Os paladinos do fim das ideologias, começando por D. Bell, passando por Raymond Aron, e terminando com F. Lyotard, não compreenderam as causas profundas daquilo que anunciaram: o fim das grandes ideologias políticas ou das grandes narrativas.
Em Portugal, os comentadores políticos de inteligência reduzida costumam afirmar, com as caras a expressar risinhos luso-ignorantes e avermelhados, que certo debate político ou campanha eleitoral foi pouco ideológico ou com pouco «sumo ideológico», querendo com isto dizer que houve «ausência de ideias». De facto, o «pragmatismo» luso-reduzido parece estar na moda na cena política portuguesa: o político procura vender de si uma imagem de «homem pragmático», isto é, de homem que «faz obra» e que não perde tempo a divagar ou expor ideias. Percebe-se facilmente as razões que levam os políticos portugueses a abster-se de expor as suas ideias: eles não têm ideias para partilhar e muito menos projectos políticos capazes de mobilizar a sociedade civil portuguesa, porque toda a sua vida decorreu sem necessidade de despender esforço mental e cognitivo. O sistema de luso-corrupção garante-lhes uma carreira de «sucesso», distribuindo em rede altamente interconectada «títulos» sem real avaliação, com os quais se identificam organicamente, para justificar a sua presença na esfera pública e encobrir a sua terrível mediocridade e maldade visceral.
Guerra Junqueiro, um poeta e político português desprezado pelas pseudo-elites, captou a essência deste fenómeno, o que significa que sua arqueologia se perde na memória da formação e do desenvolvimento da nacionalidade. Em «Finis Patriae», Guerra Junqueiro descontrói em diversas frentes (económica, política, cultural, religiosa, jurídica, ideológica, educativa...) a «alma lusa», sobretudo nestes versos:
«Não há latrina que suporte
Tão baixo e cínico jantar!
Seu cheiro pútrido é tão forte,
Que a campa, estômago da Morte,
Era capaz de o vomitar!
«Vede lá, pois, corvos funéreos,
Que orgia opípara de rei!
Goelas sinistras de Tibérios,
Roucos glutões de cemitérios,
Comei! comei! comei! comei!»
E, em «O Regímen», Guerra Junqueiro explicita melhor o seu pensamento:
«Regímen hediondo! Assassino de Deus, coveiro de almas.
«Hipérbole? não. É vulgar, banal, burlesco, olhado em Lisboa, anedoticamente, com olhos de ironia. Mas, olhado no tempo e no espaço, perante Deus, avoluma, caliginoso, em monstro formidável. Surge demoníaco. Dissolve, destrói, desfaz, desorganiza. A ruína bruta é ainda o menos. Uma parede no chão, levanta-se; um mercado perdido, encontra-se; um banco sem ouro, atulha-se de ouro facilmente. Mas a ruína moral! A morte de milhões de almas, milhões de ideias, de consciências! A abóbada estrelada do pensamento vestindo-se de noite fúnebre, noite de caos! Horroroso! pavoroso!
«Regímen sinistro! És a árvore da morte, a árvore do mal. A tua sombra esterilizou o nosso campo; os teus frutos gelaram o nosso coração. Quebrar-te um ramo ou espezinhar-te um fruto, para quê? Deitarás mais ramos, deitarás mais frutos. O que é necessário, árvore tenebrosa, é arrancar-te pela raiz e fazer contigo uma fogueira. Depois aremos o campo, semeemos o trigo...».
Neste texto, Guerra Junqueiro afirma que «a sociedade portuguesa está organizada para o mal», cuja «filosofia da vida (...) é a filosofia do porco: devorar». «Os refractários eliminam-se. Ou aplaudir e ser cúmplice, ou protestar e ser vítima». Palavras fortes que definem bem aquilo a que chamámos, no post anterior, «democracia fascista portuguesa». (Repare-se como o caso de Guerra Junqueiro repete-se no chamado caso do «apito dourado»! Ironia? não. Eterna repetição da mesma luso-merda lisboeta: corrupção de alto nível envolvendo diversas esferas do luso-poder que agem de modo a destruir a originalidade que ameaça a sua sobrevivência!) É efectivamente a «ditadura do engorda», que excluí da sua mesa todas as almas excelentes de Portugal. «Que é da nação? -- Morreu na história!»
Fim das ideologias políticas? Não. Perpetuação de um regime de terror metabolicamente reduzido? Sim. (Voltaremos a estes assuntos noutras oportunidades. Sobre Guerra Junqueiro, reconduzo para o meu estudo aqui editado outra vez: «Guerra Junqueiro: Poesia e Filosofia».)
J Francisco Saraiva de Sousa
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