domingo, 29 de junho de 2008

Gaston Bachelard: Poética da Casa (1)

«Habitar é o traço essencial do ser de acordo com o qual os mortais são. Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir se tornarem dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar». (Martin Heidegger)
O estudo da dinâmica fundamental da vida humana, do partir e do voltar, deve analisar duas regiões do espaço que estrutura: o mundo lá fora, em toda a sua vastidão, com os seus pontos e regiões cardinais, com os seus caminhos e as suas estradas, e o mundo no qual a vida permanece ligada a um centro, a um ponto de referência fixo, ao qual se vinculam todos os seus caminhos, os que partem e os que regressam. O homem precisa de um tal centro, através do qual possa permanecer objectivamente enraizado no espaço e ao qual são referidas todas as suas circunstâncias espaciais. Sem este último mundo do lar o homem não pode viver: a terra natal ou lar é o "lugar" onde o homem habita no seu "mundo", onde se encontra em casa e para o qual sempre regressa depois de ter partido. Isto significa que a casa se encontra no centro do mundo dos mortais.
Ernst Cassirer mostrou que o homem primitivo está fortemente enraizado nesse centro objectivo fixo do espaço e, por isso, o habitar não constitui um problema para ele, como se verifica pelos estudos de Marcel Mauss sobre as sociedades esquimó, de Bronislaw Malinowski sobre os nativos das Ilhas Trobriand ou de Evans-Pritchard sobre os Nuer. Porém, o mesmo já não pode ser dito em relação ao homem moderno. O capitalismo tardio e as suas práticas económicas globais neoliberais estão a destruir este centro objectivo, fomentando o desenraizamento e criando um "mundo sem lar" (Peter Berger): o mundo do sonho e do sentido proporciona aos que habitam nele um refúgio e um lugar seguro contra a anomia e a alienação. Não satisfeito com a destruição da natureza, o capitalismo tardio usa e explora o homem, roubando-lhe o lar e entregando-o ao abandono completo. O homem moderno está a transformar-se num apátrida sobre a Terra, porque já não está vinculado a qualquer lugar. Converte-se num eterno fugitivo de um mundo cada vez mais ameaçador e em risco.
Mas, onde começa o perigo que ameaça o homem moderno, deve nascer a sua missão política. Ou, como diz Heidegger, «o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar». Para viver sem angústia, o homem precisa encontrar um centro no seu espaço, visto que a sua essência está ligada à existência de um tal centro. Se já não o encontra como algo dado, devido à apropriação capitalista da terra, o homem tem de o criar, sacá-lo ao capitalismo ladrão, apropriar-se dele e defendê-lo contra todas as agressões e ameaças exteriores. Neste mundo sem lar, cuja economia capitalista lança o homem para a rua e o desespero, qual ser sem-abrigo, a missão decisiva do homem é criar este centro e lutar violentamente contra as forças económicas e políticas que o ameaçam. Esta missão exige um luta contínua contra os poderes instituídos e os seus cleptocratas, e a coragem para a cumprir: pensar, construir, edificar e habitar a sua casa. A posse externa de uma "habitação digna" não é suficiente para cumprir esta missão de sustentação e de sentido: o importante é a relação interna com a habitação, aquilo que Heidegger referiu quando disse que «os mortais devem primeiro aprender a habitar», e que Merleau-Ponty viu como a palavra-chave que reflecte plenamente a conexão do homem com o mundo. Para Merleau-Ponty, o homem habita no corpo, na casa, nas coisas, no mundo, no espaço e no tempo, assim como o sentido habita na palavra e no signo e o anímico expresso, na expressão. Em todos estes "casos", fundados originariamente no "habitar o ser", o habitar designa a intimidade singular da relação mediante a qual algo anímico ou espiritual está misturado e envolvido com algo espacial. Quando escreve que «a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las», Merleau-Ponty mais não faz do que acentuar a diferença existente entre a objectividade científica no seu confronto com o objecto e a intimidade do habitar.
Saint-Exupéry foi um dos primeiros pensadores a descobrir que «os homens habitam e que o sentido das coisas varia para eles em função do sentido das suas casas». Habitar não é mais uma actividade humana entre tantas outras actividades, mas constitui a característica essencial do homem que determina a sua relação com o mundo na sua totalidade: habitar é, pois, o modo como o homem vive na sua casa, e é no habitar que o homem pode alcançar a plenitude do seu verdadeiro ser. A concepção de Saint-Exupéry coincide com a de Heidegger: «Ser homem significa: ser como um mortal sobre esta terra. Significa: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. (...) (A actual crise habitacional reside no) facto de não se fazer mais a experiência de que habitar constitui o ser do homem e de não se pensar mais que habitar é, em sentido pleno, o traço fundamental do ser-homem. (...) Salvando a terra, acolhendo o céu, aguardando os deuses, conduzindo os homens, é assim que acontece propriamente um habitar. Acontece enquanto um resguardo das quatro faces da quadratura. Resguardar diz: abrigar a quadratura no seu vigor de essência». Ao contrário do existencialismo que encarava o mortal como um ser lançado num mundo arbitrário, contingente, não escolhido e absolutamente estranho, as filosofias do habitar consideram que a essência total do homem é determinada a partir do habitar. O homem habita a sua casa antes de habitar o mundo. Gaston Bachelard destacou fundamentalmente a função de protecção da casa e viu os "espaços felizes", os "espaços louvados", como "espaços de posse", porque são espaços imaginados, construídos, edificados e possuídos pelo homem e defendidos contra as "forças adversas" de uma economia capitalista que mata o planeta azul. Se não quiser continuar a ser um estranho lançado na terra, o homem deve aprender a habitar poeticamente esta terra, porque, como diz Heidegger, «a poesia é a capacidade fundamental do modo humano de habitar». (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

