sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Mário Soares e Guerra Junqueiro

(Dia Mundial de Luta contra a Sida (1 de Dezembro de 2007): Leia o meu post A SIDA é uma Metáfora?. Em termos de epidemiologia, o conceito de grupos de risco deve ser tido em conta e bem compreendido, sem demagogia barata. É certo que a Sida contamina todos, mas existem grupos sócio-sexuais que, devido ao seu estilo de vida sexualmente promíscuo, entre os quais o dos bissexuais masculinos, facilitam enormemente o seu alastramento. O que está em causa e merece debate é a sexualidade compulsiva e predadora, contra a qual o uso do preservativo (sempre aconselhável) não é suficiente.)
«Os refractários eliminam-se. Ou aplaudir e ser cúmplice, ou protestar e ser vítima». (Guerra Junqueiro)
O novo programa da RTP1, em torno da figura heróica e profundamente humana de Mário Soares, de resto protagonizado pelo próprio, revelou, na sua primeira manifestação (29 de Novembro de 2007), mais um magnifico traço de Mário Soares: o seu gosto pela poesia e pensamento de Guerra Junqueiro, uma preferência que aparentemente espantou a jornalista do «Eixo do Mal», mais voltada para Fernando Pessoa e Samuel Beckett. Foi numa livraria de Paris que Mário Soares revelou esta sua vontade de ver Guerra Junqueiro recuperado para o pensamento português, após ter comentado algumas obras, em particular as de Victor Hugo e de Sade, ambas recheadas de belas ilustrações.
Como sou um dos poucos portugueses que admira verdadeiramente Guerra Junqueiro, aproveito esta ocasião para reconduzir os meus amigos e leitores online para alguns textos editados sobre esta ilustre figura nacional, os quais dedico ao «Grande Pai da Democracia Portuguesa»: Mário Soares.
Os textos são os seguintes: Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia, onde elaboro uma nova chave de leitura da obra de Guerra Junqueiro, Um Poema contra a Luso-Corrupção, onde deixo Guerra Junqueiro poetizar a nossa luso-corrupção, A Intencionalidade do Luso-Mal, onde recordo uma expressão feliz e sempre pertinente de Guerra Junqueiro, e Fim das Ideologias Políticas?, onde mostro que a linguagem deste republicano conserva o seu potencial negativo para retratar a actual sociedade portuguesa: a «ditadura do engorda». Estes textos foram editados neste blogue.
No blogue «CyberPhilosophy» editei, pelo menos, mais dois textos: Poesia do Sem-Abrigo na Era Digital e Regresso ao Lar: Desconstrução de Portugal. Estes últimos fazem parte de um projecto mais geral, a desconstrução da «mitologia nacional» que pretende apresentar-se como "filosofia especificamente portuguesa". O projecto está mais ou menos concluído, mas precisa de ser corrigido, tarefa que não suporto, pelo menos em relação aos meus escritos.
Anexo: Mário Soares disse que «Os Miseráveis» de Victor Hugo estavam na origem da sua sensibilidade pela causa socialista. Aqueles, sobretudo os mais jovens, que criticam o marxismo sem o conhecer, deviam ler também esta obra de Victor Hugo e, a seguir, «A Situação da Classe Trabalhadora em Inglaterra» de F. Engels, para compreenderem que a maior parte da população mundial deriva dessa classe humilde e pobre, até mesmo os nobres no seu tempo eram descendentes de "pelintras anónimos", cuja memória foi esquecida pela História. Muitas outras obras deviam ser lidas e relidas. O desconhecimento da história, enfim da historicidade e da temporalidade, pode ser interpretado como um traço esquizofrénico da identidade pós-moderna: o vagabundo.
J Francisco Saraiva de Sousa

Filosofia Clínica e Reconstrução da Identidade

No post anterior apresentei uma obra de K.J. Gergen e, neste post, quero desafiar os filósofos a profissionalizar a sua actividade, pelo menos em alguns sectores. Uma área de profissionalização é ou deveria ser em Portugal a Filosofia Clínica. Por isso, recomendo a leitura de outra obra de Sheila McNamee e Kenneth J. Gergen, «Therapy as Social Construction» (1995).
Esta obra revela a riqueza de uma abordagem construtivista social do processo terapêutico, sobretudo no domínio da saúde mental, destacando a noção de vidas construídas socialmente, com fortes implicações nas nossas noções de eu, identidade e projecto de vida. Estas noções não são determinadas por um único "roteiro cultural", mas sobredeterminadas pelo contexto social e cultural do qual não podem ser dissociadas. Isto significa que a terapia construtivista social assenta num diálogo entre o terapeuta e o "cliente": estes trabalham juntos na co-criação de novas histórias de vida mais satisfatórias.
Mas esta é apenas uma perspectiva da terapêutica, aliás muito circunscrita ao domínio das chamadas "doenças mentais", como se nas outras doenças não fosse igualmente necessário "cuidar da alma" dos pacientes. A Filosofia apresenta outras abordagens, nomeadamente a fenomenológica, e não precisa que outros (psiquiatras, psicólogos clínicos, assistentes sociais, etc.) as apliquem em seu lugar: A filosofia académica deve zelar pelo futuro dos seus membros (alunos).
Para que os meus leitores não fiquem perplexos, darei alguns exemplos: A filosofia de Marx exerceu uma influência decisiva sobre o pensamento de Erich Fromm e de Wilhelm Reich, a filosofia dialéctica de G. LuKács permitiu a Joseph Gabel compreender melhor o mundo da loucura (a esquizofrenia), a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre foi assimilada pelo movimento da antipsiquiatria, liderado por R.D. Laing e D.G. Cooper, as terapias cognitivas (Aaron T. Beck) estão muito marcadas por determinadas tendências da filosofia da mente e pelo cognitivismo, a etnopsiquiatria (Devereux) ou a antropologia psicanalítica de Géza Róheim são profundamente marcadas pela filosofia, a psicologia de Karl Jaspers é já um clássico da psiquiatria, bem como a de William James, e até mesmo a filosofia existencial de Heidegger deu origem à analise existencial aplicada à psiquiatria por L. Binswanger ou às brilhantes análises de E. Minkowski, para referir apenas os casos mais evidentes dentre centenas deles que percorrem toda a história conjunta da medicina e da filosofia. O problema é que a filosofia ensinada nas Universidades portuguesas desconhece realmente a sua própria história e riqueza conceptual.
J Francisco Saraiva de Sousa

Kenneth J. Gergen: O Eu Saturado

Vou apresentar outro autor, outro pensamento, não de forma exaustiva, mas lacunar e crítica. Kenneth J. Gergen é um psicólogo social, cujo percurso intelectual revela a superioridade da Filosofia sobre as chamadas ciências sociais e humanas, bem como a necessidade da Filosofia socorrer a própria ciência dos ataques relativistas: as suas obras são efectivamente obras de filosofia, a que ele acrescenta «pós-moderna». Mas, quer seja pós-moderna ou não, a obra que quero apresentar, «The Saturated Self: Dilemmas of Identity in Contemporary Life» (1991), trata de um assunto que me é particularmente grato: uma teoria do Self elaborada a partir do construtivismo social, fortemente marcado pela obra de Peter I. Berger e Thomas Luckmann, «A Construção Social da Realidade», e, segundo o autor, com implicações terapêuticas, de resto tratadas noutra obra.
A tese de Gergen é a seguinte: «O processo de saturação social está a produzir uma mudança profunda no nosso modo de compreender o eu». O século XX foi dominado por dois vocabulários do eu: a visão romântica do eu e a visão moderna do eu. A visão romântica do eu, herdada do século XIX, atribui a cada indivíduo traços de personalidade, tais como paixão, alma, criatividade ou integridade moral. Este vocabulário é essencial para o estabelecimento de relações comprometidas, amizades fiéis e objectivos vitais. Nos inícios do século XX, o vocabulário romântico foi posto em perigo pelo surgimento do vocabulário moderno do eu, segundo o qual as principais características do eu não são uma questão de intensidade, mas fundamentalmente uma capacidade de raciocínio para desenvolver os nossos conceitos, opiniões e intenções conscientes. As pessoas normais são, segundo este vocabulário, previsíveis, honestas e sinceras. Por isso, os modernistas acreditam no sistema educativo, na vida familiar estável, na formação moral e na escolha racional de determinada estrutura familiar. Contudo, nos finais do século XX, estas duas concepções do eu começaram a desmoronar-se, devido à erosão das bases sociais que as sustentam, através das forças da saturação social.
Estas forças são fundamentalmente as tecnologias da saturação social (de baixo nível e de alto nível) que fazem com que o indivíduo mergulhe cada vez mais no mundo social, expondo-o, como acontece na comunicação mediada por computador (tecnologia de alto nível), às opiniões, valorizações e estilos de vida de outras pessoas distantes. Esta imersão profunda num mundo social plural e cada vez mais global leva-nos até uma nova consciência do eu, a visão pós-moderna do eu. A saturação social invade a vida quotidiana, levando-nos a imergir cada vez mais no nosso meio social e a reflecti-lo completamente. Gergen fala mesmo de assédio do eu e de colonização do nosso próprio ser, a qual reflecte a fusão de identidades parciais por obra da saturação social, começando a surgir um estado multifrénico no qual os indivíduos experimentam a vertigem da multiplicidade ilimitada. Ambos os processos, a colonização do ser próprio e o estado multifrénico, constituem prelúdios significativos da consciência pós-moderna. O resultado é a erosão do eu identificável. A saturação social proporciona-nos uma multiplicidade de linguagens do eu incoerentes e desvinculadas entre si. Aliás, para Gergen, o pós-modernismo nada mais é do que esta pluralidade de vozes que rivalizam entre si pelo direito à existência e que competem para ser aceites como expressão legítima do verdadeiro e do bom.
Não pretendemos criticar esta teoria do Self proposta por Gergen, mas apenas chamar a atenção para o facto dos filósofos conservadores e comunitaristas, tais como Alasdair MacIntery, Charles Taylor ou mesmo Paul Ricoeur, já terem reagido a este desafio dos tempos globais, enquanto os filósofos liberais e socialistas de Esquerda, salvo raras excepções (Anthony Giddens, Christopher Lasch, Berkeley Robert Bellah, Richard Sennett ou mesmo Michel Foucault), ainda permanecem muito indiferentes à questão do Self e do sentido. É certo que já existem reacções interessantes, sobretudo no mundo anglo-saxónico, muitas das quais analíticas (John Searle) e logicistas (P.F. Strawson), mas a Esquerda está muito voltada para a glorificação do Self Fluído, não-sólido, como se essa liquidificação e fragmentação do eu fosse saudável, o que está longe de estar provado. Mas é muito provável que um tal estudo deva questionar seriamente a própria validade do modelo construtivista social. Com efeito, os dados que recolhi ao longo da minha cyberpesquisa não apontam necessariamente nessa direcção: a erosão do eu identificável (a mesmidade de John Locke). Mas este assunto, bem como a elaboração de políticas de renovação do eu e de autenticidade, para as quais as obras de Gergen são fundamentais, será discutido no meu blogue «CyberPhilosophy», logo que tenha tempo, levando em conta os nossos próprios clássicos, tais como L.S. Vygotsky, A.R. Luria, Mikhail Bakhtin e a sua semiótica social, bem como a australiana, e sobretudo um leitor atento de Marx, George Mead, além de Freud e de Fromm. Pensou em Pavlov e na sua reflexologia? Engana-se: esse deixo-o aos zombis de Daniel Dennett.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Helmuth Plessner: O Riso e o Choro

