domingo, 29 de junho de 2008

Gaston Bachelard: Poética da Casa (1)

«Habitar é o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir se tornarem dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar». (Martin Heidegger)
O estudo da dinâmica fundamental da vida humana, do partir e do voltar, deve analisar duas regiões do espaço que estrutura: o mundo lá fora, em toda a sua vastidão, com os seus pontos e regiões cardinais, com os seus caminhos e as suas estradas, e o mundo no qual a vida permanece ligada a um centro, a um ponto de referência fixo, ao qual se vinculam todos os seus caminhos, os que partem e os que regressam. O homem precisa de um tal centro, através do qual possa permanecer objectivamente enraizado no espaço e ao qual são referidas todas as suas circunstâncias espaciais. Sem este último mundo do lar o homem não pode viver: a terra natal ou lar é o "lugar" onde o homem habita no seu "mundo", onde se encontra em casa e para o qual sempre regressa depois de ter partido. Isto significa que a casa se encontra no centro do mundo dos mortais.
Ernst Cassirer mostrou que o homem primitivo está fortemente enraizado nesse centro objectivo fixo do espaço e, por isso, o habitar não constitui um problema para ele, como se verifica pelos estudos de Marcel Mauss sobre as sociedades esquimó, de Bronislaw Malinowski sobre os nativos das Ilhas Trobriand ou de Evans-Pritchard sobre os Nuer. Porém, o mesmo já não pode ser dito em relação ao homem moderno. O capitalismo tardio e as suas práticas económicas globais neoliberais estão a destruir este centro objectivo, fomentando o desenraizamento e criando um "mundo sem lar" (Peter Berger): o mundo do sonho e do sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio e um lugar seguro contra a anomia e a alienação. Não satisfeito com a destruição da natureza, o capitalismo tardio usa e explora o homem, roubando-lhe o lar e entregando-o ao abandono completo. O homem moderno está a transformar-se num apátrida sobre a Terra, porque já não está vinculado a qualquer lugar. Converte-se num eterno fugitivo de um mundo cada vez mais ameaçador e em risco.
Mas, onde começa o perigo que ameaça o homem moderno, deve nascer a sua missão política. Ou, como diz Heidegger, «o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar». Para viver sem angústia, o homem precisa encontrar um centro no seu espaço, visto que a sua essência está ligada à existência de um tal centro. Se já não o encontra como algo dado, devido à apropriação capitalista da terra, o homem tem de o criar, sacá-lo ao capitalismo ladrão, apropriar-se dele e defendê-lo contra todas as agressões e ameaças exteriores. Neste mundo sem lar, cuja economia capitalista lança o homem para a rua e o desespero, qual ser sem-abrigo, a missão decisiva do homem é criar este centro e lutar violentamente contra as forças económicas e políticas que o ameaçam. Esta missão exige um luta contínua contra os poderes instituídos e os seus cleptocratas, e a coragem para a cumprir: pensar, construir, edificar e habitar a sua casa. A posse externa de uma "habitação digna" não é suficiente para cumprir esta missão de sustentação e de sentido: o importante é a relação interna com a habitação, aquilo que Heidegger referiu quando disse que «os mortais devem primeiro aprender a habitar», e que Merleau-Ponty viu como a palavra-chave que reflecte plenamente a conexão do homem com o mundo. Para Merleau-Ponty, o homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Em todos estes "casos", fundados originariamente no "habitar o ser", o habitar designa a intimidade singular da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está misturado e envolvido com algo espacial. Quando escreve que «a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las», Merleau-Ponty mais não faz do que acentuar a diferença existente entre a objectividade científica no seu confronto com o objecto e a intimidade do habitar.
Saint-Exupéry foi um dos primeiros pensadores a descobrir que «os homens habitam e que o sentido das coisas varia para eles em função do sentido das suas casas». Habitar não é mais uma actividade humana entre tantas outras actividades, mas constitui a característica essencial do homem que determina a sua relação com o mundo na sua totalidade: habitar é, pois, o modo como o homem vive na sua casa, e é no habitar que o homem pode alcançar a plenitude do seu verdadeiro ser. A concepção de Saint-Exupéry coincide com a de Heidegger: «Ser homem significa: ser como um mortal sobre esta terra. Significa: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. (...) (A actual crise habitacional reside no) facto de não se fazer mais a experiência de que habitar constitui o ser do homem e de não se pensar mais que habitar é, em sentido pleno, o traço fundamental do ser-homem. (...) Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os homens, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo das quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura no seu vigor de essência». Ao contrário do existencialismo que encarava o mortal como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência total do homem é determinada a partir do habitar. O homem habita a sua casa antes de habitar o mundo. Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes", os "espaços louvados", como "espaços de posse", porque são espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" de uma economia capitalista que mata o planeta azul. Se não quiser continuar a ser um estranho lançado na terra, o homem deve aprender a habitar poeticamente esta terra, porque, como diz Heidegger, «a poesia é a capacidade fundamental do modo humano de habitar». (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Happy BirthDay to my Blog

Hoje (27 de Junho de 2008) este blogue festeja o seu primeiro aniversário, juntamente com o seu irmão gémeo "CyberPhilosophy": Feliz aniversário "CyberCultura e Democracia Online" e "CyberPhilosophy"! E obrigado a todos os ciberamigos/as que os frequentam e que os enriquecem com os seus comentários. Os meus blogues têm sido ao longo deste último ano a minha casa virtual, cujos quartos "CyberBiologia e CyberMedicina" e "NeuroFilosofia" partilho com todos aqueles que a visitam. Sobre a casa Gaston Bachelard escreveu:
«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa
A minha casa virtual tornou-se, com o decorrer do tempo, um espaço de ligação e de diálogo, onde emergem pensamentos, lembranças e sonhos diurnos, por vezes numa blogosfera adversa e pouco preparada para os sonhos de um mundo melhor. Tal como as casas literárias de George Spyridaki e de René Cazelles, a minha casa virtual é de tal modo dinâmica que permite a todos os que a frequentam habitar o universo: as paredes foram abolidas e nela é possível curar a claustrofobia.
A minha querida amiga Denise dedicou este post ao primeiro aniversário dos cybergémeos: Parabéns Gémeos. E agradeço ao blogue "Aniversário de Blogues" por me ter recordado deste acontecimento.
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Arquitectura Dinâmica



O primeiro edifício giratório que roda e gera electricidade vai ser construído no Dubai. O conceito de edifício giratório não é completamente inédito, porquanto uma tecnologia giratória similar já foi aplicada na construção de edifícios existentes, um dos quais na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, no sul do Brasil, onde foi inaugurado em 2004 um edifício de apartamentos que giram tanto para esquerda como para a direita e cuja movimentação pode ser activada por comando de voz. Contudo, após 30 anos de trabalho, o arquitecto italiano David Fisher apresentou recentemente em Nova Iorque o projecto dos primeiros edifícios giratórios, um no Dubai, outro em Moscovo e um terceiro em New York.

A Rotating Tower Technology Company, liderada pelo grupo Dynamic Architecture, revelou elementos do projecto de design, bem como a planta do edifício giratório do Dubai: 80 andares e 420 metros de altura. A área média de cada apartamento é aproximadamente de 120 metros quadrados e as vilas, com 1.200 metros quadrados, contam com um espaço adicional para o estacionamento de um automóvel. Cada andar da torre giratória roda de maneira independente, possibilitando o surgimento de um edifício que pode mudar de forma constantemente.

Este novo princípio de "mudança da forma arquitectónica" está na base da arquitectura dinâmica, a qual possibilita uma nova fenomenologia do espaço. Se, como diz André Breton, uma obra de arte só pode ser válida quanto passam através dela "tremores provenientes do futuro", então devemos pensar na utopia arquitectónica subjacente à noção de "casa dinâmica". Com efeito, a passagem da casa concentrada para a casa expansiva implica uma nova intimidade do mundo, a qual tem sido a da posse (capitalista) do mundo. A visão do mundo é amplificada por esta nova tecnologia giratória: o habitante de um apartamento giratório pode amplificar a sua visão do mundo, mas, se o seu "ver" continuar a significar "ter", a imensidão (Bachelard) que o habita na solidão será mero movimento de um ser imóvel que, em vez de sonhar um mundo imenso, se deixa hipnotizar pela ilusão da posse e da apropriação capitalista do mundo. Neste último caso, o edifício giratório limita-se a amplificar a "captura do infinito" (Benevolo), sem ter consciência de que não dominamos verdadeiramente a natureza.

O edifício do Dubai será ecológico e independente em termos energéticos e conseguirá auto-abastecer-se através de turbinas eólicas ajustadas entre os andares. A sua construção será feita a partir de peças pré-fabricadas. Este novo método de trabalho, bem como a redução do número de trabalhadores no local de construção destas torres ou arranha-céus, permitirá uma economia calculada em cerca de 20 por cento, isto é, uma redução significativa dos custos da obra. Segundo Fisher, «cada andar do edifício pode ser construído em apenas sete dias».

O edifício combina movimento, energia verde e novos métodos de trabalho de construção. Isto significa que a sua construção poderá contribuir para a mudança conceptual e paradigmática na arquitectura, abrindo as portas à nova era da arquitectura dinâmica. Dado encerrar no seu bojo uma nova utopia arquitectónica (Ernst Bloch), é preciso que os poderes locais da cidade do Porto sigam o exemplo de outras cidades modernas e estejam muito atentos ao Edifício Giratório. Não podemos perder a marcha rumo ao futuro: precisamos construir no Porto um edifício giratório. Não tenham medo das alturas: tal como as catedrais góticas, os arranha-céus elevam-se ao céu para "sondar Deus". O grande Emerson escreveu: "A nossa civilização e essas (novas) ideias estão a reduzir a Terra a um cérebro. Vede como, pelo telégrafo e pelo vapor, a Terra está antropoficada". Ora, no nosso tempo, com o advento das telecomunicações e da rede, a Terra está cada vez mais antropoficada, e não precisamos ver nisso um "mal terrível". (A imagem de cima é a do Hotel Sheraton da cidade do Porto. E o vídeo foi emprestado daqui.)

