terça-feira, 3 de maio de 2011

Lembrar Louis Althusser

«O pensamento presente - o pensamento pós-moderno - é teoricamente tão fraco que só o reavivar das exigências elementares de um pensamento autêntico - o rigor, a coerência, a clareza - pode no devido momento contrariar o espírito do tempo de tal maneira que a sua simples manifestação não poderá deixar de impressionar os espíritos desamparados pelo curso do mundo». (Louis Althusser)

«Um idealista é um homem que sabe ao mesmo tempo de que estação sai e qual é o seu destino; sabe-o antecipadamente e quando apanha o comboio, sabe para onde vai, uma vez que o comboio o leva. O materialista, pelo contrário, é um homem que apanha o comboio em andamento sem saber de onde vem nem para onde vai. Gostava também, citando Dietzgen, que se antecipara a Heidegger que o ignorava, (de dizer) que a filosofia era «der Holzweg der Holzwege», o caminho dos caminhos que não levam a parte alguma - sabendo também que Hegel forjara antes a prodigiosa imagem de um «caminho que anda sozinho», abrindo-se ao adiantar o seu próprio trajecto pelos bosques e campos». (Louis Althusser)

Não pretendo analisar o pensamento filosófico e político de Louis Althusser (1918-1990): a sua leitura de Marx marcou fortemente o meu próprio pensamento filosófico, não tanto o seu conteúdo mas sobretudo o seu rigor. Um dos meus professores que detestava a clareza de pensamento acusava-me de ser um "cartesio" como o meu mestre, mas o que deveras o incomodava era o facto de utilizar o conceito althusseriano de processo sem sujeito para me distanciar da ideologia comunista: tanto nesse tempo como hoje o comunismo é, para mim, uma merda. Althusser sabia isso, como veremos a seguir, mas o seu optimismo - a confiança cega nos movimentos populares - não lhe permitiu ver que quando se tenta implementar a construção de uma sociedade comunista o resultado final nunca é o desejado: aceito criticar a visão escatológica da história atribuída estupidamente a Marx ou mesmo assumida por ele antes de ter fundado o chamado materialismo histórico, mas não consigo conceber um marxismo autêntico sem um suporte antropológico, como faz Althusser quando lança a tese do anti-humanismo teórico de Marx. Abdicar do comunismo - e Marx já era comunista antes de ser marxista - não significa romper com a luta revolucionária que visa a construção permanente de um mundo melhor (E. Bloch), aquela que Marx tematizou uma vez como revolução permanente: o que me distanciava de Althusser era o facto de ser mais dialéctico do que materialista, enquanto Althusser era mais materialista do que dialéctico. Hoje reconheço que esta diferença pode e deve ser «limada»: as obras póstumas de Althusser - em especial a sua auto-biografia - permitem fazer uma outra leitura da evolução do seu próprio pensamento filosófico e político. Se o materialismo é a filosofia que «não alimenta ilusões», como afirmou o último e derradeiro Althusser, então podemos repensar um novo materialismo: o materialismo dos encontros aleatórios que se inspira mais em Lucrécio do que em Demócrito - cujo determinismo é exorcizado - e Epicuro. Mas, em vez de acompanhar de fora as meditações de Althusser encarcerado na instituição psiquiátrica e no seu apartamento em Paris, prefiro dar-lhe a palavra.

1. Ler Marx. «Em suma, foi a partir de todo esse passado pessoal, destas leituras - as leituras de Spinoza, Pascal, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu e Hobbes - e associações, que me apropriei do marxismo como de um bem próprio e me pus a pensar nele, sem dúvida a meu modo, um modo que hoje reconheço não ser exactamente o de Marx. Vejo bem que não fiz mais do que tentar tornar os textos teóricos de Marx, muitas vezes obscuros e contraditórios, quando não lacunares em certos pontos importantes, inteligíveis em si próprios e para nós. Vejo bem que me movia nesta iniciativa uma dupla ambição sem apelo: primeiro e antes do mais não alimentar ilusões nem sobre o real, nem sobre o real do pensamento de Marx, e portanto distinguir neste aquilo a que chamei a ideologia (da juventude) e o pensamento ulterior, aquele que acreditava ser o pensamento da «realidade completamente nua, sem contributo externo» (Engels). «Não alimentar ilusões», esta fórmula continua a ser para mim a única definição do materialismo; e tentar, «pensando por mim próprio» (palavras de Kant retomadas por Marx), tornar o pensamento de Marx claro e coerente para todos os leitores de boa fé e exigência teórica. Naturalmente, isto conferiu uma forma particular à minha exposição da teoria marxista, de onde, em numerosos especialistas e militantes, a impressão de que eu fabricava um Marx meu, algo estranho ao Marx real, um marxismo imaginário (Raymond Aron). Reconheço-o de bom grado, porque de facto suprimia em Marx tudo o que me parecia não só incompatível com os seus princípios materialistas, mas também o que nele subsistia de ideologia, acima de tudo as categorias apologéticas da «dialéctica», ou até mesmo a própria dialéctica, que me parecia não servir nas suas famosas «leis» senão como apologia (justificação) retrospectiva do facto consumado do desenrolar-se aleatório da história para as decisões da direcção do Partido. Neste ponto nunca mudei, e é por isso que a figura da teoria marxista que propus, e que de facto rectificava o pensamento literal de Marx em numerosos pontos, me valeu incontáveis ataques de pessoas apegadas à letra das expressões de Marx. Sim, dou-me bem conta de ter como que fabricado para Marx uma filosofia diferente do marxismo vulgar, mas como esta fornecia ao leitor uma exposição já não contraditória mas coerente e inteligível, pensava que o objectivo estava alcançado e que eu me «apropriara» de Marx observando as suas exigências de coerência e de inteligibilidade. Era de resto a única maneira de «quebrar» a ortodoxia da II e desastrosa Internacional da qual Estaline fora herdeiro a cem por cento». (Althusser)

