagrada e Sobre os Ares, a Água e os Lugares. Os três tipos de medicina identificados por Bourgey encontram-se presentes nesta colecção hipocrática, mas é relativamente fácil distinguir os escritos da escola de Cnido dos escritos da escola de Cós no que se refere aos tratados sobre as Doenças - ou Enfermidades. Além dos escritos já referidos, o Prognóstico, os livros I e III das Doenças, os escritos cirúrgicos - Sobre a Fractura dos Ossos e Sobre a Redução das Luxações ou da articulação dos membros - e a colecção dos Aforismos são geralmente atribuídos a Hipócrates (Cf. K. Deichgraeber, 1933). A ciência médica que surge na Hélade não está separada da vida geral do espírito e, à semelhança do que a Filosofia e a Poesia faziam, procura conquistar um lugar firme dentro da vida cultural, dirigindo-se ao homem como tal. Para alcançar este objectivo, os médicos gregos esforçam-se conscientemente por comunicar às pessoas os seus conhecimentos e por encontrar os meios e as vias necessárias para os tornar inteligíveis: as suas obras falam muito de leigos e de profissionais. A palavra leigo era usada pela Igreja medieval para designar os não-clérigos e mais tarde, em sentido lato, os não-professos. A palavra grega que exprime a mesma ideia é idiotes e, por causa da sua origem político-social, era usada para designar o indivíduo que não está enquadrado no Estado e na comunidade humana, vivendo a seu bel-prazer. O médico define-se por oposição ao idiotes como um demiurgo, isto é, como um homem de acção pública no plano social, e como um homem cuja actividade demiúrgica tem como objecto os leigos ou membros do demos, no plano técnico. O nomos hipocrático estabelece claramente esta distinção religiosa entre o profissional e o leigo, o iniciado e o não-iniciado: «Só aos homens consagrados se revelam as coisas consagradas; é vedado revelá-las aos profanos, enquanto não estiverem iniciados nos mistérios do saber». O corporativismo médico subjacente a esta distinção entre dois tipos de homens não levou o grupo profissional dos médicos - detentor de uma «ciência oculta» - a fechar-se à comunidade dos homens. Ao lado de uma literatura profissional à qual pertence a maior parte dos tratados médicos gregos, surgiu uma literatura médica especial que se destinava ao ensino dos leigos - ao grande público - e à própria propaganda médica. Os livros Sobre a Medicina Antiga, Sobre a Doença Sagrada, Sobre a Natureza do Homem, Sobre a Arte e Sobre a Dieta pertencem a este último grupo literário que tenta realçar a importância pública da profissão médica: «Esta techne - diz o autor Da Medicina Antiga - deve estar mais atenta do que outra qualquer à preocupação de falar aos profanos em termos inteligíveis». Aristóteles e Platão destacaram outra distinção entre o investigador profissional da natureza e a pessoa culta em matéria de ciência natural - o cidadão livre medicamente informado, mas coube a Platão ver na paideia médica, baseada num esclarecimento a fundo do doente, o ideal da terapêutica científica. Nas Leis, Platão distingue dois tipos de médicos - o médico dos escravos e o médico dos homens livres - em função do modo como cada um deles procede para com os seus doentes: «Se um destes médicos - dos escravos que correm duns pacientes para os outros sem fundamentar os seus actos - ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados dos das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se à natureza de todos os corpos, perder-se-ia certamente de riso e diria o que a maioria das pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: o que fazes, néscio, não é curar o teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas fazer dele médico».
Sobre a Doença Sagrada. Na Grécia Antiga predominava a crença de que determinadas doenças que se manifestam em perturbações espirituais ou psíquicas, nomeadamente a epilepsia e as fobias, se deviam à acção dos deuses ou de demónios: os pacientes que as exibiam eram vistos como se estivessem possuídos pelos demónios e a sua cura só podia ser realizada por meios religiosos ou mágicos. Hipócrates luta ferozmente contra esta representação religiosa da epilepsia no seu escrito Sobre a Doença Sagrada: a epilepsia não é, para Hipócrates, uma doença «mais divina nem mais sagrada do que as restantes doenças», mas uma doença que, tal como as outras, «tem uma causa natural que a produz». Os homens viram nela um acontecimento divino, «porque estavam indefesos perante ela e se espantavam com as suas diferenças em relação às outras doenças». Após ter recusado a natureza sagrada da epilepsia, Hipócrates ataca ferozmente os métodos terapêuticos religiosos usados nos templos para curar os doentes supostamente possuídos ou loucos, tais como exorcismos mágicos, cerimónias rituais, penitências e todo o dispositivo supersticioso com o qual se procurava expulsar os demónios. Todos estes dispositivos religiosos e mágicos usados para combater a epilepsia aniquilam o divino ao tentar submetê-lo. Tal como as outras doenças, a epilepsia é plenamente natural, sendo causada por uma enfermidade do cérebro, provavelmente provocada por um excesso de ar e, sobretudo, pelas mucosidades. Os seus sintomas mais evidentes são as convulsões, a espuma na boca, a agitação das pernas e dos braços, os dentes cerrados, os olhos revirados, a falha da voz, a sensação de afogo e o desmaio. Todos estes sintomas, e, em especial, o excesso e o defeito de movimentos, têm a sua causa numa doença do «órgão central» - o cérebro - em que intervêm também os fenómenos atmosféricos, «o aumento ou a diminuição do frio e do calor solar e a mudança das correntes de ar»: «Isto é o divino. Não se pode, pois, separar esta doença das demais doenças e considerá-la mais divina do que elas, pois todas as doenças são divinas e todas são humanas. Cada uma delas tem em si a sua natureza e a sua força», cabendo ao médico «saber estabelecer no homem, mediante a dieta, o seco e o húmido, o quente e o frio», e «reconhecer o momento correcto» para curar estas doenças por métodos naturais, «sem cerimónias de purificação e magia».