J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 24 de junho de 2008

Ernst Bloch e a Arquitectura


Aliando-se à «corrente quente» de Rosa Luxemburgo, Ernst Bloch (1885-1977) propõe uma nova leitura de Marx que, sem abandonar a crítica da economia política, portanto, o Marx da maturidade, dinamiza a utopia, não a "utopia abstracta", pensada como um esboço ou um modelo de um Estado idealizado de justiça e de igualdade, mas a "utopia concreta", de modo a corrigir e a ultrapassar os conceitos de um materialismo vulgarizado. Isto significa que Bloch reactualiza o "socialismo utópico" e os conceitos éticos de um pensamento voltado para o futuro e enraizado numa ontologia do "ainda-não-ser". As categorias centrais deste "novo espírito utópico" são a "possibilidade" e a "esperança".
UTOPIA CONCRETA. No pensamento de Bloch, a verdade implica um sentido de emancipação, apresentando-se como uma espécie de alavanca para uma prática humanista transformadora, a qual pode concretizar-se no processo real da história humana, porque nela está latente uma tendência proto-utópica que ainda não conseguiu realizar-se. Este "ainda-não" constitui a categorial fundamental da filosofia blochiana da praxis, a qual se estrutura basicamente na determinação do ser e do ente através da "antecipação do futuro" no ser do presente, ou seja, na co-determinação do ser presente pelo horizonte do futuro. Contudo, a realização e a exteriorização dessas potencialidades não são o resultado de um imanentismo automático, mas dependem da actividade prática e crítica dos sujeitos. Estes devem apoderar-se dessas possibilidades reais de transformação e utilizá-las no sentido de uma prática transformadora verdadeiramente humana.
Bloch distancia-se claramente da "interpretação científica" ou positivista do socialismo de Engels, reintroduzindo o conceito de "dignidade humana", retomado da filosofia do "direito natural", e exorcizando o conceito demasiado "positivo" de ciência. A conservação do sentido revolucionário do direito natural permite-lhe fundamentar os direitos do indivíduo, do cidadão e da democracia pluralista, sem os quais não pode haver socialismo autêntico. Isto significa que, segundo Bloch, o socialismo exige «a prática real dos direitos do cidadão» e a garantia das liberdades individuais. Bloch retoma a crítica de Rosa Luxemburgo contra Lenine, para afirmar que estas conquistas históricas da burguesia devem estar inscritas no projecto e no programa de um governo socialista.
Bloch faz uma distinção entre uma "corrente fria" e uma "corrente quente" no marxismo e, sem a aplicar à própria teoria de Marx, defende claramente a "corrente quente" oriunda de Rosa Luxemburgo, embora de um modo peculiar. Com efeito, para Bloch, a análise político-económica de Marx está intimamente ligada a uma filosofia escatológica da história, isto é, a uma interpretação messiânica secularizada da história, oposta à teoria social-democrata do gradualismo e do progresso científico enquanto libertador da humanidade. Isto significa que a "corrente fria" do marxismo enquanto condição de possibilidade da sociedade capitalista e da modernidade perde a sua eficácia como instrumento crítico de uma filosofia da praxis que visa a transformação radical do mundo, a menos que seja completada, ao nível teórico e prático, pela "corrente quente". Esta exprime as aspirações profundas que visam a democracia, a justiça social e a fraternidade entre os homens, bem como a crítica da ideologia que legitima a dominação do homem sobre o homem.
Deste modo, a "corrente quente" possibilita realizar uma síntese produtiva entre a ética socialista e a prática renovadora, entre a imaginação social e a conquista do poder, entre a teoria e a prática de emancipação. Bloch abandona claramente o conceito de "ditadura do proletariado", aliás um conceito marginal no pensamento de Marx, e propõe um "socialismo da liberdade", o qual deve ter consciência da sua herança utópica. Bloch define o marxismo como uma "ciência das tendências", descobrindo nele uma "ciência mediatizada do futuro". Estamos diante de uma "ciência dialéctica da realidade", ou seja, diante de uma análise das variadas possibilidades objectivas (Georg Lukács) de "transformação do mundo conforme a medida humana". Esta nova ciência, ou este "novo marxismo", precisa estar aberta às suas heranças culturais e à percepção inteligente das propriedades da realidade que apontam para o futuro. A ciência dialéctica das tendências é, no fundo, a "nova ciência do futuro", visto ser «a consciência progressiva do todo (totum) progredindo», do todo que ainda é factum, mas que se desenvolve no conjunto do devir, juntamente com o que "ainda-não-se-tornou".
Assim, ligando o projecto marxista do "tornar-se-mundo" da filosofia e do "tornar-se-filosofia" do mundo com a categoria de possibilidade no horizonte do ente, Ernst Bloch integra a teoria marxista no horizonte mais amplo de uma ontologia do ainda-não-ser, fundada na hipótese da exteriorização possível da imanência utópica no ente e de um destino utópico final de um mundo inacabado, mas preparado para um aperfeiçoamento constante, graças à categoria de "possibilidade". A filosofia de Bloch completa e "ultrapassa" o projecto de Marx, mas, tal como o jovem Marx, afirma que o último eschaton desta filosofia da praxis deve ser a realização da "consubstancialidade do homem e da natureza": o advento de uma sociedade nova que realiza a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo constituído pelo homem, e a humanização constituída da natureza. Ernst Bloch é, pois, o fundador do pensamento neomarxista da "utopia concreta", de uma ontologia do "ainda-não-ser (existente)" e de uma "fenomenologia da consciência antecipadora". Num mundo cada vez mais carente de imaginação política, a filosofia deve repensar a "docta spes" de Bloch: repensar o inventário das imagens do desejo, dos sonhos diurnos e das figuras de antecipação utópica, tais como emergiram na história da filosofia, da literatura, da arquitectura e da música, nas utopias dos contos de fadas e nas utopias arquitectónicas modernas.
Ernst Bloch coloca a utopia no cerne da existência humana, cabendo à acção subjectiva interpretar e realizar as possibilidades utópicas "ainda-não-realizadas" do passado e remodelar as necessidades reprimidas da humanidade quando emergem no conjunto complexo dos produtos culturais através dos quais a história é entendida. De facto, a ideia que preocupou Bloch foi "o sonho de uma vida melhor". O conceito blochiano de sonho merece especial atenção, quer na sua estética, quer na sua ontologia do "ainda-não-existente" (noch-nicht-Seiende). Embora seja um conceito de difícil compreensão, podemos torná-lo acessível ao entendimento do comum dos mortais: "o sonho que olha para a frente" (der Traum nach Vorwärts), encarando o "modo como as coisas são", não é definido na filosofia de Bloch como uma regressão às fantasias infantis. Ao contrário de Freud, Bloch recusa concentrar-se no "sonho nocturno", cuja verdade emerge nas lembranças do passado primordial ontogenético e filogenético ou do "não-mais-consciente". Bloch destaca preferencialmente o papel do "devaneio", o "sonho diurno", o sonhar acordado, com a sua projecção do "novo", o "ainda-não-consciente", e a sua vaga ligação com a situação em que se encontra o indivíduo. A esperança aparece no devaneio e a felicidade é vista «como a forma das coisas por vir». O devaneio, o sonhar acordado, é capaz de superar as censuras do superego e, deste modo, conservar um núcleo utópico.
Esta ênfase na "consciência antecipadora", no devaneio e no ainda-não-consciente, mostra claramente que o conceito de possibilidade não resulta somente da análise de determinadas condições de existência, mas constitui uma propriedade da "consciência pura". Bloch distancia-se, neste aspecto, de Heidegger e de Jean-Paul Sartre, bem como dos seus seguidores. Para Heidegger, a categoria central da experiência autêntica é, na sua analítica da morte, a angústia. Mas, uma vez descoberta a possibilidade, a esperança é um modo de experiência tão legítimo quanto a angústia. Face a uma "possibilidade concreta", existe a esperança de que seja realizada e a angústia de que não seja realizada. E, como a morte é inevitável, Bloch conclui que a possibilidade real «não reside em qualquer ontologia acabada do ser daquilo que já é existente, mas sim na ontologia do ainda-não-existente, que é continuamente fundamentado cada vez que descobre o futuro no passado e em toda a natureza». Isto significa que a sua ontologia não está acabada, mas aberta ao futuro: «o marxismo não está fechado», isto é, concluído.
UTOPIA ARQUITECTÓNICA. Ernst Bloch analisou as utopias arquitectónicas em chave utópica: os edifícios e as cidades que figuram um mundo melhor. A grande arquitectura visa antecipadamente a "edificação do reino da liberdade", através da "humanização da natureza": a morada, a terra natal, a casa, o lar, enfim a pátria, edificadas antecipadamente que revelam, na sua execução na arquitectura, os sonhos de um mundo melhor. Para Bloch, a arquitectura é a "arte do espaço" e o espaço arquitectónico é visto como "a representação de um espaço imaginário no próprio seio do espaço empírico". Embora a arquitectura moderna estivesse inicialmente orientada para o exterior, para o sol e o espaço aberto, as suas concretizações funcionais e urbanísticas traíram a sua ambição utópica, bem como o espírito das utopias arquitectónicas do Egipto e do Gótico, tornando a sua síntese impossível.
No período entre as duas Guerras Mundiais, esta abertura ao exterior e ao sol foi dominada e suplantada pela construção de conjuntos transformados em "edifícios blindados", que ressurgem nos nossos dias sob a forma de condomínios fechados, como se a vida estivesse em perigo e necessitasse de segurança autoritária. Esta necessidade de segurança reflecte actualmente o abismo das desigualdades sociais. Os condomínios fechados reflectem as actuais relações sociais de produção capitalistas que dilaceram a sociedade em dois grupos sociais: o reduzido número dos muito ricos e o exército dos muito pobres. Os ricos auto-excluem-se refugiando-se em condomínios fechados de luxo e apropriando-se privadamente da natureza embelezada, mas o que fazem deveras é concentrar a riqueza e produzir exclusão social. O edifício fechado em si mesmo revela, como viu Fredric Jameson, a face oculta da exclusão social plasmada na pedra e no cimento das cidades modernas tardias. A era das massas e a sua arquitectura funcional produziram uma "máquina desumanizada" e a correspondente casa privada de aura, a imagem de uma cidade sem vida, absolutamente estranha ao homem e aceite como tal, feita de feixes de luz ou de outras imitações de uma geometria projectiva. Os arquitectos que visavam a reforma social, em especial Le Corbusier, Walter Gropius e, em menor grau, Frank Lloyd Wright, foram precipitados e muito pouco críticos: em vez de edificar a casa da comunidade dos homens, criaram uma arquitectura que reflecte o carácter glacial do mundo da automação, da sociedade de consumo, da sua alienação, dos seus homens divididos pelo trabalho e pelos lazeres programados, e da sua técnica abstracta. A "sociedade" visada pela arquitectura moderna converteu-se actualmente numa megacidade em que os mais ricos se apropriam do espaço público e o vedam de modo a impedir a livre circulação: cidades de riqueza amuralhada emergem num tecido urbano decadente, pouco seguro e miserável. A democracia tornou-se cleptocracia, o urbanismo fala a linguagem do poder instituído e dos grandes interesses económicos, e, na dialéctica do poder e da liberdade, a grande derrotada é a liberdade de movimento.
A síntese entre as utopias arquitectónicas do Egipto, a do cristal da morte, e do Gótico, a da árvore da vida, é impossível. Bloch não defende uma arquitectura de epígono, mas uma terceira via, o renascimento da arquitectura, capaz de oferecer o espectáculo directo de uma "Arcádia construída": o edifício giratório e a noção de "casa dinâmica" lançada pelo arquitecto David Fisher prometem um novo renascimento arquitectónico. O marxismo sintetiza a liberdade do sujeito (More) e a edificação da ordem (Campanella) numa relação produtiva na qual emerge a "edificação do reino da liberdade". Embora a utopia arquitectónica seja o começo e o fim da utopia geográfica, a tendência não é a da "integração no cosmos", mas a da "humanização da natureza". A missão da grande arquitectura é dispor ou arranjar a natureza inorgânica de modo a torná-la "parente do espírito" (Hegel), sob a forma de um mundo exterior regido pela arte, isto é, de um mundo melhor, traduzido na proporção e no ornamento. Os grandes edifícios são, à sua maneira, a antecipação da utopia de um espaço feito para o homem, um espaço tal que é projectado na utopia. Aqui reside o núcleo da estética da arquitectura: o edifício é o espaço feito para o homem, absolutamente aberto ao futuro do homem novo. A utopia do espaço arquitectónico é, na sua própria qualidade, uma "utopia da terra": os corpos e as casas estão integrados na totalidade terrestre e infiltram-se com a sua própria utopia na utopia geográfica: "O Eldorado-Éden engloba, com diz Bloch, todas as outras utopias do fundamento de um mundo melhor". (As imagens de cima são as da Estação de S. Bento da cidade do Porto e da Estação Central de Berlim.)
J Francisco Saraiva de Sousa