Portugal é um país pobre em termos editoriais e isto porque os seus universitários são geralmente pessoas pouco dotadas intelectual e culturalmente, sobretudo no que se refere à Filosofia e às Ciências do Espírito Humano. Contudo, apesar desta ausência maldosa de cultura, o filósofo que vos quero apresentar foi vítima da Segunda Guerra Mundial, que o privou do contacto com os meios académicos alemães. Quando fiz a minha tese de mestrado, ninguém em Portugal, nomeadamente na Universidade, conhecia a antropologia biofilosófica de Plessner ou mesmo a de Arnold Gehlen. E, como sucede nestas ocasiões, aquele que procura inovar, neste caso eu próprio, é, de algum modo, «penalizado». Os nossos académicos não suportam a novidade e a profundidade científica. Sentem-se ameaçados, provavelmente confrontados com a sua terrível mediocridade, e reagem negativamente, de modo a conservar o seu falso status. Os estudantes inteligentes, verdadeiramente inteligentes, devem ser avisados sobre este traço da personalidade académica nacional; caso contrário, se não souberem «dar palha ao burro» (expressão de um Professor de NeuroAnatomia, meu amigo), são simplesmente liquidados.
A obra de antropologia de Plessner (1892-1985) é muito superior à analítica existencial de Heidegger e, no entanto, este último é muito mais conhecido do que Plessner. Em 1928, Plessner publicou a sua primeira e maior obra de antropologia filosófica, «Die Stufen des Organischen und der Mensch». E, mais tarde, no seu exílio holandês, em 1941, publica «Lachen und Weinen» (O Riso e o Choro), que pode ser vista como uma actualização da sua obra anterior, onde Plessner procura mostrar a superioridade da sua reflexão antropológica sobre a filosofia existencial de Heidegger. Por isso, optámos pela sua apresentação, de resto mais simples de explicar do que o seu clássico de antropologia.
Numa das suas últimas obras, «Conditio Humana», Plessner resume a sua concepção do riso e do choro, quando afirma que ambos são reacções perante alguns limites (a noção de Jaspers de situação-limite) contra os quais tropeça a nossa conduta. Isto significa que são manifestações de uma impotência humana que derivam basicamente do carácter elementar da nossa vida e dependem da estrutura do comportamento humano, constituindo os seus limites. De todas as possibilidades miméticas do homem, o riso e o choro são as mais imprescindíveis, porque revelam a sua incapacidade de articular respostas mediante as expressões «normais», aquelas que se exprimem através da linguagem e da formulação de discursos baseados na abstracção e na conceptualização, perante os desafios desmesurados da existência humana. O riso e o choro são, portanto, sintomas de desorientação, de paralisação, de incapacidade de estabelecer relações significativas que permitam a continuação do trajecto vital.
Segundo Plessner, o significado destas expressões emotivas só pode ser «compreendido» quando indagamos as relações que o homem mantém consigo mesmo e sobretudo com o seu corpo. As gargalhadas ou o choro copioso produzem uma verdadeira fractura no equilíbrio psico-físico do homem. Este perde o controle sobre si mesmo e mostra-se incapaz de se expressar da maneira habitual, porque é obrigado a fazer frente a situações e a emoções que o lançam para fora de si e que o forçam a superar os limites da normalidade quotidiana. Como escreve Plessner: «O riso responde à paralisação do comportamento pela desequilibrada equivocidade dos pontos de contacto, e o choro, à paralisação do comportamento pela negação da relatividade da existência». Isto significa que o homem, nestas situações, se retira ante as situações insólitas e delega no corpo (Körper) a responsabilidade de lhes responder com expressões descontroladas. Plessner distingue o riso (Lachen) do sorriso (Lächeln): No sorriso, «o homem mantém a distância em relação a si mesmo e ao mundo e faz questão de a mostrar jogando com ela. No riso e no choro, o homem é a vítima da sua altura excêntrica, no sorriso dá-lhe expressão».
Para evitar analisar os conceitos fundamentais da sua antropologia, diremos, a título de resumo, que o riso e o choro são situações críticas que fracturam a unidade da pessoa e, consequentemente, dão origem a comportamentos fragmentados, portanto, de ruptura. Deste modo, o homem perde o controle do seu corpo, os processos corporais emancipam-se e produzem-se reacções imprevisíveis, que quebram a sua postura habitual. O resultado desta quebra do equilíbrio entre o físico e o psíquico, entre o corpo e a mente, é precisamente a perda do autocontrole. Na explosão súbita do riso, interrompe-se a relação entre o eu e o seu corpo, ficando o corpo completamente livre do controle do eu. No abandono ao choro, é o próprio homem que renuncia à relação com o corpo, que passivamente se deixa arrastar pela emotividade. Para finalizar, diremos ainda que no riso e no choro revela-se, de modo evidente, a natureza dual do ser humano, que se apresenta no equilíbrio instável de ser um corpo e de ter um corpo. Nesta distinção subtil, a posição excêntrica do homem no reino orgânico, revela-se o anticartesianismo da antropologia de Plessner.
Penso ter cumprido a minha missão de apresentar brevemente uma aplicação concreta da antropologia filosófica de Plessner, uma das maiores antropologias do século XX, desconhecida em Portugal, e, ao mesmo tempo, ter acusado os intelectuais portugueses de serem também responsáveis pela pobreza material e espiritual do povo português. No fundo, eles atrofiam o espírito nacional para salvaguardar a sua vidinha metabolicamente reduzida, de modo a não serem ameaçados pelo advento do espírito entre as almas populares. Cabe à política cultural socialista do actual governo socialista de José Sócrates mudar este estado de dominação e de exploração ideológica do povo e tornar a cultura superior acessível a todos os portugueses.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Conferência sobre o Self

Em 2005 fui convidado por um professor para apresentar uma conferência sobre comunicação numa Escola Secundária do Porto. Cheguei à Escola e fui bem recebido pelos seus professores, em particular pela sua Presidente do Conselho Directivo. Achei a recepção patética, mas só quando chegámos à sala é que tomei consciência que o público-alvo da conferência não eram os alunos mas a «nata de professores da Escola». Quem conheça bem a forma de funcionamento do ensino em Portugal, sabe o que isso significa. Contudo, preferi provocar o luso-destino triste e vazio e improvisar uma conferência sobre comunicação e self, breve, densa, hipercrítica e estimulante, para motivar os professores. E como é difícil motivar professores! Muito difícil!
Durante a exposição detectei algum vazio nos olhares dos meus ouvintes, o que também não é invulgar quando se lida com professores portugueses. Por isso, procurei sempre ser claro e provocativo, mas evitando olhar muito para eles, para não me distrair ou perder a «pica». Quando terminei, esperava que me colocassem questões pertinentes que ajudassem a clarificar melhor o meu pensamento. Mas só escutei elogios deslocados e pensei: «Que burrinhos!» Afinal, como pretendia revelar a multiplicidade de "eus", mantive um deles em inglês, sem o traduzir: o próprio self. E os meus ouvintes, como verifiquei no final, não sabiam o que significava self, continuando a ensinar, ou melhor, a fingir que ensinam até hoje, com aquele ar de "ambulantes vazios" mas extremamente nefastos, aguardando unicamente a reforma. Em Portugal, ser professor significa aguardar a reforma. De facto, ninguém pode acusar os professores de não serem reformistas!
Desde esta conferência fui obrigado a repensar a minha teoria do Self e, neste cenário metabolicamente reduzido, interrogo-me se por detrás daqueles rostos vazios e dos movimentos patéticos existe algo semelhante a um Eu. Confesso que ainda não consegui detectar esse eu e, por isso, dedico-me a estudar a psicologia do zombi (morto-vivo), isto é, da ausência de um eu vivo e actuante, obrigando-me a denunciar os luso-discursos patéticos produzidos por figuras patéticas no domínio da filosofia da mente e das neurociências, e confrontando-os constantemente com a sua figura carismática, Daniel Dennett, o feiticeiro vodu.
J Francisco Saraiva de Sousa

Socialismo Biológico

Desde a minha adolescência, mais precisamente desde a infância, trabalho num projecto ambicioso: repensar o socialismo, de modo a livrá-lo dos equívocos e dos erros cometidos pela Esquerda ao longo da sua história. Este projecto tem sido alvo de uma grande oposição, a começar pelos professores, com quem ingenuamente o partilhei, nas suas linhas muito gerais e vagas.

Afinal, medindo bem as coisas, não era assim tão ingénuo como acabei de dizer, porque sempre soube, mesmo antes de ler Jean-Paul Sartre, que não devia acreditar nos outros, sobretudo quando os outros são portugueses. Citei Sartre para despistar a mente tortuosa de alguns eventuais leitores, mas podia ter dito que a minha acção e pensamento já eram orientados por uma ideia biológica do socialismo, de resto um termo que não me atrai muito, dado colidir com a minha noção biológica de self. Mas, como resolvi aceitar a autoridade de Marx e permanecer-lhe no fundamental fiel, mantenho o termo socialismo, até porque o partido político com quem tenho afinidades é o Partido Socialista.

Afinal, Marx e Engels elogiaram a obra de Darwin e o último comparou a descoberta de Marx no domínio da História à descoberta de Darwin no domínio da Vida. Existe, portanto, um laço estreito entre o fundador do "socialismo científico" e o pensamento biológico, de resto bem estudado por Engels nalgumas páginas magníficas da sua obra tremendamente mal-tratada, «Dialéctica da Natureza», uma das obras clássicas que estudei cuidadosamente, mesmo antes de ler «O Capital» de Karl Marx. Ao contrário das correntes marxistas ortodoxas, nunca neguei este laço entre o marxismo e a biologia e sempre condenei os disparates soviéticos anti-evolucionistas e anti-geneticistas. O "genoma" não me era nada estranho e foi esta "intimidade genómica" que me protegeu e me impediu de abraçar abertamente qualquer tentativa real de realização do socialismo, sentindo repulsa pelo «comunismo». De facto, o meu a-comunismo foi justificado pelo desenrolar da História.

É evidente que sempre estive mais próximo do chamado marxismo ocidental do que do marxismo soviético, cuja análise foi brilhantemente feita por Herbert Marcuse numa obra com o mesmo nome. Acabo de mencionar o filósofo que mais me marcou durante um período difícil: trabalhar secretamente no meu projecto e continuar a sobreviver num meio hostil e maldoso, a sociedade portuguesa. À distância, Marcuse dava-me razão e ânimo para continuar a lutar pela reformulação do socialismo. Aquele ânimo que raramente encontramos nas Universidades Portuguesas, enfaticamente definidas por uma amiga como «antros onde a filosofia (entendida, primordialmente, como actividade de questionamento e reflexão dos valores estabelecidos) perece aflitivamente - salvo raríssimos intentos» (Aveugle.Papillon, no post anterior). Mas os ministros da educação, da cultura e da ciência parecem fingir ignorar esta percepção nacional do ensino universitário, talvez por também eles serem ofuscados pela sua própria inércia mental, coberta de pequenos saberes práticos transmitidos em fórmulas burocráticas, pouco criativas e a-críticas.

