segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

O Feiticeiro Vodu e seus Zombies

Este título pode parecer estranho, mas ele tem a sua razão de ser. Vodun é o nome foneticamente correcto do complexo cultual popularmente chamado vodu. Trata-se de uma "religião" sincrética dos negros do Haiti que combina elementos cristãos com elementos africanos, especialmente originários de Daomé, que foram introduzidos na região caraíba pelos escravos negros, nos quais tem origem a população actual. Os fundadores do clã de Daomé são conhecidos como tovodun e é deles que provém o culto vodu.
Os ritos de vodu são basicamente rituais familiares com ofertas e sacrifícios acompanhados de cânticos e de danças, nos quais vários deuses são personificados e invocados para assistirem à cerimónia. À medida que cada deus é invocado com a sua saudação tocada nos tambores, os dançarinos que os representam vão ficando possuídos. O comportamento de transe dos devotos e o êxtase dos adoradores dão um aspecto sinistro à cerimónia, donde resultou a sua má reputação universal.
O termo zombie deriva desta tradição popular haitiana e é usado para referir um «morto vivo», castigado por ter cometido algum crime e condenado a vaguear errante, balbuciando e olhando atentamente com os seus olhos mortos, obedecendo cegamente às ordens de algum sacerdote ou xamã do culto vodu. Wade Davis (1985, 1988) descreveu a poção neurofarmacológica que os praticantes do vodu preparam e que tem supostamente a propriedade de pôr um ser humano num estado semelhante à morte. Estes seres são enterrados vivos durante alguns dias e, posteriormente, são exumados. É-lhes administrado um alucinogéno que provoca desorientação e amnésia, após a qual se convertem em seres errantes como os zombies dos filmes de terror e, por vezes, acabam por ser escravizados pelos seus «feiticeiros».
Conforme refere Daniel Dennett, os filósofos retomaram este termo para referir uma categoria distinta de ser humano imaginário: um zombie filosófico é ou seria um ser humano que, apesar de exibir uma conduta perfeitamente normal ou natural, não é consciente e, portanto, é uma espécie de autómato. Ora, a leitura da obra "Consciousness Explained" de Daniel Dennett (1991) permite-nos retribuir-lhe a prática de vodu, no seu sentido originário.
Como? Afirmando que o feiticeiro vodu é Daniel Dennett e que os seus zombies são todos aqueles que, de um modo ou de outro, lhe obedecem quando julgam ter descoberto a solução para o velho problema da consciência. Todos negam a ontologia da primeira pessoa, portanto, a existência de estados subjectivos e conscientes.
Como se sabe, Dennett, na sua obra «Consciousness Explained», nega a existência dos sentimentos e das experiências subjectivos, portanto, as qualias, e, quando ataca o "teatro cartesiano", opondo-lhe o "modelo dos esboços múltiplos da consciência", não o faz para defender a ideia de que tais estados ocorram difusamente em todo o cérebro, uma hipótese plausível se levarmos em conta a memória, mas para negar a existência de um "local unificado das nossas experiências conscientes", como se a consciência fosse simplesmente a implementação de um certo tipo de "programa ou programas de computador numa máquina paralela" que evolui na natureza.
Apesar de pretender ser muito científica no sentido duro do termo, porquanto parece estar em sintonia com a "visão científica do mundo" assumida dogmáticamente como a mais correcta, a teoria de Dennett não dá conta dos estudos neurocientíficos, em particular dos estudos que usam a ressonância magnética funcional para «observar» os correlatos neurais das experiências cognitivas, místicas e estéticas, e, o que é ainda mais grave, omite praticamente toda a «história dogmática da filosofia», preferindo fingir que pensa pela sua própria cabeça, quando realmente mais não faz do que retomar os velhos problemas da escolástica. Por isso, estas novas tentativas anglo-saxónicas de solucionar o problema da consciência, sem o recurso aos conhecimentos adquiridos ao longo da história da filosofia, condenam a filosofia da mente a um estado de indigência muito preocupante, além de incentivar a opinião em detrimento do conhecimento, sobretudo daquele que procura «dizer a verdade» (Canguilhem).
De uma ou de outra forma, tanto o feiticeiro Daniel Dennett quanto os seus escravos alucinados pela sua falsa solução que nega que o cérebro produza estados internos qualitativos conscientes, já que rejeita a existência de tais coisas, afiguram-se-me como zombies destituídos de consciência, sobretudo de consciência histórica (Gadamer), que se comportam aparentemente como seres humanos naturais, a avaliar pelos seus comportamentos externos, analisados do ponto de vista da terceira pessoa, como se eles, em conformidade com a sua própria perspectiva, fossem destituídos de uma ontologia da primeira pessoa. Contudo, como demonstrou Sartre nas suas primeiras obras, os cientistas analisam o comportamento das outras pessoas a partir do ponto de vista da terceira pessoa, como se fossem destituídas de uma ontologia da primeira pessoa, embora eles próprios não queiram abdicar da sua subjectividade. A "heterofenomenologia" é aplicada aos outros, porque esse é o procedimento científico normal, mas não se aplica aos próprios que reservam um estatuto fenomenológico especial. Ora, uma tal visão revela a miséria desta filosofia da mente, na qual, falando com rigor, só o feiticeiro não seria um zombie, dado controlar os outros reduzidos a meros autómatos obedientes às suas orientações heterofenomenológicas.
J Francisco Saraiva de Sousa

19 comentários:

Fernando Dias disse...