domingo, 22 de junho de 2008

Bruno Zevi: Arquitectura como Arte do Espaço

«Além dos espaços com duas únicas dimensões, isto é, as superfícies que apenas olhamos, a arquitectura dá-nos espaços com três dimensões, capazes de conter as nossas pessoas, e este é o verdadeiro centro desta arte. Em muitos aspectos, as funções das artes sobrepõem-se: assim a arquitectura tem muito em comum com a escultura e ainda mais com a música, mas, além disso, tem o seu território particular e transmite um prazer que é tipicamente seu. Ela possui o monopólio do espaço. Apenas a arquitectura entre todas as artes é capaz de dar ao espaço o seu pleno valor. Ela pode rodear-nos de um vazio de três dimensões e o prazer que dela se consegue extrair é um dom que só a arquitectura pode dar-nos. A pintura pode pintar o espaço, a poesia, como a de Shelley, pode sugerir a imagem, a música pode dar-nos uma sensação análoga, mas a arquitectura tem a ver directamente com o espaço, utiliza-o como um material e coloca-nos no seu centro». (Geoffrey Scott)
Após ter lamentado a "ignorância" ou o esquecimento da arquitectura pela imprensa, Bruno Zevi, na busca que empreende de ensinar a saber ver a arquitectura, distingue nove tipos de interpretações da arquitectura, a saber, a política (1), a filosófico-religiosa (2), a científica ou positivista (3), a económico-social (4), as materialistas (5), a técnica (6), as fisiopsicológicas (7), a formalista (8) e a espacial (9), as quais se dividem em três grandes categorias: as interpretações relativas ao conteúdo ou estéticas do conteúdo (1-6), as interpretações fisiopsicológicas (7) e as interpretações formalistas ou estéticas da forma (8), perfeitamente incluídas na concepção espacial da arquitectura (9). Esta classificação das interpretações da arquitectura revela muitos equívocos teóricos que estorvam, quais obstáculos epistemológicos (Bachelard), a sua compreensão crítica. Primeiro, porque esquece que todas as interpretações referidas são teorias filosóficas, e, segundo, porque não distingue com rigor entre a teoria (geral) da arquitectura e as estéticas (possíveis) da arquitectura. É possível elaborar uma teoria geral da arquitectura, como mostrou Christian Norberg-Schulz, de modo consensual e distinto da estética da arquitectura, mas não podemos elaborar uma estética sem antes ter uma noção formada do carácter peculiar do edifício ou das construções arquitectónicas. A estética da arquitectura depende dessa teoria geral e é neste sentido que iremos avaliar o contributo teórico de Bruno Zevi.
Apesar das dificuldades teóricas mencionadas, Bruno Zevi lança um novo conceito de arquitectura: a arquitectura é a arte do espaço. Para Zevi, o carácter essencial da arquitectura, que a distingue das outras actividades artísticas, reside no facto de agir com um vocabulário tridimensional que incluí o próprio homem. Enquanto a pintura actua sobre duas dimensões, a despeito de sugerir três ou quatro dimensões, a escultura e a arquitectura actuam sobre três dimensões, mas com uma diferença antropologicamente significativa: a escultura deixa o homem de fora, completamente desligado, a olhar do exterior as três dimensões. Ora, como diz Zevi, «a arquitectura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha». Isto significa que a arquitectura tem um vínculo privilegiado com o homem, a sua praxis e o seu mundo. Antes de ser obra-de-arte, a construção responde a uma necessidade humana fundamental e vital, a de dar abrigo ao homem, construindo o seu mundo. Aliás, como defendeu Ernst Bloch, a grande arquitectura visa antecipadamente a "edificação do reino da liberdade", através da "humanização da natureza": a morada, a terra natal, edificada antecipadamente que revela, na sua execução na arquitectura, as manifestações de um mundo melhor. Ou, como diz Zevi, na arquitectura a quarta dimensão é o próprio homem: «aqui é o homem que, movendo-se no edifício, estudando-o de pontos de vista sucessivos, cria, por assim dizer, a quarta dimensão, dá ao espaço a sua realidade (humana) integral».
Na perspectiva de Zevi e de Scott, o espaço é o "protagonista" da arquitectura: «as quatro fachadas de uma casa, de uma igreja ou de um palácio, por mais belas que sejam, constituem apenas a caixa dentro da qual está encerrada a jóia arquitectónica». Com esta noção crítica de "invólucro mural", Zevi descarta-se da técnica e da arte de "fazer embrulhos" ensinada nas escolas industriais americanas de commercial design, e, portanto, da "decoração", para avançar com o conceito central de espaço interior: «Em cada edifício, o continente é o invólucro mural, o conteúdo é o espaço interior. (...) O espaço interior, o espaço que não pode ser representado perfeitamente em nenhuma forma, que não pode ser conhecido e vivido a não ser por experiência directa, é o protagonista do facto arquitectónico. Tornarmo-nos senhores do espaço, saber "vê-lo", constitui a chave que nos dará a compreensão dos edifícios», porque esse espaço constitui a verdadeira realidade em que se concretiza a arquitectura. À pergunta "o que é a arquitectura?", Zevi responde de modo estético: «A definição mais precisa que se pode dar actualmente da arquitectura é a que leva em conta o espaço interior. A bela arquitectura será a arquitectura que tem um espaço interior que nos atrai, nos eleva, nos subjuga espiritualmente; a arquitectura feia será aquela que tem um espaço interior que nos aborrece e nos repele. O importante é, porém, estabelecer que tudo o que não tem espaço interior não é arquitectura». Como refere Norberg-Schulz, uma tal definição de arquitectura deixa de fora um dos mais belos edifícios da história da arquitectura: o Pártenon, o templo grego concebido não como a casa dos fiéis, mas como a morada impenetrável dos deuses.
Porém, antecipando-se a esta e a outras eventuais críticas, Zevi afirma que o seu conceito espacial de arquitectura não implica a desvalorização do espaço urbanístico (1) ou mesmo a redução da experiência arquitectónica à experiência espacial (2).
1). Afirmar que a experiência espacial arquitectónica só é possível no interior de um edifício não significa desvalorizar o espaço exterior. Todos os volumes arquitectónicos ou invólucros murais constituem um limite, um corte na "continuidade espacial" e, por conseguinte, colaboram para a criação de dois tipos de espaços: os espaços interiores, definidos perfeitamente pela obra arquitectónica, e os espaços exteriores ou urbanísticos, encerrados nessa obra e nas obras contíguas. Isto significa que «a experiência espacial própria da arquitectura se prolonga na cidade, nas ruas e praças, nos becos e parques, nos estádios e jardins, onde quer que a obra do homem tenha limitado "vazios", isto é, tenha criado espaços fechados». Bruno Zevi não excluí, portanto, os espaços exteriores ou urbanísticos do âmbito da arquitectura: a arquitectura da cidade, que preocupou Aldo Rossi e Giulio Carlo Argan, constitui a totalidade arquitectónica mais global que integra as restantes totalidades, ao mesmo tempo que aponta para a cidade global, cujas relações com a natureza ameaçada mereceram a atenção ecológica de Michael Hough. Segundo Argan, «a arquitectura acomodou-se à cultura de massas e à actual situação tecnológica, destruindo-se como arquitectura e transformando-se em urbanística»: a cidade está em crise, porque deixou de ser "obra do arquitecto" e passou a ser resultado da programação económica do território ou planificação. Embora esta concepção espacial da arquitectura esteja muito presa a uma estética do génio, tem o mérito de conceber a cidade como "criação de espaços fechados": o vazio de uma praça ou de uma estrada, exterior em relação aos edifícios que o ladeiam, é interior em relação à cidade.
2). Dizer que o espaço interior constitui "a essência da arquitectura" não é o mesmo que afirmar que o valor de uma obra arquitectónica se esgota no valor espacial: «Cada edifício caracteriza-se por uma pluralidade de valores: económicos, sociais, técnicos, funcionais, artísticos, espaciais e decorativos, e cada um tem a liberdade de escrever histórias económicas da arquitectura, histórias sociais, técnicas e volumétricas, tal como é possível escrever uma história cosmológica, tomista ou política da "Divina Comédia"». Isto significa que a realidade de um edifício resulta de todos estes factores e que a sua história não pode escamotear nenhum destes factores.
Bruno Zevi elaborou uma nova terminologia ou teoria arquitectónica centrada no espaço, a qual afirma que o valor original da arquitectura é o do espaço interior e que os outros elementos funcionais, técnicos e artísticos podem ajudar a apreciar o edifício em função da maneira como acompanham, acentuam ou obstam o seu valor espacial. A interpretação espacial da arquitectura constitui o ponto de partida de uma "visão integrada e compreensiva" da arquitectura, que julga todos os elementos que entram no edifício com a "medida do espaço". Daqui resulta que a interpretação espacial da arquitectura não exclui as demais interpretações: a interpretação espacial constitui o atributo necessário de toda a interpretação possível dotada de sentido concreto, profundo e compreensivo em matéria de obra arquitectónica. Com efeito, em arquitectura, o conteúdo social, os efeitos psicológicos e os valores formais materializam-se no espaço e, por isso, interpretar o espaço significa «incluir todas as realidades de um edifício». Zevi reconheceu que o conteúdo existe na realidade da imaginação arquitectónica e na realidade dos edifícios: «são os homens que vivem os espaços, são as acções que neles se exteriorizam, é a vida física, psicológica, espiritual que decorre neles». Isto significa que «o conteúdo da arquitectura é o seu conteúdo social». A interpretação espacial da arquitectura de Zevi não está concluída, porque não soube explicitar os seus pressupostos ontológicos e antropológicos, de resto destacados por Platão, Aristóteles, Kant, Schopenhauer, Hegel, Bloch, Adorno, Heidegger, Cassirer ou mesmo Spengler.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 21 de junho de 2008