Sobre os Ventos, a Água e os Lugares. Este escrito divide-se em duas partes. Na primeira parte, Hipócrates expõe a sua teoria da medicina meteorológica: antes de iniciar a sua actividade numa cidade, o médico ambulante deve informar-se sobre o seu clima, a sua atmosfera e a natureza das suas águas, porque todos estes factores exercem grande influência sobre a constituição física e psíquica dos seus habitantes. Para Hipócrates, a meteorologia está intimamente ligada à medicina: o homem integra-se e insere-se plenamente na conexão cósmica que Hipócrates estuda minuciosamente na segunda parte do livro. O horizonte geográfico e etnológico de Hipócrates abarcava, além da Grécia e do Império Persa, o mundo mediterrânico desde o Norte de África até às costas orientais e setentrionais do mar Negro. A segunda parte deste escrito estuda a relação entre natureza e cultura nos diversos povos que visitou e, de certo modo, pode ser vista como uma antecipação da etnomedicina tal como hoje se pratica. Segundo Hipócrates, o clima moderado - a feliz «mistura das estações» - é o mais favorável à saúde e ao rendimento físico, ao temperamento e às faculdades psíquicas e cognitivas dos habitantes da região em que predomina. A comparação entre a Ásia e a Europa permite a Hipócrates mostrar a sua preferência - médica e cultural - pela Europa por causa do seu clima moderado. Apesar da fertilidade da Ásia, o seu clima é muito menos favorável à saúde: os seus habitantes debilitam-se facilmente e são menos guerreiros. Na Europa, o trabalho duro exigido pelo cultivo do solo torna as suas populações mais fortes e educa-as para serem resistentes e guerreiras. Hipócrates reconhece a influência do costume (nomos) - o despotismo na Ásia e a liberdade política na Europa - sobre a manifestação do comportamento bélico. As descrições das construções lacustres dos escitas - citas - da Cítia na vertente setentrional do Cáucaso e dos escitas nómadas das estepes do Sul da Rússia são admiráveis. Hipócrates chamou macrocéfalos aos escitas do mar de Azov, porque, quando nascem as suas crianças, eles praticam uma deformação do crânio para obter uma forma alongada considerada mais formosa. Além desta descrição dos crânios alongados, Hipócrates explica de um modo puramente natural a doença escita: o contínuo cavalgar dos escitas tem como efeito essa doença que consiste numa frequente impotência sexual dos homens. Com esta explicação natural da doença escita Hipócrates recusa a origem divina que lhe era atribuída.
Doenças. Independentemente de serem ou não da autoria de Hipócrates e dos médicos da escola de Cós, os livros das Doenças podem e devem ser definidos como tratados de patologia das doenças internas (medicina interna), que, ao nível puramente formal, realizam uma exposição pormenorizada das doenças, uma a uma, seguindo um esquema muito preciso: etiologia, sintomas, prognóstico e terapêutica. Cada um dos escritos desenvolve mais uma parte do que outra, podendo omitir alguma das partes canónicas, mas, de um modo geral, as partes do prognóstico e, logo a seguir, da etiologia são muito reduzidas, a parte da semiologia limita-se a descrições de sintomas muito esquemáticas, e a parte da terapêutica é, sem dúvida, a mais desenvolvida por causa da importância que tinha para a medicina grega. Os escritos da escola de Cnido distinguem-se dos escritos da escola de Cós pelo facto de privilegiarem a terapia, seguida pela semiologia, neste esquema dos quatro ingrenientes, a saber - terapia, sintomas, causas, prognóstico, sem explicitarem as relações entre causa>sintomas>cura. Os tratados da escola de Cnido reflectem uma medicina pragmática - a medicina dos médicos praticantes - que se preocupa fundamentalmente com a relação sintomas>tratamento por causa da necessidade de localizar uma doença e poder curá-la. Os tratados da escola de Cós reflectem, pelo contrário, uma medicina científica e positiva que, fazendo uso de abordagens teóricas gerais sobre as questões da medicina, procura elucidar a relação causa>sintomas. Porém, com o desenvolvimento dos conhecimentos fisiológicos, a etiologia acabou por modificar os tratamentos tradicionais usados pelos médicos da escola de Cnido e substituí-los por novos métodos terapêuticos - a medicina dietética, por exemplo, forçando-os a adoptá-los. Os livros 1 e 3 das Doenças pertencem a Hipócrates, uma vez que encontramos neles a medicina meteorológica: o homem insere-se não só no meio ambiente imediato, mas também no cosmos no seu conjunto. As doenças - o seu aparecimento, o seu decurso e o modo como a natureza do indivíduo reage às influências externas ou às perturbações orgânicas internas - devem ser