Já editei neste blogue um post em que apresento brevemente o pensamento deste meu mestre: Sociedade Obscena, e noutro post defendi a necessidade de construir uma política socialista do sentido, Socialismo e Políticas do Sentido, numa perspectiva meramente sociológica, sem revelar a sua base biológica. Marcuse forjou a expressão "socialismo biológico" e procurou esboçar uma política radical, mas não foi totalmente bem sucedido, em parte devido ao freudo-marxismo protagonizado pela Escola de Frankfurt, em parte devido à animosidade hermenêutica que os mestres de Frankfurt nutrem pela biologia da evolução, em particular pela teoria da selecção natural de Darwin, de resto bem clara na obra de Horkheimer, «O Eclipse da Razão».
Já sabia tudo isto na altura e, agora, que possuo a teoria do socialismo biológico não a quero partilhar com pessoas muito más, os portugueses invejosos. Talvez aconteça algum evento que me leve a mudar de ideias, mas até ao momento oculto quase todas as pistas que conduzem a esse meu pensamento. Trabalho sozinho em circuito ultra-fechado. Contudo, se surgir um movimento de resistência contra as políticas da educação e se os estudantes universitários se libertarem do medo e tiverem coragem para denunciar a incompetência da maior parte dos seus professores, sobretudo os de Filosofia, como fazem anonimamente, em privado ou via e-mail, talvez essa revolta conduzida de modo justo e responsável me convença a abrir o jogo. Até lá considero-os pessoas metabolicamente reduzidas e pouco corajosas, incapazes de vencer o medo que destrói as suas mentes e a gula oportunista que os move. Lembrem-se que, afinal, são meros animais e, se já pensam como as classes dirigentes, a vossa vida será uma ilusão inexoravelmente condenada a perecer, sem nunca terem admirado tudo aquilo que constitui a Vida. (É evidente que "brinco" com os meus leitores: muitos dos princípios do novo socialismo que defendo têm sido expostos em quase todos os meus posts, alguns mais fundamentados do que outros, e a "crítica transcendente" que uso a par da "crítica imanente" é claramente orientada pela nova problemática.)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Prós e Contras: O Trabalho

O meu post anterior era uma provocação dirigida ao programa «Prós e Contras» dedicado ao trabalho (26 de Novembro de 2007) que ainda está a decorrer. Tinha a ideia de desconstruir as concepções que foram e continuam a ser expostas, de resto muito pouco discutidas. Mas mudei de objectivo, preferindo ser mais positivo ou, como se diz, mais «optimista». Por isso, vou alinhavar alguns pontos da discussão, dando-lhes um rosto, sem deixar transparecer as minhas análises psicológicas e políticas das pessoas envolvidas. Contudo, sem o pretender intencionalmente, já tomei uma posição crítica, tal é o meu hábito de usar a «negação determinada», isto é, o «procedimento» crítico inventado por Hegel e levado ao extremo da perfeição por Adorno.
O engenheiro que falou da "qualificação e inovação" lançou algumas provocações, começando por dizer que se tinha perdido duas horas do programa a debater aquilo que todos sabem: o "diagnóstico". Logo a seguir, afirma que o problema não diz respeito ao "capital" e ao "trabalho", mas envolve a sua própria classe profissional: os técnicos e os engenheiros, embora depois tenha sido obrigado a reconhecer que a "economia do conhecimento" não dá empregos e não resolve todos os problemas do trabalho, da segurança e do crescimento económico. Se excluirmos a emoção tipicamente portuguesa, até podemos estar de acordo no que se refere à qualificação e requalificação dos trabalhadores e dos empresários, como lembrou Vítor Ramalho, mas será que o engenheiro dos computadores é a pessoas mais indicada para elaborar políticas? A mentalidade de engenheiro é extremamente instrumental e um dos problemas que deveria ter sido debatido é precisamente a racionalidade instrumental e o seu impacto negativo sobre a sociedade, o homem, a vida e a natureza. Os conhecimentos técnicos são necessários para modernizar muitas empresas, tradicionais e as novas empresas tecnológicas, mas não lhes compete (aos técnicos) elaborar as orientações políticas e, muito menos, culturais e civilizacionais da nação e da Europa.
Com esta indicação, vamos ao encontro da "profundidade" exigida por Vítor Ramalho: a economia não é um fim, mas um meio da política, isto é, a economia deve estar subordinada à política. As decisões são políticas e são elas que devem ser objecto da discussão pública. Aliás, devemos ir mais longe e dizer que é necessário libertar a política dos constrangimentos ideológicos dos conhecimentos técnicos e adaptativos de todo o género, incluindo as ciências económicas, administrativas, empresariais, etc. Estes conhecimentos são instrumentos usados pela ideologia dominante, precisamente a que está ligada ao poder económico e financeiro, para apresentar a situação como incontornável: a "crise permanente" (Carvalho da Silva) que amedronta as pessoas, sujeitando-as à "fatalidade" de estarem sempre confrontadas com a mera subsistência e sobrevivência e, por conseguinte, anulando-as como "animais humanos", com interesses que possam transcender a garantia sempre precária do seu mero metabolismo. É certo que a gestão corrente de um Estado moderno exige estes conhecimentos técnico-burocráticos, mas não compete aos seus portadores ditarem orientações de fundo, fazendo-as passar como se fossem políticas. Este aspecto da actual governação dos Estados europeus está a destruir a própria política.
Por isso, a aposta na formação e requalificação, isto é, o plano tecnológico, levada a cabo pelo governo socialista de José Sócrates, não pode ser reduzido à sua dimensão estritamente tecnológica, economicista e profissional. Sem uma visão política autónoma, assente na tradição ocidental e na sua cultura superior, o plano tecnológico é cego e pode negar a vida a gerações de pessoas que, segundo o seu "fatalismo" subjacente, tiveram o azar de nascer muito antes da globalização, de resto reduzida à sua dimensão económica e financeira, enfaticamente caracterizada por António Saraiva como a "voracidade dos tempos globais". É função da política esclarecida, sobretudo da política socialista, fazer justiça e dignificar a vida, protegendo-a destes "assaltos metabólicos e gordos de mau colesterol" que não olham a meios para alcançar fins pouco honestos e éticos, portanto, pouco racionais, colocando o mundo em perigo.
No plano do conhecimento, há uma hierarquia que deve ser conservada, porque foi ela que configurou e deu continuidade à aventura ocidental: A filosofia é a matriz da nossa civilização e cabe-lhe a ela orientar os seus destinos. Até a política deve ser sua «escrava». Quem não entende esta evidência histórica, não merece respirar o ar que respira. E, nesse caso, quando o inimigo teima em levar a sua avante, não podemos descartar a hipótese de uma "ditadura pedagógica" (Platão, Marcuse). A justiça é um bem comum, pertence a todos e não a uns poucos, e ela está em perigo quando a democracia é usada para camuflar uma oligarquia cleptocrática, cujo eixo circula através dos economistas, dos advogados e dos engenheiros: a nova classe dirigente. (De resto, todos os "factores" são importantes e todos eles devem ser levados em conta. de modo a salvaguardar a liberdade, a justiça e a fraternidade.)
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Trabalho e Lazer