Cidade e Cultura Urbana

«O mundo contemporâneo, forçado à precariedade pela contínua incitação a um consumo agora alegremente e amanhã ferozmente destrutivo, perdeu a antiga religiosidade, segundo a qual era o mito que condicionava o rito. Hoje, a ritualidade institui os mitos e não é mais o objecto que se mitifica, mas o mito que se materializa».
«A religião do homem moderno é animista, só que a realidade com a qual o homem se identifica não é a natureza, mas o universo das coisas que o próprio homem produz freneticamente para poder freneticamente consumi-las. (...) Num mundo em que a dominante é a imagem, não há outra atitude possível a não ser a do bricolage. O design industrial, que, em última análise, projecta a necessidade e a sua satisfação, é um instrumento de bricolage num ambiente todo artificial, quase uma segunda e falsa natureza em que as pessoas e as coisas se movem com ritmos que são os ritmos aparentemente insensatos e convulsos da cidade industrial moderna. Uma sociedade como a actual, aliás extremamente distante da natureza antiga e harmoniosa, forma um só todo com a cidade, que, porém, não é mais pensada como uma estrutura monumental histórica e estável, mas como um conjunto de canais maiores e capilares por onde a vida corre como um rio.» (Giulio Carlo Argan).
Existem muitas teorias da cidade, entre as quais a da crise da cidade de Argan ou a da imagem da cidade de Kevin Lynch, mas nenhuma delas possibilita fazer generalizações empíricas seguras. Contudo, apareceu, em pleno período de industrialização, uma teoria da cidade cujo desenvolvimento se encontra em dois ensaios seminais: As Metrópoles e a Vida Mental de Georg Simmel (1903) e Urbanism as a Way of Life de Louis Wirth (1938). Esta teoria tem o mérito de evitar definições arbitrárias da cidade, retendo apenas o tamanho e a densidade da população como duas características básicas da sociedade urbana: «uma cidade pode definir-se como um assentamento relativamente grande, denso e permanente de indivíduos socialmente heterogéneos» (Louis Wirth). As cidades têm no pensamento de Simmel a mesma importância que a democracia em Tocqueville, o capitalismo em Marx e a burocracia em Max Weber. Em vez de reduzir o estudo da organização social metropolitana em chave demográfico-territorial, Simmel prefere concentrar-se nas formas psíquicas que nascem da interacção entre indivíduos. A sua hipótese-chave centra-se na relação cultural do dinheiro/desenvolvimento da personalidade do habitante da metrópole.
Com o aumento do número de indivíduos provenientes de outras regiões, que transportam consigo novas crenças, valores e estilos de vida, surge na cidade uma heterogeneidade maior da população. O crescimento demográfico devido à migração exige maior divisão do trabalho e o advento de novos papéis ou funções, quase sempre muito especializados. Ora, o tamanho da população e a heterogeneidade social impedem a familiaridade difundida com os outros que caracteriza a pequena comunidade. Na cidade, a vida social do indivíduo baseia-se cada vez mais nas relações formais e impessoais que desestimulam a possibilidade de intimidade: a associação formal substitui o grupo primário como contexto prático no qual o indivíduo executa a maior parte das rotinas da vida quotidiana.
Estas mudanças nas relações sociais são acompanhadas por alterações culturais. Simmel mostrou que a variedade e o número de estímulos externos e de contactos sociais tendem a aumentar ou, como diz, a rápida e ininterrupta mudança de estímulos externos e internos intensifica de tal modo a "estimulação nervosa" que o citadino típico é forçado a desenvolver uma atitude blasé ou snob e a racionalidade para se proteger das pressões incessantes do ambiente social urbano: «A essência do snobismo (isto é, da atitude blasé) é a indiferença face às diferentes coisas, não no sentido em que elas não seriam percebidas, como no caso das pessoas estúpidas, mas no sentido de que o significado e o valor das diferenças entre as coisas, e, por conseguinte, o significado e o valor das coisas em si próprias, são encaradas como vãs. Elas surgem à vista do indivíduo snob com um matiz uniformemente baço e cinzento, de tal maneira que não existe motivo para preferir um objecto a um outro. Este estado de espírito é o reflexo fiel da economia monetária completamente interiorizada». A economia monetária característica da cidade reforça mais a racionalidade, o predomínio do intelecto e a objectividade do citadino típico, visto o dinheiro ser um meio abstracto que reduz ao mínimo os critérios pessoais de julgamento e fornece à interacção social o seu carácter formal. O dinheiro é o ser equivalente de coisas diferentes e, enquanto denominador comum de todos os valores, «exprime toda a diferença qualitativa entre elas, mediante diferenças quantitativas», esvaziando-as da sua substância, da sua particularidade, do seu valor específico e da sua incomparabilidade. Como escreveu Simmel:
«A pontualidade, a capacidade de cálculo e a exactidão são impostas à vida pela complexidade e pela extensão da existência urbana e não estão apenas relacionadas da maneira mais íntima com a sua economia monetária e o seu carácter intelectualista. Estas características devem igualmente matizar os conteúdos da vida e fornecer a exclusão daquelas características e impulsos irracionais, instintivos e soberanos que visam determinar o modo de vida a partir do interior, em vez de receberem do exterior a forma geral da vida esquematizada de maneira precisa».
A impessoalidade (anonimato), a racionalidade e a diversidade urbanas criam também a tolerância das diferenças e uma despreocupação pelo comportamento alheio, possibilitando ou até mesmo estimulando a inovação e o desprezo pela tradição. Dada poder escapar às coerções inerentes às interacções íntimas e próximas com os outros, o citadino típico pode tomar a seu cargo a resolução dos seus interesses, adoptar novas crenças e orientar-se por novas linhas de acção. E, mesmo que os outros desaprovem o seu comportamento, ele pode mudar não só de residência mas também de amigos ou de conhecidos, procurando os que partilham os seus pontos de vista e as suas inclinações. Deste modo, podem emergir na cidade milhares de mundos sociais, culturais e étnicos, cada qual com as suas crenças, os seus valores e os seus padrões de acção distintos, embora dentro dos limites impostos pelas formas urbanas de controle social.
Na cidade, é fácil escapar à vigilância e perder-se na multidão citadina anónima. Por isso, a tradição e as opiniões da família e dos amigos perdem força ou mesmo credibilidade perante o citadino típico. Porém, as organizações burocráticas e formais que predominam na cidade barram, de diversos modos, essa liberdade individual, e impõem à cidade uma máquina formal da lei e dos regulamentos burocráticos que afecta o seu destino colectivo. Esta gigantesca máquina organizacional, cuja divisão do trabalho exige ao indivíduo um desempenho cada vez mais especializado, acaba por produzir "a atrofia da personalidade": «O indivíduo é cada vez menos capaz de fazer frente ao enorme aumento da cultura objectiva. O indivíduo é reduzido a uma quantité négligeable, talvez menos na sua consciência do que na sua prática e na totalidade dos obscuros sentimentos colectivos que dela nascem». Segundo Simmel, esta atrofia da cultura individual mediante a hipertrofia da cultura objectiva conduz ao ódio, à agressividade, à violência e à exclusão, na medida em que a atitude mental do citadino é uma atitude de reserva, não apenas de indiferença, mas também de uma ligeira aversão.
Mais próximo do nosso tempo e na peugada de Horkheimer, Adorno e Marcuse, Argan associou a liquidação do indivíduo com a crise da cidade:
«Foi-se reduzindo cada vez mais até ser eliminado o valor do indivíduo, do ego; o indivíduo não é mais do que um átomo na massa. Eliminando o valor do ego, elimina-se o valor da história de que o ego é o protagonista; eliminando o ego como sujeito, elimina-se o objecto correspondente, a natureza. (...) A realidade não é mais dada em escala humana, isto é, na medida em que pode ser concebida, pensada, compreendida pelo homem, mas na medida em que não pode e não deve ser pensada, e sim apenas dominada ou sofrida, objecto de um êxito ou de um malogro; na dimensão, portanto, do infinitamente grande e do infinitamente pequeno, do superior e do interior».
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Tönnies: Comunidade e Sociedade