observadas no quadro desta conexão natural determinada localmente. A terapia baseia-se sempre nesta observação da conexão natural. Os livros 2, 4 e 6 das Doenças são posteriores aos livros 1 e 3, mas - por causa do respeito pela natureza que evidenciam - é provável que procedam do legado de Hipócrates. Estes livros estão repletos de frases que expressam esse respeito pela natureza e exaltam a sua capacidade autónoma de sarar, tais como «a natureza descobre por si mesma e sem vacilação os seus próprios caminhos» ou «as constituições naturais são os médicos das enfermidades». Comparada com o imenso poder curativo da natureza, a eficácia terapêutica da arte do médico é muito débil e modesta. Vejo aqui o arqui-gérmen não só da ideia de auto-regulação vital mas também da noção de imunidade: quando agredido por factores externos ou internos, a natureza do organismo reage e descobre os seus próprios caminhos para restabelecer o tal ponto de equilíbrio que define o estado de saúde. Além desta exaltação do poder curativo natural, Hipócrates evidencia a relação entre a situação do corpo e os afectos da alma, celebrando o parentesco entre a serenidade do ânimo (eutimia) e a vida física equilibrada (medicina psicossomática), à semelhança do ensinamento de Demócrito. Para terminar esta secção, convém referir que Hipócrates elabora nestes livros breves histórias clínicas, onde nos informa sobre o desenvolvimento das doenças em certos pacientes e sobre o êxito ou o fracasso dos tratamentos administrados.
Prognóstico. Neste escrito, Hipócrates discute a questão de saber se o médico pode - e como - prever o desenrolar de uma doença e, especialmente, se a doença pode ser curada ou se conduz à morte, bem como a questão da determinação com base na experiência dos «dias críticos» de certas doenças. Tal como o vidente, o médico deve saber e poder dizer «o que foi, o que é e o que será», cada um deles utilizando os seus próprios «signos» ou «sinais». Porém, a diferença entre o vidente e o médico é descomunal, porque, enquanto o primeiro utiliza os signos traçados pelos pássaros para ler a vontade dos deuses e, deste modo arbitrário, prever os acontecimentos futuros, o médico utiliza os sintomas de uma doença para identificar e reconhecer as suas causas, a sua natureza e o seu decurso. No caso do vidente, não há qualquer tipo de conexão causal, mas, no caso do médico, o seu conhecimento pressupõe uma ordem natural firme e uma «lei», um cosmos. Com o surgimento da medicina hipocrática, o pensamento mítico cedeu o seu lugar ao pensamento científico.
Escritos Cirúrgicos. Os principais escritos cirúrgicos atribuídos a Hipócrates são, como já vimos, Sobre a Fractura dos Ossos e Sobre a Redução das Luxações. Convém ter presente que os médicos gregos, tanto os da escola de Cnido como os da escola de Cós, só recorriam à intervenção cirúrgica como «remédio alternativo» quando as outras terapias não obtinham o resultado esperado. O recurso alternativo à cirurgia visava devolver o membro desarticulado à sua situação natural - à sua «correcta natureza», através de uma «correcta intervenção»: a doutrina hipocrática sobre os métodos de cura estabelece-se «como uma lei justa». O conceito de «recto» ou «adequado» - «justo» - aplica-se sistematicamente à natureza e a actividade do homem só merece este qualificativo quando se orienta pelas pistas da natureza.
Aforismos. Os aforismos hipocráticos resumem em poucas palavras certas ideias-força que se adaptam a várias circunstâncias patológicas: os aprendizes da arte médica tinham de os aprender de cor e recitá-los em coro, numa época em que o material se reduzia ao pergaminho para os educadores e à cera para os alunos. Os aforismos de Hipócrates foram ensinados até ao século XVIII e muitos professores de medicina continuaram a estabelecer fórmulas fáceis de reter informação até ao século XIX, à semelhança do grande mestre da escola médica de Cós. Entre os inúmeros aforismos desta colecção hipocrática, destaco apenas o primeiro: «A vida é curta, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganadora, o juízo difícil. É necessário não só fazer aquilo que é conveniente, mas também esforçar-se para que o doente, os assistentes e as circunstâncias externas se conjuguem». A ciência médica é aqui vista - pela primeira vez na história do conhecimento racional - como um empreendimento interpessoal, que excede e ultrapassa o breve lapso da vida de um homem, isto é, como uma unidade espiritual construída por diversas gerações ao longo de grandes períodos de tempo, em constante ampliação do conhecimento da natureza e correcção das anteriores concepções erradas.
J Francisco Saraiva de Sousa