2. A Miséria do Pensamento Pós-Moderno. «Num tempo em que o primeiro «filósofo cabelo», «filósofo unha» (Althusser refere-se a Foucault e a Lyotard) - como escreveu Marx da «decomposição» da filosofia hegeliana - pensa que o marxismo está morto e definitivamente enterrado, em que reinam os pensamentos mais «estafados» contra o pano de fundo de um ecletismo inverosímil e de pobreza teórica, a pretexto de uma chamada «pós-modernidade» onde, de novo, «a matéria teria desaparecido» para dar lugar aos «imateriais» da comunicação (esta nova salada teórica, que naturalmente se vale de índices impressionantes, os da nova tecnologia), continuo profundamente apegado, não por certo à letra - à qual nunca me ative -, mas à inspiração materialista de Marx. /Sou optimista: creio que esta inspiração atravessará todos os desertos (teóricos) e que mesmo que assuma outras formas - o que é inevitável num mundo em plena transformação - há-de reviver. E também pela seguinte razão de peso: o pensamento presente é teoricamente tão fraco que só o reavivar das exigências elementares de um pensamento autêntico - o rigor, a coerência, a clareza - pode no devido momento contrariar o espírito do tempo de tal maneira que a sua simples manifestação não poderá deixar de impressionar os espíritos desamparados pelo curso do mundo. É por isso que aprecio muito por exemplo o esforço de um Régis Debray no sentido de lembrar apesar de tudo às pessoas que têm a pretensão de julgar, realidades tão elementares como estas: que o tempo do Gulag está apesar de tudo, nas suas formas maciças e dramáticas, ultrapassado na URSS; que a URSS tem mais em que pensar do que num ataque contra o Ocidente. É certo que Debray não vai muito longe, mas o simples recordar de factos tão patentes contra a imensa ideologia reinante tem uma função, como Foucault gostava de dizer, de «decapagem». E o que é a decapagem? A redução crítica da camada ideológica das ideias permitindo finalmente o contacto com o real «sem adições estranhas». Uma simples lição, evidentemente limitada, mas realmente materialista. Se acredito firmemente que sairemos do «deserto» actual, é porque no vazio de pensamento que sufoca os melhores espíritos, este simples recordar, na sua excepção e na sua coragem, pode ter efeitos duplicados. Quando temos a coragem de falar em voz alta no silêncio do vazio, fazemo-nos ouvir». (Althusser)

3. "O socialismo - e o comunismo? - é merda". «Não sei se a humanidade chegará um dia a conhecer o comunismo, essa visão escatológica de Marx. O que sei em todo o caso é que o socialismo, essa transição forçada de que Marx falava, é «merda» como o proclamei em 1978 em Itália e em Espanha perante auditórios desconcertados pela violência dos meus termos. Também a este propósito contei uma «história». O socialismo é um rio muito largo, de travessia perigosíssima. Em breve teremos uma imensa barca na areia: a das organizações políticas e sindicais para onde todo o povo pode subir. Mas para transpor os sorvedouros, é necessário um «timoneiro», o poder de Estado nas mãos dos revolucionários, e na grande nave é necessário que reine a dominação de classe dos proletários sobre todos os remadores estipendiados (existe ainda o salário e o interesse privado), senão tudo se vira! - a dominação do proletariado. Põe-se na água a nave imensa, e durante todo o percurso é preciso vigiar os remadores exigindo deles uma obediência estrita, afastá-los do seu posto se desfalecerem e substituí-los a tempo, ou sancioná-los. Mas se este imenso rio de merda for finalmente transposto, então até ao infinito será a praia, o sol e o vento de uma jovem Primavera. Toda a gente desce, já não há luta entre os homens e os grupos de interesses uma vez que já não há relações mercantis mas profusão de flores e frutos que cada um poderá colher para sua maior alegria. Explodem então as «paixões alegres» de Spinoza e até o «Hino à Alegria» de Beethoven. Sustentei nessa altura a ideia de que as «ilhotas de comunismo» existem hoje, nos «interstícios» da nossa sociedade (interstícios, termo que Marx aplicava - à imagem dos deuses de Epicuro no mundo - aos primeiros núcleos de mercadores do mundo antigo), onde não reinam as relações mercantis. Creio com efeito - e julgo neste ponto encontrar-me na linha de pensamento de Marx - que a única definição possível do comunismo - se um dia este existir no mundo - é a ausência de relações mercantis, portanto de relações de exploração de classe e de dominação do Estado. Creio que existem deveras no nosso mundo presente numerosíssimos círculos de relações humanas das quais se encontra ausente a mínima relação mercantil. Por que via estes interstícios de comunismo poderão conquistar o mundo? Ninguém pode prevê-lo - e pelo menos isso não se fará seguindo o exemplo da via soviética. (...) Sob este ponto de vista, não sou optimista, mas agarro-me à seguinte ideia de Marx: seja como for «a história tem mais imaginação do que nós», seja como for estamos reduzidos a pensar «por nós próprios». Não, não adopto a ideia de Sorel retomada por Gramsci: o cepticismo da inteligência mais o optimismo da vontade. Não acredito no voluntarismo na história. Em contrapartida, acredito na lucidez da inteligência e no primado dos movimentos populares sobre a inteligência. A esse preço, porque não é a instância suprema, a inteligência pode acompanhar os movimentos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles recaiam nas aberrações passadas e para os ajudar a descobrir formas de organização realmente democráticas e eficazes. Se apesar de tudo podemos alimentar alguma esperança de ajudar a inflectir o curso da história, é aqui que ela está e só aqui. Ou pelo menos não está nos sonhos escatológicos de uma ideologia religiosa que está a dar cabo de todos nós». (Althusser)