Tönnies encarou todo o desenvolvimento histórico desde a Idade Média como «a libertação gradual do racionalismo e o seu crescente predomínio como processo inerentemente necessário do espírito humano como vontade».
Ferdinand Tönnies (1855-1936) é conhecido pela sua obra Gemeinschaft und Gesellschaft, publicada em 1887, cujas ideias podem ser resumidas facilmente, apesar da obra ser teoricamente complicada devido à sua ligação a Hegel e a Schopenhauer.
Segundo Tönnies, todas as relações sociais são criações da vontade humana. Existem dois tipos de vontade: a vontade essencial que é a tendência básica, instintiva, espontânea, irreflectida, orgânica, que impulsiona a actividade humana a partir detrás, e a vontade arbitrária que é a forma de volição deliberada, reflexiva e finalista, capaz de determinar a actividade humana em relação ao futuro. A vontade essencial domina a vida dos camponeses, dos artesãos, das pessoas comuns, enquanto a vontade arbitrária caracteriza as actividades dos homens de negócio, dos cientistas, das pessoas investidas de autoridade e dos indivíduos das classes superiores. As mulheres e os jovens tendem a exercitar a vontade essencial; os homens e, curiosamente, as pessoas mais velhas, a vontade arbitrária.
Estes dois tipos de vontade explicam a existência de dois tipos fundamentais de grupos sociais ou de "sociedades". Um grupo pode existir e manter-se porque a simpatia entre os seus indivíduos os leva a sentir que essa relação é um "bem em si mesma", ou pode nascer como instrumento para conseguir alcançar um "fim determinado". Ao primeiro tipo de grupo, expressão da vontade essencial, Tönnies chama comunidade (Gemeinschaft), e ao grupo que deriva da vontade arbitrária, sociedade (Gesellschaft). A comunidade é uma forma social caracterizada por relações pessoais, intenso espírito emocional, e constituída pela cooperação, pelos costumes e pela religião. Esta organização social é encontrada na família, na aldeia e em pequenas comunidades urbanas. A sociedade é uma organização de grande escala, como a cidade, o Estado ou a nação, que se funda nas relações impessoais, nos interesses particulares, no direito e na opinião pública. Tönnies estudou a família, a vizinhança e o grupo de amigos como exemplos de estruturas comunitárias, e a cidade e o Estado como exemplos de estruturas societais.
Esta distinção não é apenas uma tipologia «estática» dos agrupamentos humanos, mas também possibilita explicar a passagem das "sociedades tradicionais" para as "sociedades modernas", portanto, as fases genéticas do desenvolvimento histórico visto como processo de racionalização crescente: a modernização. A sociedade surge, mediante a especialização das pessoas e dos serviços, da estrutura da comunidade, em especial quando as mercadorias e os serviços se vendem e se compram num mercado livre. A comunidade e a sociedade são produtos de dois tipos diferentes de vontade social. As vontades humanas podem estabelecer entre si "múltiplas relações" e podem dirigir-se ou para a conservação da ordem social ou para a sua destruição. As relações de "afirmação recíproca" que interessam à sociologia variam de intensidade. Um "estado social" existe quando duas pessoas desejam estabelecer determinada relação, que geralmente é reconhecida pelas demais pessoas. O "círculo" surge quando um estado social prevalece entre mais de duas pessoas, mas, a partir do momento em que os indivíduos acreditam que constituem uma comunidade organizada em função de características naturais ou psíquicas, aparece o "colectivo". Finalmente, quando surge uma "organização" formal que atribui funções específicas a determinados indivíduos, o corpo social converte-se numa "corporação". Todas estas formações sociais podem fundar-se ou na vontade essencial ou na vontade arbitrária.
Tönnies apresentou também uma classificação original das normas sociais que está intimamente relacionada com a distinção fundamental entre comunidade e sociedade. O direito consiste no conjunto das normas sociais que, de acordo com o seu sentido, podem ser aplicadas pelos tribunais. As regras morais são aquelas normas que, de acordo com o seu sentido, são aplicadas por um "juiz ideal", seja ele pessoal, divino ou abstracto. A concórdia consiste em regras que se baseiam em relações derivadas da comunidade e que são consideradas naturais e necessárias. Os costumes são regras que têm as suas raízes nas práticas tradicionais, enquanto as convenções se baseiam em "acordos" expressos ou tácitos que, por sua vez, se fundam sobre metas comuns para cuja consecução as regras ou perceptos são vistas como meios adequados. O direito e a convenção são característicos das associações societais, as regras morais e a concórdia, das comunidades, e os costumes parecem implicar os dois tipos sociais básicos.
Tönnies é geralmente conhecido pelo seu esquema de sucessão de dois tipos de sociedade, a comunidade cuja organização se baseia em qualidades comuns tais como o parentesco, o território, a língua e a religião, e a sociedade que organiza as pessoas em função de critérios formalizados por contratos e por constituições. Contudo, é esquecido que estes dois tipos de organização social são vistos como produtos de dois tipos de vontade social e encarados sob a visão do processo de modernização como racionalização, a qual não pode ser reduzida a uma teoria da retrogressão, mesmo que Tönnies sob influência do nacional-socialismo de Hitler tenha manifestado uma preferência pela comunidade. (Goggly iniciou um novo conto: "O Assalto".)
J Francisco Saraiva de Sousa

terça-feira, 17 de junho de 2008

Prós e Contras: Futebol: Coesão ou Alienação?

O tema de "Prós e Contras" (16 de Junho de 2008) girou hoje em torno da selecção nacional de futebol e a questão colocada por Fátima Campos era saber se o futebol fomenta a coesão nacional ou a alienação dos portugueses.
No palco, estiveram Luís Salgado Matos (politicólogo), Daniel Oliveira (jornalista), Carlos Coelho (criador e gestor de marcas) e Carlos Abreu Amorim (jurista), e na plateia, Miguel Gaspar (jornalista), Leonor Xavier (jornalista), Nuno Domingos (sociólogo) e José Neves (historiador), além da participação via satélite do Cônsul Geral de Nova Jersey, Francisco Azevedo.
Como disse Carlos Coelho, o debate foi uma tremenda "desilusão" ou mesmo uma frustração e esta foi iniciada por ele que quis reduzir o futebol nacional a uma marca que deve unir os portugueses, dando como exemplo a campanha negra de Obama e o seu lema ambíguo e terrível "Nós podemos". Ora, esta noção foi demolida por Daniel Oliveira que afirmou diversas vezes que os portugueses não eram "vendedores de sabonetes". O futebol não deve ser visto como marketing. Luís Salgado Matos e Daniel Oliveira alinharam pela "alienação", ora entendida como "religião da diversão" ora entendida como "irracionalidade", respectivamente, e Carlos Coelho e Carlos Abreu Amorim, bem como Francisco Azevedo, defenderam a concepção de que o futebol constituía um factor de coesão nacional entendida como "pátria da língua" (Fernando Pessoa). Com excepção talvez de Miguel Gaspar, os restantes participantes encabeçados por José Neves e a sua "opinião" auto-contraditória "anti-Nós" tomaram o partido "libertário" de Daniel Oliveira, do qual Luís Salgado Matos acaba por se distanciar na terceira parte do programa.
Assim exposto o xadrez desta luso-partida, até pode parecer que os participantes foram coerentes nas suas tomadas de posição, mas, como seria de esperar num debate entre portugueses, não foram nada coerentes e foram ditas algumas barbaridades. Aqui reside a força que produziu a desilusão: ausência de conhecimento e de rigor conceptual. Ora, sem rigor conceptual não pode haver verdadeiramente um debate racional e muito menos entendimentos motivados racionalmente: o discurso racional, visto como discurso "aborrecido" por Daniel Oliveira, cedeu o seu lugar à mera emissão de "opiniões" sofisticas trocadas num clima antropofóbico ou talvez homofóbico em torno das "pernas do Cristiano Ronaldo" (outra característica tipicamente portuguesa), nenhuma das quais captou a origem filosófica do conceito hegeliano-marxista de alienação, embora Miguel Gaspar a tenha referido sem a definir e tentado deslocar o debate para a relação entre o futebol e a televisão, a mediatização realizada da selecção nacional, deslocamento que seduziu Luís Salgado Matos. Até mesmo Daniel Oliveira disse coisas importantes e certas sobre o jornalismo, ou melhor, sobre a sua aniquilação pela "notícia em directo" ou a "transmissão em directo daquilo que ainda não aconteceu", o que mostra a importância teórica e política deste problema colocado em termos de "narrativa" (Miguel Gaspar) improvisada pelos sujeitos que ficam de pé com o microfone na mão a dizer "disparates" que condicionam as tomadas de posição das audiências desprevenidas, levando-as a saber de antemão quem são os "bons" e os "maus" da acção narrada, como temos visto nestes últimos tempos em relação ao caso conspirado por mentes encarnadas, corruptas e vencidas justamente no campo de jogo do "Apito Dourado", finalmente convertido pela Liga de Futebol em "Apito Final".
No fundo, a noção de alienação subjacente, embora não tematizada, pode ser referida como uma espécie de "manobra de diversão" que consiste em desviar as atenções dos portugueses dos verdadeiros problemas sociais e económicos do país para "assuntos" menos relevantes, tais como a vitória ou não da selecção portuguesa neste campeonato europeu, considerada "inócua", sem importância (Daniel Oliveira) ou mesmo altamente improvável (Luís Salgado Matos). Contudo, uma tal noção não tem nada a ver com a alienação no seu sentido antropológico e histórico rigoroso: trata-se neste caso de uma tentativa de instrumentalização política de um acontecimento frequente nos regimes autoritários ou nas ditaduras, mas mais complicada de executar num regime democrático, como lembrou Carlos Abreu Amorim, cujo conceito jurídico de alienação avançado teve um mero efeito retórico: em vez da alienação de bens, teríamos a transmissão de um exemplo capaz de unir os portugueses por contágio, levando-os a ser menos auto-flageladores, menos pessimistas, mais criativos e com mais vontade de fazer algo, cada qual na sua área profissional ou de actividade, pelo desenvolvimento nacional, uma vez que, com excepção de Carlos Coelho, ninguém se mostrou convencido da capacidade do futebol nacional para trazer só por si maior desenvolvimento para Portugal. Luís Salgado Matos reconheceu que os clubes portugueses, mais uns do que outros, se tornaram empresas capazes de criar as suas próprias mais-valias através de vários expedientes, tais como as receitas da publicidade ou a "venda de jogadores", embora fosse necessário maior transparência nas suas "contabilidades".
Finalmente, se nenhum dos presentes percebia verdadeiramente de futebol, como frisou José Neves, então a melhor atitude seria terem ficado calados, como recomendava Wittgenstein nessas ocasiões. Sem pretender desenvolver uma teoria crítica do futebol e do seu papel na sociedade global, direi apenas que se trata basicamente de uma ritualização da caça praticada pelos nossos antepassados (filogenéticos) que se dedicavam à caça nas savanas africanas. Isso significa que o futebol é não somente uma competição masculina que exige força, resistência física, destreza mental, treino e técnica, mas também uma actividade de agressão simulada entre equipas ou tribos rivais. O corpo no futebol, neste caso as "pernas do Ronaldo, do Deco ou do Pepe" ou mesmo as de Eusébio, como recordou Leonor Xavier, não está associado ao prazer, como afirmou Miguel Gaspar, mas à agressividade ritualizada, à força, à manha e à técnica corporal. Daí que a tentativa de criar novas audiências, em especial femininas, por parte da televisão, esteja condenada provavelmente ao fracasso: o futebol é um jogo exclusivamente masculino que opõe duas equipas e, portanto, duas tribos (clubes e massas de adeptos), que se confrontam em campo, seguindo determinadas regras de jogo cujo cumprimento compete ao arbitro garantir e punir sempre que sejam quebradas. A vitória da sua equipa leva depois os seus adeptos a festejarem, por vezes cometendo excessos, fortalecendo a sua identidade de grupo. O futebol, pelo menos visto ao nível nacional, não une os portugueses; pelo contrário, divide-os e torna-os rivais ou mesmo inimigos uns dos outros. Porém, quando se trata de uma selecção nacional, o futebol pode efectivamente suspender temporariamente as rivalidades clubísticas e regionais e unir aqueles que estão internamente divididos, fomentando assim a coesão ou fortalecendo a identidade nacional dentro e fora das fronteiras nacionais, como mostrou Francisco Azevedo. E, neste mundo cada vez mais global e mediado, o futebol pode, apesar de tudo, funcionar como uma força de pacificação entre povos e culturas distantes: em vez de guerras que matam os adversários, os confrontos de futebol possibilitam ritualizar as rivalidades sem produzir mortes.
J Francisco Saraiva de Sousa