«O trabalho, dizem os economistas, é a fonte de toda a riqueza. É-o sem dúvida… conjuntamente com a natureza que lhe fornece a matéria que ele transforma em riqueza, Mas é infinitamente mais ainda. É a condição fundamental primeira de toda a vida humana, e é-o a tal ponto que podemos dizer: o trabalho criou o próprio homem». (F. ENGELS)
Marx mostrou que, na era da industrialização, o trabalho tornou-se trabalho assalariado e, como tal, deixou de estar associado às necessidades humanas imediatas e entrou no processo anónimo de produção. O trabalhador converteu-se numa peça da engrenagem produtiva, desapossada de poder e de vontade. O trabalho passou a valer pelo salário e, deste modo, tornou-se alienante e inumano. É certo que o trabalho garante a possibilidade de consumo (sensação de satisfação), mas também conduz ao vazio e à frustração (sensação de insaciabilidade).
A era pós-industrial, a nossa era, é confrontada com o aumento do desemprego, do trabalho precário e a tempo parcial e, simultaneamente, com o crescente trabalho qualificado. Actualmente, o trabalho deixou de ser um mecanismo capaz de promover a «igualdade social», tornando-se um factor de desigualdades, porque o seu valor continua a ser o dinheiro que se obtém pela venda da força-de-trabalho, e o emprego é cada vez mais um bem escasso. É, portanto, o poder aquisitivo que determina o valor do trabalho. O valor deixou de ser valor-de-uso e tornou-se valor-de-troca. A qualidade de vida passou a ser determinada pelo dinheiro: "Mais dinheiro, mais qualidade de vida".
Além disso, o trabalho vale em função do papel social do trabalhador: a classe trabalhadora, entregue ao trabalho produtivo dos serviços, e a «classe dominante», dedicada às profissões liberais e ao poder político e executivo empresarial e bancário, são dois universos absolutamente distintos, que oscilam entre o trabalho precário e os profissionais de colarinho-branco que autolegitimam injusta e abusivamente o seu estatuto superior. Cava-se, assim, um fosso entre aqueles para quem o trabalho é fonte de subsistência, sempre precária porque indefinida e escassa, e os que encontram supostamente no trabalho a sua «auto-realização».
A Doutrina Social da Igreja Católica defende a ideia de que o trabalho é «fonte da identidade e da auto-realização humanas», aliás uma ideia «marxista», que merece ser pensada, embora a questão que clarifique o sentido do trabalho possa ser outra, aquela colocada por Friedmann: «O homem da civilização do futuro, já nascido depois da fábrica atómica e da nova tecnologia, poderá vir a realizar-se e a encontrar a sua felicidade no tempo livre?». Com efeito, o trabalho só se tornou um tema digno de reflexão filosófica com a economia política clássica (Ricardo e Adam Smith) e, sobretudo, com as filosofias de Hegel e de Marx, este último, considerado por Hannah Arendt, como «o grande filósofo do trabalho».
O marxismo sempre denunciou o trabalho assalariado e o seu carácter alienado. Contudo, esta denúncia foi realizada sem levar em conta as ambiguidades políticas da sua própria concepção de trabalho, de resto denunciadas por Hannah Arendt e Georges Friedmann. Daí que a maior parte dos marxistas tenha caído na tentação de dar expressão à tese de Marx dos dois reinos – o reino da necessidade e reino o da liberdade, francamente desfavorável a uma visão positiva do trabalho.
Convém reler as «Metamorphoses du Travail» de André Gorz, uma dessas vítimas da concepção negativa do trabalho, de modo a centrar a nossa atenção em três aspectos básicos: a racionalização económica que nos leva a trabalhar como o fazemos não é, de modo algum, racional no sentido pleno, isto é, libertadora ou emancipadora. Pelo contrário, produz desintegração social (1), degradação da vida individual (2) e desigualdade (3).
Gorz elaborou um projecto político com o objectivo de combater estas consequências da racionalização económica, que deveria ter três direcções que se complementam e convergem: 1) uma distribuição do trabalho solidária que crie sociedade, isto é, relações sociais mais humanas; 2) uma desmistificação do trabalho, que, graças à tecnologia, já não teria que ser a principal ocupação da vida; 3) e aquilo a que Marx chamou «o livre desenvolvimento da individualidade», pelo aproveitamento do tempo libertado de trabalho.
1. Criar sociedade. Dado que o mercado ameaça destruir a sociedade, a programação global do trabalho equivale a programar uma nova forma de entender a sociedade e de viver em sociedade. A racionalidade económica capitalista criou mais riqueza, num sentido quantitativo, mas não conseguiu corrigir a desigualdade e a falta de solidariedade entre os homens, nem contribuiu significativamente para a melhoria adequada da qualidade de vida individual. Um modo de produção que favorece e acentua o atomismo e a maximização dos lucros, na medida em que obriga a ganhar mais dinheiro para consumir mais, não contribui efectivamente para dignificar a vida individual.
Esta tarefa cabe ao Estado, ou, como diz Gorz: é função de uma política socialista «criar sociedade», subordinar a racionalidade económica a fins sociais, em particular éticos ou políticos, combater o défice de sociedade que o capitalismo implica. Isto significa que é necessário começar a pensar qual deve ser o significado do trabalho na vida humana, chegar a uma concepção de trabalho digna e adequada para que a sociedade adquira coesão e a vida pessoal não se degrade. Trata-se, portanto, de elaborar uma política do trabalho capaz de minorar os efeitos negativos da racionalidade económica, procurando harmonizá-la com a racionalidade da vida.
2. Desmistificar o trabalho. Segundo Gorz, também é necessário que os indivíduos vejam o trabalho de uma outra forma, como qualquer coisa que dá sentido às suas vidas. Este sentido parece derivar não do tempo de trabalho, mas do tempo livre: Os teóricos mais radicais pensam ser absurdo continuar a dar ao trabalho o melhor «tempo» das nossas vidas, quando, nos tempos modernos, as novas tecnologias permitem reduzir o tempo de trabalho e aumentam o tempo de ócio, o tempo para viver. Se formos capazes de distribuir equitativamente esse trabalho, que necessita já de menos mão-de-obra humana, porque esta foi substituída pela técnica, o tempo de descanso e de liberdade pode aumentar para todos. Essa visão diferencial dos «tempos» não é uma reivindicação exclusiva de Gorz, mas da sociedade em geral. Contudo, esta distinção entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio invalida a tarefa de dignificar o próprio trabalho, e os seus defensores ainda não perceberam que os tempos de lazer, além de serem empresarialmente organizados pelo mercado (Adorno), são gastos a consumir (Arendt), numa conjuntura em que a tecnologia dispensa o trabalhador, tornando o trabalho como fonte de subsistência (emprego) num bem escasso.
3. O livre desenvolvimento da individualidade. O ideal seria a continuidade perfeita entre o tempo de trabalho e o tempo de ócio: o trabalho como diversão, como reclamava Marcuse. Porém, isto só é possível para algumas pessoas e para certas actividades de trabalho - intelectual, artístico, artesanal. Gorz diz que «a satisfação existencial depende da actividade fora do trabalho mais do que qualquer outro factor». O trabalho precisa de deixar de ser o mais central, para se converter numa actividade entre outras. Para Gorz, seria necessário abrir caminho a uma nova utopia: a da «sociedade do tempo livre». A ironia é que esta utopia está a realizar-se num sentido não desejável: o aumento do desemprego e, terrivelmente, do tempo livre, gasto à procura de emprego. Neste novo cenário, torna-se necessário glorificar o trabalho como fonte essencial de identidade e de realização pessoal, de resto uma ideia que já tinha sido avançada por Wilhelm Reich que via no trabalho uma fonte de saúde. Além disso, esta noção positiva do trabalho manifesta-se claramente nos textos de Marx e de Engels, nomeadamente naquele que aparece neste post em epigrafe.
Esta visão positiva do tempo de trabalho e do tempo da vida (também presente no pensamento de Marx) depende tanto de uma forte vontade política socialista, como da educação para o trabalho. A globalização não parece ser favorável à concretização de uma concepção justa e distributiva de trabalho. Com efeito, não só tende a tornar mais barato o trabalho, como também fomenta o desemprego, numa época em que o Estado está a perder autonomia em relação ao poder económico. O que está em causa hoje em dia é a própria subsistência das pessoas e é neste domínio do trabalho e do emprego pleno que as políticas socialistas podem fazer a diferença qualitativa, humanizando o trabalho mais penoso (1), e distribuindo melhor o trabalho, a fim de que um maior número de pessoas possa ter emprego para desfrutar, em seguida, a liberdade e a possibilidade de fazer outras coisas e de se ocupar naquilo que mais preenche a sua vida (2). Deste modo, podemos talvez libertar qualitativamente os homens do «reino da necessidade», isto é, da preocupação pela mera subsistência, abrindo-lhe as portas do «reino da liberdade«, onde devem aprender a ser autónomos e solidários, sem que sejam vítimas da concepção unidimensional e muito portuguesa de que o sentido do trabalho se encontra na profissionalização aparente, obtida de modo corrupto, isto é, na (falsa) identidade pessoal na e para a profissão, vista como eliminação dos concorrentes e megaconcentrações de empregos. Esta é a concepção dos luso-corruptos que negam distribuir o trabalho de modo equitativo e justo. Para eles, o êxito profissional é inseparável do lucro económico, aliás estabelecido pelos próprios, e a qualidade de vida mede-se pela quantidade de dinheiro que cada um consegue sacar abusivamente ao Estado, como se eles fossem o Estado.
A «utopia da civilização do lazer», outrora defendida por certas correntes do marxismo, deve ser abandonada, porque esquece que vivemos num mundo cada vez mais global, numa sociedade consumista, ameaçada pelas desigualdades sociais e pelo desemprego. O lazer converteu-se em tempo de consumo: a jornada de trabalho foi reduzida para possibilitar o tempo livre, mas a sua ocupação não deu origem ao surgimento de «individualidades livres e desenvolvidas». Ora, esta concepção do trabalho-lazer foi admiravelmente minada por Hannah Arendt:
«Cem anos depois de Marx sabemos quão falaz é este raciocínio: as horas vagas do animal laborans jamais são gastas em outra coisa senão em consumir; e, quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e insaciáveis são os seus apetites».
Este é um texto de improviso escrito como uma denúncia antecipada das asneirolas que vão ser ditas hoje à noite no programa «Prós e Contras» dedicado ao Trabalho.
J Francisco Saraiva de Sousa

Fátima Bonifácio e o Exagero Narrativo

Durante o "zapping" habitual, calhou passar pela RTP2 (25 de Novembro de 2007) e ver que, num programa cultural interessante deste canal da RTP, a convidada era Maria de Fátima Bonifácio, uma historiadora portuguesa que admiro, não por ter lido as suas obras, mas pelas suas participações em programas televisivos.
Assisti à parte final do programa sobre D. João VI, o Clemente, e retive esta noção muito espantosa de que a luta de classes defendida pelo materialismo histórico e a luta de raças preconizada pelo nazismo eram «consideradas como ciências» e, portanto, podiam ser «classificadas» no mesmo plano. O que é espantoso nesta afirmação, provavelmente não pensada, não é apenas colocar no mesmo plano o materialismo histórico e o nazismo, mas rotulá-los de «ciências» ou «crenças científicas», como se a ciência fosse também mera crença, sem questionar a natureza científica desigual desses discursos, como se tudo tivesse o mesmo «valor» no mercado plural do sentido. Isto é relativismo absoluto e total e, quem entra neste jogo linguístico, tem a mesma «autoridade» que os adversários: Fátima Bonifácio reduziu enfaticamente a historiografia a um conjunto de perspectivas, isto é, narrativas, todas equivalentes e todas muito pouco críticas, para não dizer a-críticas. A sua «verdade» auto-anula-se.
Percebe-se esta «opinião» a partir do momento em que a nossa historiadora coloca o materialismo histórico no mesmo plano cognitivo do nazismo: ao negar a luta de classes, Fátima Bonifácio reduz a historiografia a uma narrativa a-crítica, metabolicamente reduzida, e pseudo-factual (os seus supostos factos empíricos podem ser e são as mentiras conspiradas pelas classes dominantes e relatadas pelos seus cronistas oficiais), centrada exclusivamente na dimensão política, tal como encarnada e protagonizada pelos governantes, mais precisamente na «intriga política», esquecendo malevolamente o sofrimento das classes desfavorecidas. A sua visão da democracia é oligárquica e cleptocrática.
Pelo menos, Fátima Bonifácio reconheceu involuntariamente que o materialismo histórico era um «discurso científico», sem medo de pensar o futuro e sem abdicar da teoria. É provável que o nazismo tenha adaptado oportunisticamente o estilo marxista à sua causa (o nacional-socialismo), mas há uma diferença entre eles: a luta de classes é real e constitui um «motor» da história, cientificamente comprovado, mas o mesmo já não pode ser dito da «luta racial», que, até mesmo nas suas manifestações históricas inegáveis, está sempre subordinada à luta pelo poder e, por isso, constitui necessariamente uma ideologia: uma doutrina que visa legitimar assimetrias de poder.
A prova desta confusão teórica exibida por Fátima Bonifácio está no facto de ter referido uma obra sobre o nazismo, segundo ela a melhor (sic), reforçando o seu carácter de narração, esta figura degenerada do pensamento pós-moderno. Felizmente, salvaguardou a Filosofia, o que significa que, apesar do seu relativismo historiográfico, reconhece que há um discurso teórico capaz de dizer a verdade, sem se deixar aprisionar no campo da doxa, isto é, das opiniões improvisadas em função dos interesses de momento, os das classes dirigentes. Ao abandonar a teoria, Fátima Bonifácio entrega-se à mera construção de narrativas sobre outras narrativas, as do passado que pretende iluminar (sic), incapaz de exercer o pensamento crítico. A sua historiografia é «conspirativa» (embora diga não ser partidária da conspiração, como todos os conspiradores da história), portanto, é a visão ideológica dos «vencedores« da História (W. Benjamin): é mera crónica tão válida quanto a das suas fontes e todas elas motivadas metabolicamente para glorificar os poderes instituídos, mais os do presente do que os do passado. A mais-valia teórica que Marx trouxe à historiografia é desprezada, porque, na verdade, Fátima Bonifácio, uma mulher que prezo, é uma beneficiária do sistema pós-revolucionário e dos seus direitos adquiridos. (Daí talvez a sua atracção pelo estudo das monarquias e da nobreza!) Celebrou em Genebra «Maio de 68», «fingindo que estudava» (palavras suas) e, de repente, viu-se instalada, juntamente com a sua geração, no poder. Ora, como já Maquiavel sabia, aqueles que estão no poder não desejam mudar nada, fazendo tudo para conservar os seus privilégios, e, se foram algum dia revolucionários, tornaram-se com o decorrer do tempo mais reaccionários do que os próprios «fascistas». A sua memória sofreu um «apagão» súbito, porque o poder, sobretudo aquele que cai milagrosamente em mãos moral e intelectualmente impreparadas, produz amnésia histórica e política. A geração dos hippies (geração grisalha) é actualmente o maior inimigo da democracia, da liberdade, da justiça e da mobilidade. Hoje, ser de Esquerda é lutar contra a antiga Esquerda, a que está instalada no poder. E é contra esses traidores que devemos lutar, retomando os grandes ideais do socialismo radical.
Fátima Bonifácio poderia apresentar muitos argumentos a seu favor, mas a minha crítica, ainda que mal alinhavada e improvisada, demoliu completamente a sua visão da história, denunciando o seu carácter apologético do poder instituído. A sua visão da história é absolutamente ideológica e, como tal, deve ser denunciada e deitada ao lixo, onde a aguardam as mentiras milenares elaboradas pelos abusadores do poder e narradas para justificar a miséria e o sofrimento. A história factual é a perspectiva adoptada por aqueles que desistiram de pensar, porque sabem que o pensamento crítico é o arqui-inimigo dos poderes estabelecidos. Até Mónica Filomena prefere o factual! O seu liberalismo metabolicamente reduzido é a defesa descarada dos seus direitos adquiridos: uma catedrática reformada que pode falar tudo o que lhe passa pela cabeça, finalmente liberta do crivo da crítica e da responsabilidade intelectual. As suas opiniões são meras conspirações contra a verdade. Daí que queiram reduzir a ciência a mera crença em competição com outras crenças! Ora, como sabemos, os conspiradores negam sempre a velha teoria da conspiração, porque, como dizia Althusser, a ideologia dominante nunca diz ser uma ideologia. Se o fizessem, denunciavam-se como «amigos das mentiras» que visam legitimar assimetrias de poder, fortemente estimuladas pelas políticas da educação, mesmo as levadas a cabo pelo actual governo socialista.
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 25 de novembro de 2007