Anexo. Aos leitores portugueses, lembro-lhes que Louis Althusser acompanhou atentamente a revolução dos cravos - o 25 de Abril de 1974, tendo trocado correspondência sobre este tema com Luiz Francisco Rebello: Althusser, Louis & Rebello, Luiz Francisco (1976). Cartas sobre a Revolução Portuguesa. Lisboa: Seara Nova. Althusser esboça uma análise deveras interessante do fascismo europeu, nas suas ligações íntimas com o processo de acumulação do capital num mundo dominado pelo capitalismo monopolista: o 25 de Abril e a queda do fascismo colheram de surpresa o imperialismo mundial que se serviu do PS de Mário Soares para impedir o desenvolvimento em terras portuguesas de uma sociedade não-capitalista. Hoje o fascismo reinante tem um novo nome: chama-se neoliberalismo e fomenta o terrorismo e a exploração neste nosso mundo globalizado pelo capital financeiro, pelas guerras imperialistas lideradas pelos USA e pela NATO e pela comunicação ideologicamente distorcida. Hoje em dia o capitalismo é, na sua essência, terrorismo: o caso da Líbia está aí para o testemunhar. Afinal, quem é o inimigo da humanidade - Al Qaeda ou o capitalismo americano e mundial? Valerá a pena alimentar a gula financeira e especulativa de Wall Street e de Frankfurt? Valerá a pena satisfazer os luxos irracionais e privados dos especuladores em detrimento da humanidade que anseia por uma vida melhor? Valerá a pena sacrificar a soberania dos Estados Nacionais para engordar os chamados mercados financeiros e o FMI? O capitalismo financeiro conduz a humanidade até o precipício do abismo, isto é, até ao suicídio colectivo.

J Francisco Saraiva de Sousa

6 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fiz alguns esclarecimentos no parágrafo que antecede as três partes deste texto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este texto foi aqui no facebook anunciado:

Estou a reler duas biografias de Foucault e a auto-biografia de Althusser, o último dos quais marcou o meu pensamento. Depois de ter estrangulado a mulher (1980), Althusser viveu o encarceramento psiquiátrico até 1983. Viveu no seu apartamento até morrer em 1990. Vou ver se lhe dedico um texto.

É este texto e poderá haver mais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Curiosamente, Foucault que o visitava morreu em 1984 com Sida.

Foi através de Althusser que me interessei por Foucault: a primeira obra que li foi As Palavras e as Coisas, acabando por ler tudo.

A leitura destas obras angustia-me - por causa do contraste entre a vida universitária em França e a sua ausência em Portugal: as universidades portuguesas são espaços de/da mentira.

Portugal angustia qualquer ser inteligente! Em França, foram muitos os filósofos que se suicidaram - Althusser matou a mulher que desejava ser morta para se matar a si. E foram suicídios terríveis. Sebag que namorava a filha de Lacan deu um tiro na cabeça à 1:00 da madrugada e só às 3:00 disparou mais dois tiros fatais. O discípulo de Althusser - Poulantzas - matou-se depois de ter visitado o mestre, atirando-se para debaixo das rodas de um camião. O mestre de Althusser afogou-se... Outros enforcaram-se e um deles só foi descoberto passados alguns dias... Nas grandes cidades, morre-se sozinho e os corpos só são descobertos passado algum tempo - muito ou pouco. Poulantzas beijou Althusser quando saiu do hospital... o suicídio já tinha sido planeado.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A reacção de Eduardo Catroga - em nome do PSD - ao acordo entre o governo e a troika foi patética: há grisalhos que nunca aprendem. :(

Ernesto disse...

o futuro é mesmo muito tempo...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, esse é o título da obra de Althusser!