20 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dedico a série de posts que inicio aqui a todos os cyberamigos que contribuem para o empenhamento deste blogue contra a corrupção e a cleptocracia nacionais, aliás muito encarnadas como o sangue podre de um morto-vivo.

Denise disse...

Boa tarde F.
Ainda não li o post, estou a terminar o relatório de auto-avaliação de desempenho docente...
Abraço e até logo! ;-)

Fernando Dias disse...

Entramos, sem dúvida, num novo nomadismo. Temos que saber habitar a nossa casa interior. Na biosfera, nós, estamos incompletos, pelo que temos de a transcender na noosfera.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Bauman fala da circulação constante: os que circulam são ricos; os que não podem circular são os novos pobres. Duas cidades..., como se ser sedentário fosse um "mal".

O pensamento de hoje está ligado ao nomadismo, mas existem diversos nomadismos: o que ameaça o homem é o sem-abrigo, porque a terra se converteu em pura especulação financeira. O capitalismo ladrão apropria-se da terra e produz pobreza a todos os níveis.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Efectuei dois acrescentos, para clarificar a noção de habitar o ser de Merleau-Ponty e a abordagem subjacente a este post.

Manuel Rocha disse...

Gostei da abordagem. Embora no final tenha "embirrado" com a "morte do planeta azul" :)

Concordo que já somos capazes de muita merda. Mas ainda há capacidades que acho que nos transcendem, como acabar ou criar um planeta ou a vida.

O Francisco anda a ver demasiada televisão :) Aqueles "ambientalistas" nacionais de pacotilha e respectivas propensões catastrofistas, andam a fazer-lhe mal ??!!
:)

A proposito: O "Mitos Climátidos" está a publicar um trabalho de um autor brasileiro ( quem sabe se o André não o conhece ...:))cujo leitura recomendo vivamente...just because...;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Levando mais longe esta abordagem do habitar, podemos elaborar uma nova filosofia do ambiente.

O meu objectivo subjacente é nomear a causa da degradação: chama-se capitalismo. A sua crítica constitui o fio condutor destes posts: tanto Heidegger como Bachelard são retomados a partir dessa crítica; sem ela o que dizem torna-se inofensivo. Ora, o meu objectivo é incendiar (não à la Benfica) o status quo, portanto, animar e dar rumo à mudança qualitativa. Contudo, é preciso ter em conta que o capitalismo soube neutralizar a carga negativa dos sonhos diurnos, mantendo o homem cativo do mero metabolismo. Para este capitalismo, o homem é um mero "tubo digestivo" que explora de modo a produzir as suas mais-valias.

Manuel Rocha disse...

Sim, entendi perfeitamente !