Porto e Vigo

Passei todo o dia de Sábado (25 de Novembro de 2007) em Vigo. Cheguei ao Porto já de madrugada e aqui estou a fazer este post, não para narrar o meu passeio, grande parte dele dedicado à compra de livros, mas para manifestar uma preocupação.
A Galiza e, em particular, Vigo estão a crescer rapidamente e temo que a minha cidade, o Porto, bem como o Norte de Portugal, não esteja a saber acompanhar esse crescimento galego, correndo o sério risco de vir a ser ultrapassada dentro de pouco tempo por Vigo.
Os portugueses são os principais responsáveis pela situação triste de Portugal. Embora Lisboa encarne a mediocridade nacional e a sua cleptocracia corrupta, condenando o país ao atraso insuperável em que se encontra, os nortenhos e os próprios portuenses, sobretudo estes últimos, são responsáveis pela estagnação da cidade do Porto.
Vigo está a assumir (ou tenta assumir) claramente o controle do Norte da Península Ibérica, pelo menos o Norte de Portugal e a Galiza. A cidade de Vigo está a converter-se numa metrópole, densamente povoada, cosmopolita, afirmativa, elevada auto-estima incentivada pelos seus meios de comunicação social, urbanisticamente bem planeada e interessante (já foi uma cidade feia), economicamente pujante, enquanto as cidades do Norte de Portugal próximas, Viana do Castelo ou Braga, sofrem transformações urbanas à dimensão dos 7 anões da Branca de Neve, que, devido à mediocridade da Escola do Porto de Arquitectura e às más opções políticas locais (autarcas sem visão de futuro), comandada pelo arquitecto destituído de ideias e de ambição futura, Siza Vieira, se estende ao Porto, dando cabo das suas dimensões de cidade metropolitana e cosmopolita e estragando as suas artérias, jardins, praças, pavimentos e passeios.
Vigo aposta no alcatrão e nós aqui no Porto abusamos da pedra e estreitamos irracionalmente as nossas vias, sem abrir novas vias, e alargando passeios que nunca serão usados pelos peões. Bem, já deu para entender que estou saturado e farto da arquitectura de Siza Vieira e da sua escola: toda a sua obra é igual a si mesma, sempre igual a si mesma; quem viu uma construção viu todas, porque a sua arquitectura carece de perspectiva futura e de modernidade ousada. Arquitectos deste tipo estão a destruir as cidades portuguesas, porque não as inovam realmente, condenando-as a «reviver» um passado adulterado. As asneirolas de Siza Vieira revelam-se não apenas na Igreja do Marco, mas também e sobretudo na Avenida da Boavista e na Avenida dos Aliados com aquele "tanque de lavar a roupa", o falsamente denominado "espelho de Água", rodeado de cadeirinhas de uma infância triste: simplesmente um nojo!
Convém requalificar a Baixa do Porto, recorrendo a arquitectos estrangeiros e repovoando-a, bem como o resto da cidade, e impondo sempre os interesses da Cidade sobre os interesses privados, em particular dos portuenses bairristas, carentes de inteligência e com aspecto grotesco. Todos nós conhecemos os seus rostos: «ladram» demais e são pouco cultos. São a vergonha da Cidade Invicta: as suas pseudo-elites, pouco seguras de si próprias e muito iletradas. O Porto está mal servido em termos de massa cinzenta, mas o resto do Norte é a ausência total de massa cinzenta.
Custa escrever isto, mas estou a fazê-lo para alertar o Norte e o Porto para uma realidade que está a acontecer na Galiza: eles, os galegos, avançam, enquanto nós estamos estagnados, constantemente envolvidos em falsas polémicas, sem sermos capazes de fazer frente a Lisboa, a Babilónia de Portugal. Não é somente o Porto Feliz que foi aniquilado: até a ANA (ou a TAP ou a RTP) quer destruir o nosso aeroporto ou subaproveitá-lo, para se concentrar no novo monstro lisboeta (OTA ou outro, tanto dá), projectado para garantir a continuidade metabólica dos luso-corruptos que convertem a nossa democracia numa cleptocracia oligárquica.
Ainda não descobri a palavra certa para tipificar os portugueses, isto é, aqueles que nos roubam o futuro: Burrinhos? É evidente que são burrinhos. Trapaceiros? É evidente que são trapaceiros. Corruptos? É muito evidente que são altamente corruptos. Ladrões? É evidente que são os maiores ladrões de todos os tempos. Invejosos? É evidente que são muito invejosos. Mas nenhuma delas me satisfaz completamente: Qual o nome do «mal» que nos condena à inércia e ao "último lugar" da lista de indicadores europeus excelentes? Esta questão deveria ser seriamente debatida por todos nós. Talvez ainda estejamos a tempo de garantir o nosso futuro e realizar o nosso desejo: sermos uma grande nação! Porque, quando cheguei ao Porto, vi uma cidade movimentada, com o trânsito congestionado, devido à sua iluminação natalícia e à sua imponente Árvore de Natal. Apesar de tudo, temos boas qualidades, a começar pelas nossas auto-estradas e sinalizações e pela arquitectura robusta e plural da Cidade Invicta: apesar dos erros de requalificação urbana cometidos, que podem ser corrigidos, continuamos a ser a cidade mais linda do Norte e do país, capaz de recuperar o seu passado e, ao mesmo tempo, abrir-se ao futuro, sem Siza, evidentemente.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 24 de novembro de 2007

Suicídio e Política

Temos muitas teorias do suicídio, sociológicas, psicológicas, psicanalíticas, antropológicas e neurobiológicas, e, actualmente, esta área do conhecimento tende a profissionalizar-se, como se o suicídio fosse mais um assunto de especialistas. Infelizmente, a guardiã do pensamento Ocidental, a Filosofia, tem sido omissa a este respeito e muito subserviente aos actuais poderes instituídos, fechando-se em si mesma como se não tivesse um exterior que aguarda ansiosamente a sua voz: a voz que diz a verdade.
Definir o suicídio tem sido visto como um problema, sobretudo desde que este assunto passou a ser considerado uma área profissional, reservada a meia dúzia de pessoas cuja única vocação é dificultar aquilo que é simples, de modo a garantir os seus empregos artificiais. A definição mais simples de suicídio apresenta-o como um autocídio intencional, embora se possa distinguir entre os suicidas verdadeiros e os falsos suicidas (Stengel & Cook, 1958). Daí que Stengel (1973) tenha definido o suicídio como «qualquer acto deliberado de dano cometido por uma pessoas contra si própria e no qual não pode estar certa de sobreviver». Quer sejam verdadeiros ou falsos suicidas, todas as pessoas que se auto-infligem danos arriscam a vida e, por isso, estão sujeitas a perdê-la.
Contudo, a obra de Émile Durkheim (1897), «O Suicídio». continua a ser a mais completa, abrangente e influente das teorias sociais sobre o suicídio, e, ao contrário do que se pensa, não é completamente incompatível com a perspectiva de Freud apresentada inicialmente em «Luto e Melancolia» (1917) e posteriormente em «Além do Princípio de Prazer» (1920). Durkheim defendeu que a consistência das taxas de suicídio é um facto social, explicado pelo grau em que os indivíduos são integrados e regulados pelas forças morais coercitivas da vida colectiva. Isto significa que o suicídio é função da desintegração das ligações sociais, quer se trate de agrupamentos religiosos e familiares, quer se trate do amorfismo e da anomia da sociedade contemporânea no seu conjunto. O suicídio egoísta e o suicídio altruísta resultam, respectivamente, da subintegração e da superintegração do indivíduo pela sociedade, enquanto o suicídio anómico é causado pela sub-regulação. Durkheim opõe o suicídio altruísta ao suicídio egoísta e ao suicídio anómico, porque dos três tipos é aquele que tem origem numa integração demasiado forte do indivíduo na colectividade, o que parece confirmar a sua explicação do suicídio em função da medida da integração social. A utilização de correlações entre o suicídio e várias taxas de associação externa, para demonstrar a validade dos seus conceitos fundamentais, permitiu a Durkheim mostrar que as populações católicas tinham taxas de suicídios inferiores às populações protestantes, porque a comunidade católica vincula o indivíduo mais rigorosamente à colectividade do que as comunidades protestantes. Para Durkheim, o egoísmo e a anomia crescentes estavam a causar as taxas de suicídio invariavelmente ascendentes das sociedades ocidentais. Daí que Durkheim, preocupado com a força crescente da anomia e do amorfismo nas sociedades ocidentais, tenha procurado novos meios práticos susceptíveis de reforçar a «solidariedade orgânica» em detrimento da «soledariedade mecânica» (por exemplo, um novo corporativismo).
É evidente que existem muitos outros factores que favorecem o suicídio, em particular a urbanização e o isolamento (Halbwachs, 1933; Sainsbury, 1955; Cavari, 1965), a falta de integração de status (Gibbs & Martin, 1964), a falta de restrição externa (Henry & Short, 1954; Maris, 1969), a limitação decorrente da cobertura dos mass media (Phillips & Carsyensen, 1988), desespero, hostilidade e baixa auto-estima (Neuringer, 1976), desemprego crescente, baixos níveis de um metabolito da serotonina e estados de profunda depressão (Brown et al. 1982) ou mesmo predisposição genética para o suicídio. Todos estes factores (sociais, psicológicos e biológicos) ajudam a compreender melhor o fenómeno do suicídio, mas são incapazes de fornecer uma política do sentido, tal como a abordámos neste outro post: Socialismo e Políticas do Sentido. Isto significa que precisamos olhar para a Filosofia, a única capaz de fornecer uma visão política do suicídio, esse acto a-político por excelência.
A filosofia da liberdade de Hegel é uma filosofia da morte, que encara o suicídio como a «manifestação suprema da liberdade do homem», esse ser que é «morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária». Ora, dado a morte ser a condição necessária e suficiente da liberdade e da historicidade, da individualidade e da universalidade, num mundo perfeitamente corrupto como o nosso e sem futuro, a não ser continuar a constituir a «reserva de mão-de-obra barata» necessária ao sustento e à diversão de uns poucos corruptos e abusadores do poder, a morte voluntária constitui a única alternativa capaz de afirmar a recusa da ordem social estabelecida no seu conjunto. Assim, todos aqueles que procuraram a sua própria morte devem ser vistos como a encarnação da grande recusa: preferiram matar-se, em vez de viver uma vida pouco digna. De certo modo, realizaram o sentido da política: suicidaram-se para se livrarem da escravatura e da democracia cleptocrática que negam a maioria das pessoas uma vida digna e sem angústia. Este sentido político do suicídio é a negação da ordem estabelecida, que, doravante, pode ser avaliada pelas taxas de suicídio que provoca e desencadeia. Recordar os que morrem voluntariamente é manter viva a sua luta contra a ordem estabelecida.
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

Xenofobia: Um Conceito Científico?