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Hegel e o Problema da Morte

«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)
«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)
«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)
«A necessidade de morte não refuta a possibilidade de libertação final. Tal como as outras necessidades — pode tornar-se também racional, indolor. Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte — num momento da sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão». (Herbert Marcuse)
Na sua obra «Introdução à Leitura de Hegel», Alexandre Kojève (1947) analisou cuidadosamente «a ideia de morte na filosofia de Hegel», mostrando que ela estrutura a sua filosofia, pelo menos desde os textos de Yena. A tese de Kojève é simples: «A filosofia dialéctica ou antropológica de Hegel é, em última análise, uma filosofia da morte (ou, o que dá no mesmo, do ateísmo)». A morte desempenha, portanto, um papel primordial na filosofia de Hegel, em particular na sua «Fenomenologia do Espírito».
A novidade da antropologia hegeliana reside precisamente na concepção do homem como «morte adiada» ou «doença mortal do animal» e no destaque dos seus efeitos antropogénicos. Esta novidade é pensada através do seu confronto com outras concepções, em particular a judaico-cristã e a grega. Kojève está convencido de que o homem de Hegel é o homem que aparece na tradição pré-filosófica judaico-cristã, «a única verdadeiramente antropológica» que se manteve viva no decorrer dos tempos modernos «sob a forma de fé ou de teologia, ambas incompatíveis com a ciência ou a filosofia antigas e tradicionais». Desta tradição pré-filosófica, Hegel herdou a noção de indivíduo livre e histórico, ou seja, a noção de pessoa.
O Homem Grego. Na tradição clássica grega, o homem é um ser puramente natural que não tem liberdade, nem história, nem individualidade propriamente dita. Tal como o animal, o homem representa, na e pela sua existência real e activa, uma ideia ou essência eterna, dada uma vez por todas e permanecendo idêntica a si mesma: «Assim como a vida do animal, a sua existência-empírica é absolutamente determinada pelo seu lugar natural que ocupa desde sempre no seio do cosmos dado imutável. E, se difere essencialmente do animal, é apenas pelo seu pensamento ou pelo seu discurso coerente (Logos), cuja aparição no cosmos nunca foi explicada. Mas esse discurso não nega nada e não cria nada: contenta-se em revelar o real dado. O discurso, isto é, o homem, incorpora-se ao Ser-dado. E o que há, em última análise, é esse Ser uno e único que se pensa eternamente na sua totalidade dada».
O Homem Judaico-Cristão. Na tradição judaico-cristã, o homem difere essencialmente da natureza, não só pelo seu pensamento, mas também pela sua actividade. A natureza é um pecado no homem e para o homem: este pode e deve opor-se à natureza e negá-la nele mesmo. Apesar de viver na natureza, o homem não está sujeito às suas leis, na medida em que pode opor-se à natureza e negá-la. Isto significa que o homem é, em última análise, independente em relação à natureza, isto é, é um ser autónomo e livre que, na sua condição de estranho na natureza, pode criar um mundo novo que lhe é próprio. Ora, este mundo novo criado pelo homem é um mundo histórico no qual o homem pode tornar-se um ser radicalmente diferente do que é como ser natural dado. Neste mundo histórico, o homem já não é um representante de uma espécie eterna ou imutável dada, mas um ser criado e criador, isto é, um indivíduo único no seu género.
Embora tenha descoberto a espiritualidade do homem, portanto, a sua liberdade, a sua história e a sua individualidade, a tradição antropológica judaico-cristã é uma tradição essencialmente religiosa e teísta: a espiritualidade só se realiza e se manifesta plenamente no além. Isto significa que o espírito é Deus, um ser infinito e eterno. Hegel aplica ao homem a noção judaico-cristã de individualidade livre histórica, mas nega-lhe a imortalidade e, consequentemente, Deus. Para Hegel, o ser espiritual é necessariamente temporal e finito: o homem só pode ser um indivíduo livre e histórico se for mortal, isto é, finito no tempo e consciente da sua finitude e temporalidade radicais. O espírito é, pois, «o homem-no-mundo: o homem mortal que vive num mundo sem Deus e que fala de tudo o que existe e de tudo o que cria, inclusive ele próprio». Kojève destaca as consequências desta concepção ateia radical da finitude humana:
1. Liberdade e Negatividade. Para Hegel, a liberdade é a realização e a manifestação da negatividade e, como tal, consiste no acto de negar o real na sua estrutura dada e manter a negação sob a forma de uma obra criada por essa negação activa. Esta liberdade constitui a realidade-essencial do homem. Contudo, dado a negatividade em si ser o nada e a liberdade ser a negatividade, não há liberdade sem a morte. Somente um ser mortal pode ser livre. Por isso, a morte constitui a manifestação última e autêntica da liberdade. Isto significa que o homem só pode ser livre se for essencial e voluntariamente mortal. Para Hegel, a liberdade é a autonomia em relação àquilo que é dado, isto é, a possibilidade de negá-lo tal como é dado. Em última análise, só pela morte voluntária o homem pode escapar do domínio de qualquer condição dada e imposta pela existência.
2. Historicidade. A liberdade absoluta entendida como não-conformismo é negatividade pura, isto é, nada e morte, a qual contradiz a vida, a existência e o próprio ser. Isto significa que a liberdade só é algo pelo ser que ela conserva negando-o e a negação só é real como criação do novo ou da obra realizada. O homem revolucionário só se aniquila na medida em que consegue conservar a sua obra negadora, ligando-a à identidade do ser, mantida através da sua negação pela lembrança ou tradição. Para Hegel, a liberdade só se realiza como história. O homem só pode ser livre na medida em que é um ser histórico e só há história onde há liberdade. Ora, se a liberdade revolucionária negadora pressupõe a morte, então só um ser mortal pode ser verdadeiramente histórico. A morte constitui a base última e o móbil primeiro da história: «A história é o movimento dialéctico da força que mantém no Ser o nada que é o homem. Esta força realiza-se e manifesta-se como acção negadora ou criadora: acção negadora do dado que é o próprio homem, ou acção da luta que cria o homem histórico; e acção negadora do dado que é o mundo natural onde vive o animal, ou acção do trabalho que cria o mundo cultural, fora do qual o homem é puro nada, e onde ele não difere do nada a não ser por certo tempo».
3. Individualidade e Universalidade. Segundo Hegel, só um ser mortal pode ser livre e histórico, aceitando a ideia e a realidade da sua morte e arriscando a vida sem nenhuma necessidade, em função de uma ideia ou de um ideal. O indivíduo é uma síntese do particular com o universal. A particularidade só deixa de ser puramente dada, natural e animal, quando está associada, na individualidade humana, com a universalidade do discurso e da acção. É certo que só a acção particular pode agir, mas age sempre de modo universal quando representa e realiza a vontade geral de uma comunidade ou de um Estado. Isto significa que só como cidadão o homem pode ser verdadeira e realmente universal, embora permaneça particular. A individualidade humana manifesta-se e efectua-se no e pelo Estado, porque é este que lhe atribui uma realidade e um valor universalmente reconhecido. Ora, esta acção pelo e para o Estado implica o risco da vida para fins puramente políticos. Quem se recusa a arriscar a vida pelo Estado perde a sua cidadania ou o reconhecimento universal. Daqui decorre que o homem só pode ser um indivíduo porque pode morrer quando arrisca a vida.
A faculdade da morte é, pois, a condição necessária e suficiente não só da liberdade e da historicidade do homem, mas também da sua universalidade, sem a qual não seria efectivamente um indivíduo. Para Hegel, o ser verdadeiro do homem é a sua acção e a acção é a realização da negatividade que se manifesta, no plano fenoménico, como morte consciente e voluntária, portanto, aceite livremente sem nenhuma necessidade vital. O desejo de reconhecimento é o desejo de um desejo que transcende o dado natural e, na medida em que se realiza numa luta de vida ou de morte, cria um ser humano. O aniquilamento do animal, do ser dado, é a criação do homem que aparece pela primeira vez no mundo dado natural como combatente da primeira luta sangrenta por puro prestígio. Ser homem é, para Hegel, poder e saber morrer. Isto significa que o ser verdadeiro do homem é, em última análise, a sua morte como fenómeno consciente. Como escreve Kòjeve:
«A realidade humana é, em última análise, a realidade-objectiva da morte: o homem não é somente mortal; ele é a morte encarnada; é a sua própria morte. E, ao contrário da morte natural, puramente biológica, a morte que é o homem é uma morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária. A morte humana, a morte do homem, e, por conseguinte, toda a sua existência verdadeiramente humana são, portanto, um suicídio».
Na dialéctica do Senhor e do Escravo, Hegel mostra que o ser dado, o animal, só se cria como ser humano na luta pelo reconhecimento, no decorrer da qual arrisca constantemente a vida. O ser do homem aparece e manifesta-se como suicídio adiado ou mediatizado pela acção negadora que engendra a consciência discursiva do mundo exterior e de si mesmo. Somente na e pela luta pode o homem criar-se a partir do animal e, deste modo, atingir a verdade do reconhecimento universal. A luta pelo reconhecimento tem, pois, um carácter antropogénico: cria o homem a partir do animal. No fundo, o homem é um ser que se suicida e a sua existência autêntica é uma morte consciente e voluntária em vias de devir. Esta consciência da morte humaniza o homem e constitui o fundamento derradeiro da sua humanidade. Com esta introdução da ideia da morte ou do espírito finito e mortal, Hegel transformou a teologia em antropologia dialéctica. Este tema hegeliano da morte foi retomado por Heidegger que, ao desprezar os temas complementares da luta e do trabalho, ficou impossibilitado de explicar a história. Os temas negligenciados por Heidegger foram tratados por Marx, cuja filosofia da história omitiu a morte e, deste modo, ficou impossibilitada de ver que a revolução é sangrenta, como mostra a concepção hegeliana do terror.
A filosofia da liberdade de Hegel é uma filosofia da morte, que encara o suicídio como a «manifestação suprema da liberdade do homem», esse ser que é «morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária». Ora, dado a morte ser a condição necessária e suficiente da liberdade e da historicidade, da individualidade e da universalidade, num mundo perfeitamente corrupto como o nosso e sem futuro, a não ser continuar a constituir a «reserva de mão-de-obra barata» (Marx) necessária ao sustento e à diversão de uns poucos corruptos e abusadores do poder, a morte voluntária constitui a única alternativa capaz de afirmar a recusa da ordem social estabelecida no seu conjunto. Assim, todos aqueles que procuraram a sua própria morte devem ser vistos como a encarnação da Grande Recusa: preferiram matar-se, em vez de viver uma vida pouco digna. De certo modo, realizaram (negativamente) o sentido da política: suicidaram-se para se livrarem da escravatura e da democracia cleptocrática que negam à maioria das pessoas uma vida digna e sem angústia. Este sentido político do suicídio é a negação da ordem estabelecida, que, doravante, pode ser avaliada criticamente pelas taxas de suicídio que provoca e desencadeia. Recordar os que morrem voluntariamente é manter viva a sua luta contra a ordem estabelecida. O estudante universitário de filosofia que se imolou em fogo quando viu o seu país invadido pelas tropas russas é o símbolo vivo da resistência contra o poder corrupto.
J Francisco Saraiva de Sousa