Mas como já sabe aquela é uma das minhas embirrações de estimação :))

Ainda quanto ao "habitar": embora seja liquido que a forma como se "habita" é estruturante, teremos de reconhecer que se trata de uma matéria em que a facilidade da mudança poderia hoje surpreender os autores que o Francisco refere. O existencialista germânico ainda viveu um tempo em que a dicotomia cidade/ campo parecia coisa sólida. Mas a verdade é que se diluiu completamente no ultimo quarto do seculo passado. Em Portugal, por exemplo ( como em Espanha ou na Itália ) a minha geração está na fronteira da memória dessa transição. Para quem está na casa dos trintas, o "habitar" urbano é a sua condição. Ou seja, falamos de algo que se mudou em duas gerações. Parece-me que a sociedade industrial pós-moderna trouxe consigo factores de acelaração que contagiaram todas as estruturas e os ritmos socias pré-existentes. De tal modo que ñão descartaria a hipotese de se terem tb alterado as noções de "enraizamento", admitindo mesmo que ele hoje possa estar muito mais ligado a uma forma de estar do que a um território ou lugar concretos.

Manuel Rocha disse...

Leio só agora o comentário do F Dias.
Comento sobre ele no sentido de procurarmos uma clarificação para o seguinte. Não me parece que o nomadismo seja por natureza uma forma de estar desenraizada. O conceito de "lugar" poderá ter e julgo que tenha, acepções fisicas bastante amplas. Que me dizem ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, concordo que os nossos tempos são acelerados: o mundo está a mudar muito, mesmo no decorrer da nossa vida. A questão é saber o impacto dessa aceleração sobre o ser humano: as pessoas que vejo diariamente são mentalmente "inválidas" e perdidas, incapazes de produzir qualquer tipo de mundo. Não consigo ver futuro com tais pessoas. O ciclo pode também estar a fechar e, nesse caso, temos a decadência e a regressão, que já estamos a viver. E, repare, a ciência que se faz já não merece o nome: um conjunto de procedimentos usados como receita para obter dados padronizados utéis ao sistema. Onde está o pensamento?

Quanto ao "lugar"(es), vou tratar desse assunto mais tarde. Temos o espaço hodológico de Lewin e Sartre que ainda não foi levado a sério, bem como Heidegger que diz e bem que a Ponte é um "lugar". E, em língua portuguesa, seria necessário fazer um levantamento das palavras. Ao contrário do que se diz, penso que não temos dificuldades linguísticas para traduzir qualquer outra "língua"; pelo contrário, podemos ter uma mais-valia linguística ainda por descobrir. Mas quem a vai descobrir? O tuga metabolicamente reduzido? Eis o problema que me preocupa como habitante do ocidente!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Acrescento que, dado o envolvimento e a participação neste ritmo, as pessoas já não sabem o que é "ser saudável", tal é a "loucura" que se vive diariamente. Não acredito que o ser humano seja assim tão plástico e maleável; pelo contrário, vejo sinais de alerta que dizem o contrário. Relativismo opinativo é lixo! A menos que caminhemos para o tipo de sociedade infrahumana, do tipo aviário... A decadência...

Uma praça da alimentação pode servir para estudar o homem metabolicamente reduzido, a comer milho como o frangos que engordam no aviário para serem vendidos. Há aqui desenraizamento: o do homem consigo mesmo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vendo as festas de verão, retenho a imagem de um Portugal atrasado no meio de artigos de luxo.

O pior e o que é inédito é ver a juventude sem sonhos, completamente ignorante e orgulhosa da sua ignorância. Vinho, sexo, drogas e violência: eis o espírito da juventude que não tem cérebro para pensar por si.

Não sei se concordo com o facto de os mestres ficarem surpreendidos com o que se passa. Eles diriam que o pesadelo estava a realizar-se e a consumar-se. De facto, o mundo está a tornar-se um pesadelo: um buraco-negro. Além disso, os seus países estavam a anos luz de distância de Portugal: nós temos a Internet e os telemóveis mas estamos cultural e educacionalmente atrasados, talvez mais atrasados do que há 30 anos atrás. Esta é a "verdade" da democracia portuguesa: Portugal afundou-se e regrediu cognitivamente. Até a Casa da Música passa música pimba! :(

André LF disse...

Olá, Francisco!
Aproveitei uma brecha nas minhas atribulações e vim lhe visitar :)
Quando chegar à minha casa, lerei o seu atual texto.

No post anterior, vc disse:
"Como está muito calor, resolvi 'esplanar' e reler uma tradução brasileira de Bachelard: não é má tradução, mas a construção quebra a filosofia. Critico essa aspecto das traduções brasileiras: deixam escapar a subtileza filosófica. Tive de recorrer ao original para repor a filosofia".

Este é um grave problema das traduções brasileiras de obras de filosofia: ao abusar da flexibilidade que o nosso idioma permite, os tradutores, normalmente pessoas sem formação filosófica consistente, deixam à margem a "sutileza filosófica".
Tive a oportunidade de ler algumas traduções portuguesas de obras filosóficas e as achei muito boas. São rigorosas e precisas.