A noção de xenofobia não tem qualquer estatuto epistemológico. Apesar de ser usado frequentemente, o seu conceito ainda não foi elaborado e, por isso, é usado em diversos contextos, articulando-se quase sempre com o racismo e o nacionalismo. É curioso observar que tanto o CID-10 como o DSM-IV-R omitem esta fobia ou «aversão aos estrangeiros». Isto significa que este tipo de medo dos estrangeiros ainda não foi classificado como uma perturbação mental e, deste modo, não aparece classificada nessas obras entre as restantes fobias, ou, pelo menos, constitui uma reacção não considerada preocupante em termos de saúde mental.
As fobias são medos irracionais e persistentes de um objecto, actividade ou situação específica. Alguns destes medos carecem de justificação na realidade, outros são maiores do que seria justificável. As fobias foram classificadas em três grupos, em função do tipo de situação que provoca medo:
1. Agorafobia. O seu principal sintoma é o medo de estar em ambientes públicos, dos quais seria difícil de escapar, se o indivíduo se tornasse subitamente ansioso. É, portanto, um medo de ficar com medo, geralmente associado a um medo de ficar sozinho num espaço público, sem ter outra pessoa a quem recorrer. As pessoas que sofrem de agorafobia fazem tudo para evitar o contacto com grandes grupos de pessoas e, por isso, preferem ficar confinadas nas suas casas e sair muito pouco. A maioria dos pacientes com agorafobia é do sexo feminino e inicia-se geralmente no começo da vida adulta.
2. Fobia Social. A fobia social resulta também de uma evitação de grupos, mas, ao contrário da agorafobia, que se originava de um medo vago de perder o controle, a fobia social origina-se de um medo de ser criticado. A pessoa que sofre de fobia social tem um medo irracional de se comportar de forma constrangedora e, deste modo, ser criticada pelas outras pessoas presentes. Ela evita o contacto com pessoas para evitar a crítica. Aqui reside a sua fonte de ansiedade. As fobias sociais são igualmente comuns nos homens e na mulheres e tendem a iniciar-se na adolescência.
3. Fobia Específica. Uma fobia específica envolve um medo irracional em relação a um objecto ou situação diferente de multidões (agorafobia) e de crítica pessoal (fobia social). Surgem geralmente na infância ou muito cedo na vida adulta e, quando não tratadas, podem persistir. Alguns exemplos de fobias específicas são os seguintes: acrofobia (medo de lugares altos), algofobia (medo das dores), astrafobia (mede de tempestades), claustrofobia (medo de lugares pequenos), hematofobia (medo do sangue), monofobia (medo de ficar sozinho), misofobia (medo de contaminação), nictofobia (medo do escuro), oclofobia (medo de multidões), sifilofobia (medo da sífilis) e zoofobia (medo dos animais).
Poderemos introduzir a homofobia ou a xenofobia no seio da categoria das fobias específicas? É certo que podemos tentar, elaborando uma proposta nesse sentido, recolhendo assinaturas de psiquiatras célebres e aguardando a resposta da comissão, mas, mesmo que o conseguíssemos - e eu divido seriamente disso -, seríamos confrontados com a tarefa de enquadrar estas duas fobias nos modelos biológicos das fobias que estão a ser estudados. Assim, por exemplo, em relação à homofobia, termo cunhado por Weinberg (1972), Herek (2000) propõe a sua substituição pelo conceito de prejuízo ou preconceito sexual, que define as atitudes negativas em relação a um indivíduo por causa da sua orientação sexual. Isto significa que um indivíduo homossexual é alvo da condenação social, não por causa do medo de estar com ele fechados num quarto sentido pelos outros, mas por causa de um preconceito sexual que discrimina todos aqueles cujos comportamentos não estejam em consonância com as normas heterosexistas. Deste modo, descarta-se o termo homofobia, até porque ele é ambíguo: levando em conta o grego ou o latim, a homofobia aparece com dois significados, um deles fala de «medo do homem», o outro, do «medo do mesmo».
Não poderemos dizer o mesmo em relação à xenofobia? E defini-la como um preconceito contra o estrangeiro? Ora, independentemente da raça, um estrangeiro é sempre visto, como disse Georg Simmel, como um «estranho», visto como «um supranumerário num grupo onde todas as posições económicas estão já ocupadas» e, embora faça parte do grupo, vindo não se sabe donde, «ele é prática e teoricamente mais livre, examina as relações com menos preconceitos, os critérios que lhes aplica são mais gerais e mais objectivos; não está obrigado nos seus actos a respeitar a tradição, a piedade ou os precedentes». É, por isso, que é visto como um estranho, simultaneamente próximo, porque faz parte do grupo, e distante, por é muito mais livre e objectivo, dado não estar afectivamente ligado à tradição nativa.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

A SIDA é uma Metáfora?

Susan Sontag é uma crítica literária excelente e erudita, uma mulher da elite intelectual americana, infelizmente já falecida, que sempre deu a cara para defender causas nobres. Contudo, nem sempre defendeu essas causas da maneira mais correcta e uma dessas causas foi precisamente a Sida. As suas obras «Illness as Metaphor» e «AIDS and its Metaphors» são exemplos disso.
A sua tese fundamental de que a «doença é uma metáfora» produz «efeitos sociais», mas carece de substância teórica, apesar da cultura filosófica que Sontag exibe quando trata destes assuntos. Isto significa que o discurso de Susan Sontag sobre as doenças estigmatizantes, como por exemplo a Sida, o cancro, a sífilis ou a tuberculose, não produzem efeitos teóricos, isto é, não acrescentam a esses «objectos» as determinações do seu conhecimento científico. Trata-se, portanto, de um discurso ideológico elaborado para ter efeitos ideológicos nos seus receptores, levando-os a agir contra a discriminação. Porém, este tipo de crítica social faz um uso abusivo de uma teoria de Marx, aquela que visava libertar o proletariado da exploração a que foi submetido durante a Revolução Industrial, procurando minar os conhecimentos médicos, em particular a imunologia, através da análise da sua linguagem técnica vista à luz das ideologias que Sontag procura demolir.
Esta análise de Sontag teria algum interesse científico e filosófico se ela tivesse sabido aplicar a teoria da ideologia, de modo a traçar linhas de demarcação entre as teses científicas e as teses ideológicas, com o objectivo teórico e político de mostrar e desconstruir o modo como os conhecimentos científicos são apropriados e sistematicamente distorcidos pelos poderes instituídos, visando a discriminação de determinados grupos sociais, e o modo como a ideologia dominante se insinua no seio do discurso científico ou mesmo profissional dos próprios médicos e agentes da saúde, para denunciar a ideologia espontânea dos médicos. Mas, em vez disso, parece que Sontag acredita mesmo na sua «teoria»: a doença é uma metáfora, sem se aperceber que esta sua tese colide com a sua noção de doente. Se o doente é aquele indivíduo que sofre, por causa de uma patologia que o ameaça de morte e lhe inflige dores, então a sua doença (ainda que estigmatizada) não pode ser vista como uma metáfora e o seu tratamento não é seguramente outra metáfora belicista e militar, embora possa ser muito invasivo e «agressivo».
É certo que Sontag poderia contrapor a este argumento que as metáforas da doença produzem um acréscimo de sofrimento, psicológico e social, muitas vezes, como sucedeu com o grupo dos homossexuais no início da epidemia da Sida, legitimando formas intoleráveis de discriminação, mas isto é que deveria constituir verdadeiramente o objecto de estudo de Susan Sontag: a ideologia que usa a doença para discriminar e estigmatizar certos comportamentos que não tolera e a sua presença subtil ou não no seio da própria comunidade médica. Há, portanto, uma ideologia médica espontânea que urge desmistificar, até porque diversos estudos têm demonstrado que os estudantes de medicina são os mais preconceituosos de todos os estudantes universitários e que esse preconceito é posteriormente reforçado pelas normas da Ordem dos Médicos ou Associações Médicas.
Mas até mesmo este tipo de estudo deve estar atento aos próprios comportamentos dos grupos estigmatizados. No caso do grupo dos homossexuais ou dos toxicodependentes é preciso reconhecer que são efectivamente grupos de risco: a promiscuidade sexual é uma norma, isto é, um estilo de vida predominante, entre os homossexuais, que, apesar de estarem relativamente bem informados, tendem a não usar o preservativo, até mesmo nos encontros sexuais ocasionais. Aliás, este problema é geral: os portugueses não usam o preservativo, como demonstram as estatísticas nacionais referentes à Sida (seis casos por dia) e tantas outras doenças sexualmente transmissíveis (DST). Depois de serem infectados, encobrem a sua «doença», sem evitar novos encontros sexuais e procuram apoio médico longe da sua área de residência.
Este post vem a propósito do caso recente de um empregado hoteleiro (cozinheiro) ter sido afastado do seu emprego por causa de ser portador do vírus da Sida. Discriminação? Não sei se é ou não é discriminação, mas a verdade é que devemos zelar pela saúde pública.
(Desenvolverei a teoria de Susan Sontag no meu blogue «CyberBiologia e CyberMedicina». Para compreender melhor esse problema, pode ler Ecologia Social dos Comportamentos Gay. Repare que as campanhas de luta contra a Sida se limitam a aconselhar o uso do preservativo, sem questionar a promiscuidade sexual!)
J Francisco Saraiva de Sousa