sábado, 14 de junho de 2008

Karl Philipp Moritz e Justificação Estética da Miséria

«Se há algo indubitavelmente injusto é o nascimento e o contexto em que por ele vem ao mundo o homem. O destino da maioria dos homens já está decidido antes de nascerem. E são as próprias organizações humanas que nos rebaixam a ser escravos do acaso, pelo que a geração põe correntes à seguinte, que são tanto mais duras quanto mais unem os homens». (Karl P. Moritz, Fragmente aus dem Tagebuch eines Geistersehers, 1787)
Nos "Fragmentos do Diário de um Visionário" de 1787, Karl Philipp Moritz formula com grande claridade a questão que embaraça todos os homens de bem: Como se pode justificar um mundo em que há uma miséria interminável, em que os homens dominam os homens, e em que o acaso do nascimento decide da pertença aos dominadores ou aos dominados (os assalariados)? Ora, a sua resposta é excessivamente dura e cínica: A história terrível é justificada pelo "efeito agradável" que é produzido na imaginação do espectador não agarrado nos acontecimentos. A história da exploração do homem pelo homem (Marx) tem o poder de levar a pensar em coisas tão grandes e majestosas, tais como a guerra de Tróia narrada na Ilíada ou o Terramoto de Lisboa estudado por Kant, que, por este motivo, vale a pena ser infeliz. O primeiro teórico da estética autónoma concebeu-a como um modo de justificar a abjecta realidade: «Nós fizémos um mundo de destruição e observamos agora a nossa obra em histórias, dramas e poemas, com agrado» (Moritz). A analítica do sublime de Kant pretende evitar esse escândalo que constitui a justificação estética da miséria.
A análise kantiana do sublime explica esta espécie de satisfação como um sentimento da nobreza da própria razão e do destino moral do homem, que aparece de duas formas:
1) Quando nos confrontamos na natureza com algo absolutamente grande (o sublime matemático), a nossa imaginação desfalece na tarefa de abarcá-lo e tornamo-nos conscientes da supremacia da razão, cujas ideias alcançam a totalidade infinita.
2) Quando nos confrontamos com um poder esmagador (o sublime dinâmico), a debilidade do nosso eu empírico torna-nos conscientes, por contraste, da nossa dignidade enquanto seres morais.
Com esta análise que retoma o belo na natureza, Kant procurou restabelecer num único nível a conexão entre campos previamente autonomizados, elaborando a noção do estético consistente em si mesmo, independentemente do desejo e do interesse, do conhecimento ou da moralidade. A experiência da beleza depende da contemplação dos objectos naturais como se fossem, de certo modo, produto de uma razão cósmica empenhada em torná-los inteligíveis. Ora, dado que a experiência do sublime faz uso do informe e do horrendo natural para elevar a própria razão, estes valores estéticos servem, em definitivo, a um fim e a uma necessidade moral, exaltando e enobrecendo o espírito humano. Tal como Moritz, Kant afirma que o homem é consciente de si mesmo como ser racional no sentimento do sublime. Porém, para Kant essa consciência não se confirma na miséria humana, da qual os homens são culpados, como sucede em Moritz, mas na relação insuficiente que se experimenta entre a imaginação e o entendimento e na consciência (paradoxal) resultante da nossa superioridade como seres racionais, a qual consiste na capacidade de pensar essa inadequação e de elevar-se à ideia de infinito. Contudo, para eliminar a má consciência dos privilegiados, Kant contorna o problema moral colocado por Moritz transferindo o sublime para a natureza e retendo-o exclusivamente no ânimo do espectador, mas sem abandonar a "estima (feudal) do guerreiro" e a referência à guerra: «A verdadeira sublimidade (tem) que ser procurada só no ânimo daquele que julga e não no objecto da natureza, cujo julgamento permite essa disposição do ânimo» (Kant). Burke chega mesmo a afirmar que o horrível pode ser objecto de prazer. Só Herder soube apresentar uma solução alternativa, fazendo do sublime uma experiência recuada historicamente.
Ao considerar o homem histórico como um "anti-homem", Jean-Paul Sartre insistia legitimamente sobre a necessidade de atiçar a violência para despertar a revolução qualitativa. Na sua peça de teatro, "Les Mains Sales", Sartre afirma que o socialismo não pode ser introduzido por mãos limpas de sangue. Longe de ser um pacifista, Sartre defende o derramamento de sangue para pôr termo à miséria humana produzida pelo capitalismo inumano e anti-natureza e, como homem, não tem horror da guerra. Em 1966, Sartre exortou os russos a enviarem as suas forças para o Vietnam para lutarem contra os americanos, sem temer provocar uma Terceira Guerra Mundial. Em 1960, no prefácio que escreveu para o livro "Les Damnés de la Terre" de Franz D. Fanon, Sartre aceita a tese do autor de que a violência é uma "força pacificadora", acrescentando que «o indígena se cura da neurose colonial expulsando os colonizadores pela força das armas». De certo modo, Sartre ansiava pela violência revolucionária e os jovens que ainda recentemente incendiavam carros nas ruas de Paris escutaram os ecos das vozes dos mortos que reclamam justiça plena. A teoria de "L'Être et le Néant" era peremptória quando afirmava que temos de escolher entre sermos masoquistas ou sádicos. A estética da violência política recomenda que sejamos sádicos e aprendamos a usar a violência contra o poder que nos oprime, explora e humilha. Só esta estética da violência nos pode conduzir à estética da beleza: a "República Democrática" cujos cidadãos participam livremente na esfera pública e habitam poeticamente a Terra, realizando e garantindo o "reino de Liberdade" e a "identidade da pátria" (Marx).
J Francisco Saraiva de Sousa