Excelente artigo!
A minha epistemologia distingue entre aquilo que não foi provado e aquilo que se provou estar errado.
Estudos que conheço ultimamente levados a cabo na Universidade de Winscosin, em Madison, por Richard Davidson, estudos de imagiologia cerebral funcional com místicos, e no Instituto Max Planck, na Alemanha, corroboram o que diz Francisco neste artigo e provam que Daniel Dennett está errado em muitas coisas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Conheço esses estudos e tenho quase todos esses artigos, porque tenho acesso às revistas. Já escrevi sobre alguns deles. Porém, penso que devemos estudá-los filosoficamente, com o objectivo de os clarificar. A filosofia da mente que se pretende muito científica não faz essa reflexão, preferindo arquitectar argumentos envenenados. Husserl tem uma certa razão quando diz que a ciência esquece o seu "lar": o "mundo da vida". Mas em Portugal ninguém está interessado nisso: perdi também essa luta! Fatalidade ter nascido neste país! :(

E. A. disse...

:))) realmente, o F. tem algo de personagem trágica, tem.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Porquê? Uma amiga disse-me que vou morrer cedo! :(

E. A. disse...

Morrer cedo? Desconheço os seus hábitos. Mas talvez de uma morte súbita, fulminante! Com o coração a cavalgar disparado até ao abismo. :)

Lembrei-me do belíssimo e talentoso Heath Ledger que nos deixou... :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fulminado é morte doce! Mas hoje estou muito preguiçoso e não sei porquê! Queria ter tempo para dar uma sova aos filósofos da mente e seus lusozombies! :)))

E. A. disse...

Vê, o F. é congestionante, exumador das dores.
Zeus fulmina-lo-á. N há nada a fazer.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estou apaixonado por máscaras. Sempre fui. Talvez um dia apresente as máscaras africanas, sobretudo Dogon, e melanésias. Nós ocidentais perdemos o sentido da máscara, como fuga e como afirmação no espaço público. O Carnaval é mera palhaçada! :))

E. A. disse...

Eu adoro máscaras, também! E adoro brincar com elas, e ao Carnaval, tb! O Carnaval veneziano é interessante precisamente porque recorda a commedia dell'arte; o Carnaval brasileiro deve ser muito louco mas por outras razões.
Ciao Francesco

Alvorada disse...

Vudu! Que interessante!
Há anos assisti a uma cerimónia vudu na Jamaica. Julgo que versão turistica, mas ainda assim fiquei atemorizada ( risos )!
Zombies? Sim! Somos muito! Alienações diferentes por razões diferentes!
Comentário tipico daquilo que critica na sua nota no Bolinas ( risos ). Mas eu assumo a minha ignorância em muitas das questões que aborda no seu blog. Por isso gosto de visitá-lo. E confesso que há situações em que também sinto necessidade de um bom "intérprete" ( risos ).

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Alvorada

Mas faço um esforço para ser compreensível! E, quando esteve lá, "viu" algum zombie? Cá também os temos... :)))

Valter disse...

Olá Francisco,
Normalmente, uso a caixa de comentários para deixar alguma questão, no entanto, desta vez, fiquei praticamente um "zombie" depois de ler o seu texto. :)

Começo a preocupar-me com o poder dos seus argumentos, Francisco, não gostaria de perder a minha "ontologia pessoal" nos blogues!

Parabéns pelo post!
Um abraço

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Valter

Ontologia pessoal nos blogues é bom, porque se torna interpessoal. :)
Outra abraço

Manuel Rocha disse...

Questão: que relevância tem Dennet na filosofia actual ? Corrente marginal ou nem por isso ?

Porque diz "perdi também essa luta" ( trazer a filosofia da ciência de regresso ao seu "lar", deduzo), quando é óbvio que está no campo de batalha em atitude que manifestamente não espelha rendição ?!

:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dennett tem bastante influência e mesmo em Portugal começa a ser lido e seguido dogmaticamente, o que é preocupante. A obra que referi é boa, mas as que foram traduzidas para português são muito escolásticas. Portanto, má influência! :(
Sim, aqui online "vingo-me, mas em termos académicos estou desiludido. Acho as nossas universidades antros de pasmeira...

Manuel Rocha disse...

Ai acha ?!

Mas então e do que pensa que me estava a queixar lá do meu lado com aquele desabafo ?! Das minhas ovelhas ?!

:)))

As nossas instituições são o reflexo daquilo que somos. Se não estão melhores temos sempre de colocar a hipótese de que seja a nossa estratégia ou o investimento pessoais ( nossos ) que não são os adequados. Por isso a rendição não é hipótese. Como diz o F Dias no lado dele, "TEM DE SER" !

E que é feito do guerreiro que há dias andava por aqui de armadura e maça d'armas pronto a investir...contra quem era mesmo ??!!....:)))))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não desisto... sempre de armas nas mãos! :)
O desafio refere-se a uma nova abordagem da filosofia da natureza, em voga nos USA. Ainda não tive tempo para processar os livros, mas parece muito interessante, até porque nos desafia a ver a nossa história de outra forma. "Memória e Paisagem", "A Ferro e Fogo" ou "Os Espírito Ocidental contra a Natureza" são obras emblemáticas, mas muito densas.

Manuel Rocha disse...

"Memória e Paisagem"....fiz um ensaio sobre isso para um congresso há algum tempo ( se quiser ver mando-lho por mail ).

Mas não conheço nenhuma dessas obras. Faça a triagem e depois recomende-me sff...::)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok... aguardo o seu ensaio.