Lourenço Marques: Uma Capital Colonial

Descobri um site que mostra imagens de Lourenço Marques nos anos 20.
Veja aqui: http://www.malhanga.com/LM-1929/.
De facto, era uma cidade africana cosmopolita. Apesar de nem todos serem livres para desfrutar esse cosmopolitismo, era já uma cidade colonial desenvolvida para a época e tornou-se muito mais desenvolvida e moderna com o passar dos anos. Imagens como estas testemunham o carácter peculiar do colonialismo português.
Aguardo notícias do meu amigo Florêncio que prometeu mostrar Vila Pery nos anos 20. Bem sei que o meu amigo Agry pensará que se trata de saudosismo ou de branqueamento do colonialismo português. Não, a razão é outra: Chamar a atenção dos portugueses para Moçambique e levá-los a aprofundar os seus conhecimentos sobre a História de Portugal que também foi a História de Moçambique. É um convite à colaboração e ao diálogo e, porque não?, ao turismo.
Chegou a altura dos portugueses em colaboração com os moçambicanos redescobrirem Moçambique Colonial, fazerem a sua história económica, social, cultural e política e estudar aprofundadamente o seu património arquitectónico. Existem diversas tendências arquitectónicas que coexistem harmoniosamente e que estabelecem um diálogo intercultural. Por exemplo, as "farmes" dos gregos ou dos ingleses, os «palácios» dos administradores coloniais, os edifícios de estilo especificamente colonial e também a arquitectura moderna de excelente qualidade. Ou o seu mobiliário feito em madeiras exóticas e bordadas por mãos hábeis, muitos dos quais (os "bordados") decalcados de desenhos (leões, palhotas, negras, crianças, pilões, enfim paisagens moçambicanas, ou figuras geométricas sofisticadas) feitos por uma criança: Sim, fui eu mesmo que os desenhei, cobrando dinheiro ao meu pai para comprar livros.
J Francisco Saraiva de Sousa

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Polémica sobre NeuroFilosofia e MetaFilosofia

Acompanhe a controvérsia científica que decorre no meu blogue «NeuroFilosofia» e. se quiser, participe construtivamente: Uma Controvérsia MetaFilosófica.
Nela proponho uma hipótese metafilosófica que visa criar um espaço de intersecção entre a neurofilosofia e as neurociências, portanto, um novo território de pesquisa científica. E, para espevitar a sua curiosidade, reproduzo aqui um dos meus comentários: «Estou a preparar um texto sobre «Autismo e Filosofia», diferenciando o cérebro masculino e o cérebro feminino, vendo o autismo como um extremo do cérebro masculino.
A oposição básica entre os cérebros é systemising (cérebro masculino) versus empathising (cérebro feminino). É esta a teoria que pretendo alargar à metafilosofia. Isto implica que o cérebro filosófico é um cérebro masculino, cujo desenvolvimento foi regulado pelos níveis pré-natais de testosterona, estudados e susceptíveis de ser estudados através de determinados marcadores.
«Mas volto a repetir: a Filosofia tal como a conhecemos é uma criação masculina e a sua actividade esteve sempre a cargo dos homens, que produziram sistemas racionais sistemáticos e resistentes à mudança. Até o conceito é resistente à mudança. As mulheres também fazem filosofia a partir de criações masculinas, mas aquelas que procuram desconstruir o discurso masculino produzem discursos femininos que podem ser analisados à luz das suas capacidades tipicamente femininas. Repare que os homens raramente referem ou analisam detalhadamente os discursos feministas».
J Francisco Saraiva de Sousa

Lourenço Marques nos Anos 20

Um amigo moçambicano chamado Florêncio teve a amabilidade de disponibilizar esta breve descrição da vida citadina de Lourenço Marques, actual Maputo, nos anos 20, em plena época colonial.
Como diz Florêncio, cujo blogue não consegui encontrar, trata-se de uma «transcrição do Boletim da Agência Geral das Colónias, Nº 50, Ano 5º, Agosto de 1929, págs. 246 a 251».
«A cidade de Lourenço Marques, com seus luxuosos hotéis, os seus edifícios públicos sem grandes pretensões, mas bem distribuídos e elegantes, as suas ruas asfaltadas e limpas, as suas praças ajardinadas, os seus quiosques luxuosos, longas avenidas arborizadas, vivendas entre jardins bem tratados, dá ao visitante uma agradabilíssima impressão de casa carinhosamente arrumada, onde se respira conforto e bem estar, onde há disciplina, ordem e trabalho.
«A vida em Lourenço Marques difere um pouco da vida nas outras cidades coloniais portuguesas e estrangeiras porque é grandemente cosmopolita. Todos levaram para ali um pouco dos seus costumes e dos seus hábitos, das suas qualidades e dos seus defeitos, adaptando-os à vida colonial portuguesa.
«Depois dos europeus portugueses são os ingleses que formam a colónia mais importante. Para lá levaram os seus clubes, os seus desportos, as suas instituições, sendo agradável notar que estas não mantêm as características rigidamente britânicas que eles costumam apresentar em toda a parte. Depois, são os Índios, oriundos da Índia inglesa e portuguesa, pitorescos no seu trajar, de camisa de fora e pernas ao léu, cheirando a caril e a nós moscada, e que conseguiram açambarcar o comércio com os indígenas, até mesmo com os europeus; os gregos, com lojas de fruta, e, nos quiosques, vendendo gelados e jogando impenitentemente aos dados; os chinas, de longa trança e vestidos à europeia, exploram a horticultura e mantêm casas de pasto nas imediações dos quartéis, têm um sumptuoso «Pagode» e um clube republicano. Os índios portugueses católicos formam uma das mais numerosas colónias, ocupando muitos lugares nos serviços públicos e até altas funções na burocracia e magistratura; os italianos exploram hotéis; franceses, belgas e alemães ocupam-se no comércio, na indústria e nas empresas de navegação, etc. Os naturais, indígenas civilizados, são excelentes criados de servir e contínuos nas repartições públicas e escritórios comerciais, vestem à europeia com exagerada elegância. Os “zamzibaristas” e macuas, pretos maometanos, são típicos pelo seu cofió vermelho de longa borla preta e longa cabaia branca. Todos concorrem para o aspecto pitoresco da cidade com a variedade dos seus trajes, hábitos e línguas e todos parecem viver felizes na terra e sob a liberal e justa administração portuguesa.
«A cidade acorda, geralmente, às sete horas da manhã, mas a essa hora é já intensíssima a vida no grande cais. O comércio abre as suas portas às oito horas, fechando às sete da noite, com intervalo das 12 às 14, em que encerra para o almoço e a sesta. Cidade de trabalho, o movimento pelas ruas só é intenso depois das 17 horas, hora a que fecham os escritórios e as repartições, hora a que se invadem os quiosques para o «chá das cinco», os clubes e os “bars” para o primeiro “sundowner”. Muitos automóveis correm então em todas as direcções, os eléctricos e os “omnibus” são assaltados, uns para a praia, outros para os retiros, para os campos de desporto, para os centros de cavaco. Ninguém pensa entrar em casa antes das 20 horas. Senhoras e crianças também não regressam da praia, dos jardins públicos e dos centros elegantes de «chá» antes dessa hora.
«Lourenço Marques, de noite, é uma cidade pacata, três cinemas muito cómodos funcionam com filmes novos e modernos. Uma vez por semana, a monotonia do cinema é quebrada por pequenas companhias teatrais portuguesas e estrangeiras que são geralmente apreciadas. Passeios de automóvel à praia, profusamente iluminada e com uma boa orquestra no Pavilhão de Chá, reuniões nos diversos clubes, bailes «Cinderella» (até à meia noite), e depois o descanso, muito necessário em África e em todas as terras de trabalho.
«A cidade adormece, pois, a esta hora em que fecham os quiosques e os “bars”, e os eléctricos e os “omnibus” recolhem.»
«Ao que parece, a globalização já por cá anda à mais de 78 anos. Um abraço, Florêncio».
Muito obrigado.
J Francisco Saraiva de Sousa

Memória e Amnésia Histórica do Socialismo

Este é um dos conceitos fundamentais da cultura ocidental e, de facto, poderíamos escrever a sua história à luz deste conceito, a começar pela obra de Homero. Mas, neste momento, o meu objectivo é mais modesto.
A leitura do texto de Baptista Bastos, RAUL SOLNADO: A PRESENÇA DA GRANDEZA. postado por Agry e a sua noção de amnésia história acordaram em mim uma velha memória: o meu estudo sobre a memória que ainda está por concluir e não sei se será alguma vez concluído. Outro texto de Agry, ALTERNATIVAS AO NEOLIBERALISMO, sugeriu-me uma via de abordar a memória histórica que quero partilhar: qual a relação da política com a memória? Ou mais precisamente: qual a relação da Esquerda com a memória?
Martha Harnecker tem razão quando afirma que o marxismo não pode ser culpabilizado pelos «erros» cometidos pelo «comunismo soviético», mas engana-se quando afirma que o marxismo possui uma «receita». O seu mestre, Louis Althusser, tomou consciência disso muito tarde, já na «clínica psiquiátrica», após ter morto a mulher: o marxismo não tem uma política, isto é, não tem uma receita alternativa ao «liberalismo económico», isto é, à economia de mercado. É, por isso, que a Esquerda atravessa um período de crise teórica e prática. Sem alternativa de um novo modelo económico, depois do colapso da economia planificada ou dos modelos de auto-gestão, a Esquerda ficou necessariamente paralisada e, quando está no poder, tende a ser mais «liberal» do que a própria Direita. Isto significa que temos de tentar melhorar a «sociedade» no âmbito do capitalismo global. A Esquerda deve proteger a economia de mercado, reservando ao Estado um papel regulador substancial, e não deve salvaguardar um modelo patrimonial de capitalismo, de resto propenso a fomentar a burocracia e a corrupção.
Vejo no esquecimento do seu passado uma das razões da sua crise teórica e política. A Esquerda em geral e a Esquerda Socialista (Partidos Socialistas, Social-democratas e Trabalhistas) em particular sofrem actualmente de amnésia histórica: ignoram o seu passado e os seus autores, sobretudo ignoram Marx, entregando-se a um «pragmatismo» destituído de projecto político (socialismo) ou mantendo um saudosismo pouco criativo, como se a classe trabalhadora integrada ainda fosse uma possível força de transformação social (comunismo).
A causa de Marx triunfou: a classe trabalhadora lutou pela melhoria das suas condições de vida, integrou-se e, neste momento, é tão ou mesmo mais metabólica que as forças de Direita. A sua luta é meramente sindical e não política. Como Lenine sabia, os sindicatos são instituições pouco dadas à luta política revolucionária e os partidos que os defendem, em particular o Partido Comunista Português, já não são fiéis ao pensamento político de Lenine, de resto o grande político do marxismo. Só a agravamento das condições objectivas de vida poderia criar uma conjuntura política favorável a um movimento revolucionário, mas, diga-se a verdade, não adianta fomentar esse movimento, porque não há sociedade perfeita ou qualquer fim da História, a não ser a destruição da humanidade. Devemos, portanto, retomar a leitura dos grandes mestres da Esquerda, isto é, recuperar a memória activa do nosso passado, mas sem projectar uma sociedade futura perfeita. Isto não significa que o sonho seja proibido; pelo contrário, é sonhando para a frente num horizonte sempre aberto e, portanto, inconcluso, que podemos salvaguardar a nossa memória histórica e libertar o futuro, melhorando o presente.
Este esquecimento do passado deve-se não só à atrofia cognitiva que se observa nos lideres políticos actuais, bem como nos cidadãos das mesmas gerações, mas também ao facto deles constituírem a grande geração mais privilegiada da história da humanidade. Esta geração grisalha beneficiou de condições extremamente favoráveis, em particular de todos os benefícios do Estado Social, aqueles que estão a ser reduzidos drasticamente por todos os países da União Europeia. Isto significa que as novas gerações vão viver em constante risco e risco de pobreza. Esta pode ser novamente utilizada como uma arma política. No entanto, preferia ver o socialismo incentivar a economia de mercado, chamando os proprietários às suas responsabilidades e levando-os a assumir riscos, sem contar com o apoio do Estado e dos seus subsídios, outra forma de capitalismo patrimonial.
Deste modo, o Estado ficaria livre para apoiar iniciativas que vão ao encontro da sua tradição histórica. O mercado deve funcionar por si mesmo, sem ajudas financeiras significativas do Estado e, uma vez libertado do seu sector público (outra força de corrupção), o Estado pode zelar pelos ideais da Esquerda, entre os quais o liberalismo político. Isto exige uma reforma do Estado que o partido socialista português tem evitado fazer. Esta reforma não visa a extinção do Estado, como pretendia Marx, mas o aumento da sua eficácia na implementação de políticas sociais, culturais, educacionais, de saúde, de combate à pobreza, de apoio à natalidade, defesa da cidadania e da participação política, enfim todas aquelas políticas que o socialismo sabe pela sua história serem as suas políticas. Abandoná-las como sucede actualmente na União Europeia é o mesmo que trair o próprio Ocidente, a única civilização que ousou contrariar as forças obscuras do destino e que se permitiu sonhar para a frente.
Uma economia de mercado forte, entregue às suas próprias leis, embora regulada pelo Estado, cuja missão fundamental é combater as desigualdades sociais, pode ser uma força capaz de ajudar o socialismo a cumprir a sua missão histórica: defesa da liberdade e defesa da igualdade de oportunidades. O marxismo só é hoje possível como marxismo liberal. Dado a memória não ser uma força passiva mas uma força activa e formadora, a rememoração do seu passado «esquecido» pode relançar esse marxismo liberal, capaz de fazer face às políticas neoliberais da Direita Liberal ou conservadoras da Direita Retrógrada. Reformulando o seu passado, a Esquerda socialista pode recriá-lo e munir-se de um projecto político capaz de levar os cidadãos a tomarem consciência de que também eles devem participar activamente na transformação eterna da sociedade em função de um modelo negativo: aquele que não arrisca uma definição cabal da futura sociedade.
Precisamos de reler Marx em chave liberal e está leitura deve relançar a crítica da economia política, capaz de denunciar as técnicas adaptativas dos cálculos económicos e financeiros. O discurso da extinção do Estado ou do Trabalho, por exemplo, deve ser relido e substancialmente alterado ou mesmo abandonado. Uma sociedade de lazer é um perfeito absurdo e, como viu Hannah Arendt, esta ideia «marxista» contribuiu para a construção de uma sociedade metabólica de consumidores, impondo uma concepção perigosa de igualdade, absolutamente contrária à natureza humana. Em vez dessa ideia, precisamos de políticas de requalificação e de dignificação do trabalho, com emprego pleno, as únicas capazes de ajudar a fazer frente aos desafios da globalização. Em vez de um princípio hedonista, precisamos retomar uma política que valorize o esforço e a competência em todos os níveis da sociedade, a começar pela escola e pela educação.
São estas «pequenas coisas» que devem marcar a diferença entre a Esquerda e a Direita. A Esquerda é, por definição, a insatisfação permanente com o estado de coisas estabelecido, sem promessas de futuro garantido. Em diálogo permanente com o passado, a Esquerda sonha sempre para a frente, procurando melhorar a qualidade de vida, sem estar prisioneira de um modelo pré-estabelecido de sociedade. Isto significa que a sua divergência interna, reforma ou revolução, já não faz sentido.
A amnésia histórica não é apenas um traço definidor da Esquerda estabelecida: a Direita também sofre da mesma síndrome, mas com uma diferença substancial. A Direita não tem passado, porque toda ela é profundamente ideológica, ou seja, má consciência: o seu objectivo é sempre conservar as regalias conquistadas ou os direitos adquiridos, isto é, manter o status quo, sem qualquer projecto dirigido para a frente. Isto significa que só a Esquerda pode dinamizar a história e, portanto, zelar pela continuidade da aventura ocidental. Recuperar Marx é, pois, reactivar a nossa Tradição Ocidental.
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Prós e Contras: Porque não te calas?