Normalmente os brasileiros (e os tradutores aqui se incluem) são "anárquicos" com relação ao próprio idioma. Não conhecem a gramática, não têm o hábito de ler e escrever.
É muito difícil se livrar dos vícios de linguagem perpetuados pelo povo. Muitas vezes, ao dizer algo gramaticalmente correto, acabo deixando os meus colegas estarrecidos. Eles estão acostumados com os equívocos gramaticais que passam a constituir o "mundo" deles.

A prosa que se faz nos nossos jornais e revistas é uma lástima, uma agressão à língua portuguesa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Acredito que seja assim, a avaliar pelos livros editados pela editora "Tempo Brasileiro": é deveras difícil apreender o pensamento do autor a partir da tradução. "Introdução à Metafísica" de Heidegger é um exemplo.

Sim, as traduções em língua portuguesa deviam ser rigorosas, porque a língua fornece ricos recursos. O problema é, como diz, a "cegueira" dos tradutores. Pertencemos a dois países que deviam estar noutro nível de desenvolvimento total... :)

Anónimo disse...

Não basta dizer que o lar é apenas o lugar onde podemos habitar longe do capitalismo ladrão; convém, antes de mais, deslindar o que seja a especulação do lar. Ora, como pode compreender, o lar é o resguardo dos mortais, daqueles que se afastam das vicissitudes políticas para não correrem riscos. Quando se constrói uma casa, cada tijolo é como uma décima parte das nossas inventivas formas de arquitectar a nossa vida de mortal; uma prova de amor pelo que acabamos de construir. Porém, a casa surge como «propriedade» de recriar esse centro fulcral - o que seria desastroso, caso a casa fosse construída de palha, tal como acontece com um dos três porquinhos. Convém aprofundar mais a questão. Não podemos bater na eterna tecla da «suposição», de um «nada» com que os filósofos vestustos têm a arrogância de atribuir a espíritos com menos capacidade intelectual. A casa deve ser sobretudo uma Ideia - e quando se trata de uma Ideia não nos podemos apartar de subterfúgios filosóficos. Convém dizer que a casa é onde o nosso corpo mora.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Goggly

Sim, o que diz sobre a casa é aquilo que os autores referidos dizem, mas com uma diferença: a casa não é apenas o lugar íntimo onde habita o corpo. O eu é o corpo. Mas esse aspecto será tratado na segunda parte e ainda hoje. :)

Coloca a questão da casa ser um espaço onde o homem se refugia para evitar a vida política: uma noção grega. Contudo, hoje, graças às novas tecnologias da comunicação, podemos fazer política a partir de casa, a qual é invadida por estranhos sempre que ligamos a TV ou atendemos o telefone ou uma chamada de marketing... Por vezes, a casa perde o seu estatuto privilegiado de concha e de ninho.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Dado o mercado procurar invadir a nossa casa e colonizá-la, devemos repensar o habitar e aprender a habitar de modo a não perdermos a nossa intimidade, o nosso refúgio.

Infelizmente, o capitalismo ladrão tomou posse de todos os terrenos e é ele que possibilita os empréstimos para a compra da casa. Marx fala de acumulação sangrenta de capital: os muros e as cercas como símbolos de tomada de posse: propriedade privada. Ora, é a legitimidade deste comportamento territorial que questiono. Ou será que qualquer ser humano não tem direito a um espaço para habitar pelo facto de ser lançado no mundo?

Anónimo disse...

Caro J Saraiva,
Não queria ser petulante ao abordá-lo desse modo. Confesso que fui um pouco diletante, sim.
Sim, trata-se realmente de uma noção grega, o facto do «contrangimento político» perante os factos históricos. Porém, essa necessidade sufocante surgiu com a era cristã. Quanto a Marx, acho que é um erro cair na massificação de símbolos; isso criaria um caos em que muitos políticos se digladiam. Lembro-me do nosso actual Primeiro-ministro, que tem uma notória predilecção pelas alegorias, que muito deixa o país à beira de um ataque de nervos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, quanto às "alegorias" de José Sócrates, até são inteligentes! O PM está a fazer um bom trabalho, mesmo em tempos difíceis como o nosso. Pode errar num ou noutro aspecto, mas aprende depressa e tem rumo, o que não acontecia há muito tempo em Portugal.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A segunda parte desta série de posts já foi publicada. Virá amanhã a terceira parte.