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Biofilia e Estética da Natureza

«Somos os povos indígenas desta terra. Somos como a sua consciência. Somos os possuidores da terra, somos os defensores da terra. (Já é) tempo de protestar contra a destruição dos vossos netos e de pensar nas gerações vindouras». (O. Lyons)
Edward O. Wilson definiu a biofilia como «a tendência inata de dirigir a nossa atenção para a vida e os processos vitais». A hipótese da biofilia foi formulada para fornecer um fundamento biológico para o facto de nós mortais acharmos a natureza bela ou, pelo menos, esteticamente valiosa. Baseada na «ligação inata dos seres humanos a outros organismos vivos», a hipótese da biofilia visa contribuir para uma ética conservacionista, cujo princípio fundamental reside na «necessidade da preservação da diversidade orgânica». Invocada para explicar o que nos atrai nos jardins zoológicos, na natureza e nas habitações em lugares altos acima da água no meio dos campos, esta tendência inata, transmitida pela história evolucionária da nossa interacção com muitos outros organismos, conduz a uma necessidade de relacionamento com organismos vivos e a todos os tipos de reacções emocionais à natureza. Os humanos são literalmente parentes de outros organismos e a humanidade é o que é devido à maneira especial em que nos afiliamos com outros organismos. Estes constituem a matriz na qual se originou a mente humana: a matriz em que a mente está permanentemente enraizada e sem a qual não pode ser. A experimentação de uma variedade de cenários naturais satisfaz essa necessidade emocional de contacto intímo com a natureza. Os benefícios psicológicos apontados por Wilson são a libertação da tensão, a relaxação e a paz de espírito que aumentam para os mortais que fazem da natureza o seu local de recreação. Para continuar a beneficiar deste bem-estar, os mortais devem proteger a natureza e promover a biodiversidade.
Perigosamente, as novas tecnologias da comunicação podem estar a alienar o homem da natureza, tanto da natureza externa como da natureza interna. De que modo o computador encarado como "segundo eu" interfere nas nossas relações com os humanos, a vida, a natureza, enfim os animais? Ora, sabemos que, na cultura da virtualidade real, predomina um "animismo computacional", portanto, uma nova noção de máquina. O computador é visto pelas crianças como uma máquina psicológica: não é uma entidade viva, porque as crianças não concebem um "vitalismo computacional", mas tem uma psicologia própria. Encarado como uma máquina psicológica, o computador é capaz de grandes proezas cognitivas: o que o distingue dos humanos é o facto de não ter emoções. Segundo este animismo computacional, a inteligência é computacional; as emoções são humanas. De certo modo, há uma "desvalorização" da inteligência humana superada pela inteligência superior do computador. Pelo menos, as crianças e os jovens americanos parecem pensar que a inteligência computacional é superior à inteligência humana. A interface computador/humano é muito interessante e enigmática. Para os cibernautas, o computador é uma extensão de cada um ou, por outras palavras, um "segundo self" (o cyberself) que pode desabrochar numa multiplicidade de eus (selves), em função dos programas e dos sites frequentados. Neste mundo virtual, a emergência dos biomorfos revela até que ponto a cultura da Internet pode vir a afastar o homem da natureza e dos outros organismos vivos: as vidas artificiais no computador e na rede, portanto, no ciberespaço, colocam muitos problemas que devem ser pensados de modo mais frio e distante do que o fazem os produtores das novas tecnologias. Contudo, se a cultura académica profissional relegava a filosofia para as salas de conferência, o advento da cultura do computador traz a filosofia novamente de volta à vida quotidiana. Esta emergência da filosofia no mundo virtual constitui aquilo a que chamo CyberFilosofia ou Filosofia Electrónica.
A estética da Escola de Frankfurt nunca abandonou o conceito de belo natural a favor do belo artístico e, nas suas últimas obras, aliás na peugada da estética de Kant, Herbert Marcuse foi mais longe quando procurou os fundamentos biológicos da sociedade livre e justa: «a violação da natureza é inseparável da economia do capitalismo». A natureza comercializada, a natureza poluída, a natureza militarizada, a natureza explorada, a natureza devastada: eis a redução operada pelo capitalismo do meio vital do homem, tanto no sentido ecológico, como no sentido existencial. A devastação da natureza bloqueia a catexe e a transformação erótica do meio ambiente, priva o homem de encontrar-se a si próprio na natureza, aquém e além da alienação, impede o homem de reconhecer a natureza como um sujeito legítimo e rouba-lhe a oportunidade de encontrar serenidade numa relação pacífica com a natureza. O embelezamento da natureza levado a cabo pelo capitalismo neutraliza a função política da ecologia, ao mesmo tempo que abre a natureza à diversão maciça e colectiva: o ecoturismo ou mesmo o turismo rural comercializam a natureza, além de caminharem no sentido do agravamento das desigualdades sociais. A natureza está cativa do capital.
Neste mundo global e neoliberal, o nosso maior inimigo, o inimigo do Ocidente, é a chamada Nova Ordem Mundial, dominada pela ditadura do capital e pelos banqueiros. Nos USA, existem algumas comunidades que estão prontas para lutar contra o governo dessa ordem mundial: têm armas, não pagam impostos, têm uma aliança constitucional, não tiram cartas de condução, os carros não estão sujeitos a impostos, enfim, são mortais livres. Nós estamos a ser escravizados e explorados por essa ordem mundial, cujo tirano ainda não mostrou o rosto. O novo tirano não tolera oposição, como se vê aqui em Portugal. Vivemos em ditadura simulada e as pessoas foram intencionalmente produzidas "burrinhas" para serem submissas e obedientes. O capitalismo tornou-se um monstro devorador e autodestrutivo: os banqueiros apropriam-se de tudo e invadem os terrenos que pertencem à Humanidade. A terra pertence a todos os que nela habitam e não apenas aos banqueiros. Se o povo inteiro rejeitar a escravatura dos bancos, conquistará a liberdade e a dignidade. A verdade é tão simples: Desobediência civil total é o caminho para destruir este monstro neoliberal. A "Paz" que diz defender no respeito pelas "leis" é a humilhação dos homens, a sua sujeição voluntária à escravatura e à ditadura do dinheiro. Afinal, Spengler tinha razão, excepto (assim o espero) quando previu que o destino estava já traçado: devemos lutar contra a "ditadura do dinheiro" que corrompeu a democracia e ameaça o Ocidente.
A valorização estética da natureza, assente numa nova relação entre o homem e a natureza, pode guiar, nesta hora obscura de "desistência da inteligência", de predomínio da domesticação feia e obesa e da publicidade (Konrad Lorenz), uma nova política racional e emocional do ambiente: a libertação da natureza é a recuperação das forças estimulantes da vida na natureza e das qualidades estéticas de ordem sensual que são estranhas a uma vida desperdiçada em intermináveis desempenhos repetitivos e embrutecedores. Estas forças sugerem as novas qualidades da liberdade. Isto significa que a transformação radical da natureza torna-se, neste momento de catástrofe, uma parte integrante da transformação radical da sociedade estabelecida. Em contacto com as forças criativas da natureza, o homem deve cultivar uma nova sensibilidade, em vez da sensibilidade mutilada imposta pelo capitalismo explorador, de modo a usá-la como meio para converter a mudança social qualitativa numa necessidade individual. Sem essa ruptura com a experiência familiar do mundo devastado, não é possível a mediação revolucionária entre a praxis política de transformação do mundo e o impulso biológico de libertação pessoal. A libertação pressupõe essa experiência prévia da liberdade pessoal: sair da caverna do consumo e do conforto e caminhar em sentido contrário, progressivo e não regressivo, sem abdicar da tecnologia (Wilson, Marcuse).
Embora a natureza seja uma entidade histórica, a natureza selvagem provoca prazer estético intensificado e é, em seu nome, que devemos avaliar e condenar as artes artificiais da reciclagem, perpetuamente sujeitas à degradação que esgota os recursos do planeta. Só a natureza merece ser chamada de bela; as obras-de-arte comercializadas constituem um atentado à beleza natural e são tão feias quanto o espírito comercial que as move. A filosofia do ambiente é estética (Schelling): um ambiente durável e sustentável onde o homem possa habitar poeticamente.
O radicalismo político exigido por Marcuse deve ser reactivado contra a lógica do capitalismo autodestrutivo e a sua sociedade de consumo e acompanhado por um radicalismo moral, capaz de fazer emergir uma moralidade que precondiciona o homem para a liberdade, de modo a activar a base orgânica da moralidade no ser humano, e por um radicalismo estético, capaz de valorizar a natureza e de alargar a solidariedade a todos os organismos vivos, sem os quais a mente não pode sobreviver de modo saudável, de modo a destruir a lógica de consumo que devasta a natureza, agravando a saúde do homem e da Terra como planeta vivo. O conforto do homem metabolicamente reduzido é inimigo da saúde e da beleza da natureza e, como tal, deve ser erradicado da face da Terra, bem como os seus habitantes estrangeiros metabolicamente reduzidos. Face ao excesso demográfico dos humanos e à ameaça que isso representa para o futuro da vida na Terra, o homem deve ceder o seu primeiro lugar na hierarquia das valorizações, retendo apenas a responsabilidade pela conservação da natureza e da biodiversidade. O homem metabolicamente reduzido é fruto da domesticação e, como ser doméstico, é uma criatura feia, obesa e de inteligência reduzida. Para a estética da natureza, o doméstico é feio e inútil e o selvagem é belo e útil. Se o impulso para a expansão perpétua é básico para o espírito humano, portanto, a liberdade individual, como diz Wilson, então a estética da natureza só pode ser vista como uma estética da libertação (Marcuse) e de destruição da sociedade de consumo.
J Francisco Saraiva de Sousa