Hoje (19 de Novembro de 2007), Fátima Campos moderou, no seu programa «Prós e Contras», um debate que, apesar de fazer referência ao episódio da Cimeira Ibero-Americana, tratou de alguns temas importantes, em particular as economias emergentes, a globalização e a possível perda da liderança política da Europa num mundo global.
De todos os participantes destaco António Costa e Silva, Presidente da Comissão Executiva da Partex, aparentemente um homem bom e honesto, que fez um discurso com o qual me identifico. Chamou a atenção para três problemas que ameaçam o mundo global: a energia, a segurança e a crise ambiental, mas colocou a tónica naquilo a que tenho chamado falta de imaginação política: a actual constelação de políticos europeus medíocres e a democracia cleptocrática.
Num post anterior («Notas sobre a Burocracia»), procurámos mostrar que esta geração de políticos europeus medíocres, antevista por Max Weber quando falava da profissionalização da política, não só carece de imaginação política como também e sobretudo auto-constitui-se como classe dirigente e muito unida em torno da defesa dos seus interesses de classe, como se verifica olhando para as suas remunerações e reformas, regalias e luxos, aquisição de bens, acções e propriedades e consumo conspícuo. Isto significa que as democracias europeias são oligarquias disfarçadas que enriquecem graças ao abuso do poder, mais precisamente graças à prática impune da corrupção e ao »roubo legítimo». Daí que as democracias ocidentais sejam cleptocracias, literalmente os «governos dos ladrões» de colarinhos-brancos ou do «roubo legítimo».
Tal como já tinha dito noutro post, o episódio de Hugo Chávez e do Rei de Espanha é insignificante em relação aos problemas fundamentais do mundo global. Hugo Chávez, Presidente da Venezuela, durante a conferência da Cimeira Ibero-Americana, chamou «fascista» ao ex-primeiro-ministro espanhol e o rei de Espanha mandou-o calar. (Daí o título do programa de hoje: Porque não te calas?) Este episódio eclipsou toda a Cimeira: a mediasfera reduziu-a a este episódio insignificante.
Muitos bloguistas, prisioneiros das práticas de agenda-setting, fizeram eco das práticas pouco esclarecidas e críticas dos mass media e «noticiaram» o episódio, tecendo comentários ridículos e superficiais para condenar a «tirania» de Hugo Chávez, como se os «bons» estivessem todos de um lado e os «maus», do outro lado. Jamais lhes passou pela cabeça questionar e problematizar o conteúdo do próprio episódio que eclipsou o conteúdo de toda a Cimeira, omitindo aquilo que deveria ser tratado na Cimeira: o problema energético. E, como sabemos, a Galp tem um acordo com a Venezuela (4º maior país explortador de petróleo) a esse respeito, mediado pela figura de Mário Soares. Aconselha-se, na visita que Hugo Chávez faz hoje a Portugal, a adopção da «real politik», colocando na agenda portuguesa os interesses da comunidade de portugueses na Venezuela (400 mil) e os interesses nacionais em matéria energética, sem perder tempo a defender os interesses dos espanhóis, posição com a qual o embaixador jubilado não concordou muito.
Contudo, há outra questão que deveria ter sido colocada: Se vivemos numa democracia adulta, porque razão não se pode chamar «fascista» a um «líder político»? Ou, recorrendo ao caso já esquecido das caricaturas de Maomé: porque razão não se podem fazer caricaturas do profeta? Afinal, há ou não há liberdade de pensamento e de expressão? Estes casos em que o uso pleno da liberdade política é visto como «ofensa», «falta de tacto» ou «ma educação» mostram que a democracia está a degenerar na Europa e a converter-se numa oligarquia profundamente corrupta, sem visão de futuro.
Os homens metabolicamente reduzidos não percebem isso, porque simplesmente não conseguem pensar para além do seu estreito horizonte metabólico: opinam muito e opinam mal. A época dos especialistas tão abundantemente exibidos no programa «Prós e Contras» de Fátima Campos é a época dos animais faladores que falam sem saber do que falam, porque o que os move realmente é a busca de empregos seguros e bem remunerados e não o futuro do Ocidente.
António Costa e Silva chamou a atenção para a percepção que os cidadãos dos países não-ocidentais, nomeadamente os árabes, os indianos ou os asiáticos, têm da política ocidental, que condensou numa frase célebre - «dois pesos e duas medidas», de resto resultante da hipocrisia europeia e da corrupção dos seus dirigentes medíocres. Ora, Hugo Chávez foi eleito democraticamente e tem vencido as eleições durante os últimos oito anos consecutivos: o povo da Venezuela vota em Chávez, porque estava cansado da corrupção e da oligarquia cleptocrática que tomaram conta da Venezuela durante muito tempo, condenando o povo à miséria.
Além disso, como lembrou o jornalista espanhol, José Medem, o rei de Espanha não tem a mesma legitimidade democrática que Hugo Chávez ou mesmo Fidel Castro, uma figura emblemática do século XX. A Europa não pode defender a democracia e, depois, tentar incentivar um golpe de Estado contra um Presidente democraticamente eleito, quando a sua política não lhe agrada. Esta ambiguidade política da Europa é bem captada pelos não-ocidentais e não ajuda nada a consolidar as jovens democracias nesses países, sobretudo naqueles países com economias emergentes, com crescimentos económicos muito semelhantes aos de Inglaterra durante a Revolução Industrial, mesmo que as suas democracias estejam reduzidas à prática de eleições, sem respeito pelos direitos das minorias ou dos vencidos.
Este caso faz-me lembrar um costume das mulheres londrinas e inglesas. À noite saem sem vestir cuecas, vão para um bar, embebedam-se e depois caiem nas ruas de pernas abertas, à mercê de qualquer violador ou interessado numa mera «queca». A polícia inglesa faz a sua campanha contra essa prática de não tapar as partes íntimas, mas aparentemente sem sucesso. Ora, não devemos estranhar que as mulheres tailandesas ou daquela zona do Globo achem as nossas mulheres muito «pouco dignas de respeito», embora utilizem outro termo que prefiro não repetir. Portanto, vivemos actualmente numa Europa Decadente, sem valores, pouco digna de respeito e sem ideias para o futuro, e suspeito que Raymond Aron fizesse hoje a «Defesa da Europa Decadente», até porque a decadência está instalada na classe política e nas pseudo-elites que a rodeiam, de preferência em torno de grandes mesas abastecidas de refeições roubadas aos impostos. É, por isso, que a despesa pública nunca é reduzida, preferindo-se aumentar os impostos, deixando os contribuintes numa situação de endividamento ou mesmo de penúria.
Como se dizia nos anos 60, esta é efectivamente uma Europa Cadela e ladra: os políticos europeus são hipócritas, não têm competência política para governar e as políticas económicas que aplicam esquecem que actualmente é necessário acrescentar um novo elemento à economia, como lembrou o economista: as ideias políticas, o que nos reconduz provavelmente a uma nova economia política que, sem ignorar os três pilares da economia neoclássica, lhe acrescenta o domínio de ideias políticas ousadas, capaz de assegurar a liderança política da Europa e do Ocidente no mundo global e a sua capacidade para regular a globalização, como defendeu Ana Gomes, deputada europeia socialista, apesar do sua tendência para falar muito, repetindo o "blá blá blá" tipicamente feminino, que devia cansar os seus interlocutores, quando embaixadora, que optavam pela anuência para não terem os ouvidos alugados durante muito tempo.
J Francisco Saraiva de Sousa