«O momento histórico que atravessamos recorda aquele em que se encontrava a biologia antes da Segunda Guerra Mundial. As doutrinas vitalistas tinham direito de cidadania, mesmo entre os cientistas. A biologia molecular anulou-as completamente. É de esperar que aconteça o mesmo às teses espiritualistas e aos seus diversos avatares emergentistas. As possibilidades combinatórias associadas ao número e à diversidade das conexões do cérebro do homem parecem efectivamente suficientes para justificar as capacidades humanas. A separação entre actividades mentais e neuronais não se justifica. A partir de agora, para quê falar de Espírito? Há apenas dois aspectos de uma mesma ocorrência que se podem descrever em termos emprestados, pelo vocabulário do psicólogo (ou da introspecção) ou pela do neurobiologista. A identidade entre estados mentais e estados fisiológicos ou físico-químicos do cérebro impõe-se com toda a legitimidade. O debate acerca do mind-body problem só existe na medida em que se afirma que a organização funcional do sistema nervoso não corresponde à sua organização neural. O homem não tem, portanto, nada mais a esperar do Espírito, basta-lhe ser um Homem Neuronal». (Jean-Pierre Changeux)
Fragmentos de Pensamento... sempre sujeitos a alterações.
A filosofia da mente tende a aceitar a visão científica do mundo, negando o mundo da mente consciente em nome do fisicalismo mais bastardo. As diversas versões do materialismo afirmam que o mundo físico é auto-contido ou fechado: os processos mentais podem ser explicados e compreendidos em termos de teorias físicas. Embora algumas versões materialistas admitam a existência de processos mentais e, especialmente, da consciência, o princípio da inviolabilidade do mundo físico (Popper) implica a redução dos processos mentais a processos físicos, donde resulta a negação da experiência subjectiva e de estados mentais subjectivos. Afirmar que nada existe a não ser o mundo físico é o mesmo que afirmar que a mente é o cérebro. A versão fisicalista do materialismo assume esta identificação dos estados mentais com os estados físico-químicos dos cérebros: a mente não é algo diferente do cérebro; é o próprio cérebro. Porém, as teorias neuroredutoras não explicam o funcionamento da mente consciente e a sua emergência biológica, porque não conseguem explicar como é que os padrões neurais se transformam em padrões mentais (Damásio): a consciência é um sistema neural de regulações em funcionamento (Changeux). Os neurónios são conscientes isoladamente e/ou nas suas conexões? Se isolarmos experimentalmente um grupo de neurónios, eles podem produzir sensações, percepções e consciência? Changeux considera que as operações mentais e os seus resultados são percebidos por um sistema de vigilância constituído por neurónios muito divergentes, como os do tronco cerebral, e pelas respectivas reentradas. Este sistema de regulações composto por teias de aranha neurais funciona como um todo, donde a consciência emerge, tal como um iceberg emerge da água. A teoria da consciência de Gerald M. Edelman redu-la a uma propriedade de processos neurais que não pode actuar causalmente no mundo, porque uma teoria científica tem de aceitar dogmaticamente o facto de o mundo físico ser causalmente fechado. A biologia da consciência não pode entrar em conflito com as leis da física e da química. Neste mundo da física e da química, somente as forças e as energias podem ser causalmente efectivas: a consciência está privada desse poder causal. Já é difícil aceitar este neuroreducionismo, mas mais difícil é atribuir consciência e inteligência aos computadores, como fazem os maluquinhos das ciências cognitivas e da mente computacional, os alvos da crítica pertinente de John Searle.
O objectivo derradeiro do programa da ciência física é elaborar uma teoria física unificada da mente e do corpo, isto é, uma teoria física unificada do universo. Dado ter conseguido progredir em termos de conhecimento do universo físico deixando a mente de fora do que tenta explicar, a ciência física nunca encarou o mundo como algo mais do que aquilo que pode ser compreendido por ela. Vamos supor que esta pretensão fisicalista seja plausível, imaginando que podemos realizar um transplante do cérebro com sucesso. Num laboratório de biologia avançada, existem duas peças anatómicas conservadas: o cérebro conservado de um indivíduo com um traço X que morreu num acidente de trabalho, e o corpo intacto de outro indivíduo, cujo cérebro com um traço Y foi esmagado pela queda de um tijolo. Os dois cadáveres foram artificialmente conservados: um cérebro sem corpo (X) e um corpo sem cérebro (Y). Uma equipa de neurocirurgiões desse laboratório resolve dotar o corpo sem cérebro com o cérebro sem corpo. A cirurgia foi realizada com enorme sucesso médico: o corpo sem cérebro com o traço Y recebeu o cérebro com o traço X sem corpo. A equipa que realizou a operação espera que o resultado confirme a hipótese de que os estados mentais são apenas estados cerebrais. Quando o cérebro com o traço X acordar no seu novo corpo hospedeiro, retomará - espera-se - a sua vida consciente, tal como a tinha vivido antes de ter morrido num acidente de trabalho.
Qual será realmente a sua "nova" identidade? O corpo recebe com o cérebro a identidade marcada pelo traço X, ou conserva os traços da sua identidade anterior? E, se o cérebro com o traço X conservar a sua identidade anterior e se se lembrar dela, não entrará em confronto com o novo corpo receptor? Um corpo desmemorizado recebe um cérebro estranho que se recorda das experiências subjectivas do seu outro corpo originário, sentindo-se alojado num corpo estranho, tal como um amputado masculino se sente quando recebe uma mão feminina. O novo ser resultante dessa cirurgia de transplante do cérebro será, neste caso de perturbação de identidade corporal, uma espécie de transsexual: uma mente/cérebro prisioneira num corpo estranho ou mesmo errado. A infância recordada não será a infância vivida por aquele corpo hospedeiro e o tal traço X pode ser o sexo, a orientação sexual, uma perturbação mental ou neurológica e outras características comportamentais e cognitivas. Um cérebro feminino colocado num corpo masculino produzirá um macho típico? Um cérebro masculino encarnado cirurgicamente num corpo feminino produzirá uma fêmea típica? Um cérebro gay colocado num corpo que funcionou de modo heterossexual mudará essa orientação corporal? Um cérebro heterossexual colocado num corpo que funcionou de modo homossexual mudará essa orientação corporal? Para as neurociências, o mundo da mente consciente continua a ser um milagre ou um enigma por explicar. Descartes defendeu o dualismo interaccionista entre mente e corpo, salvaguardando o espírito humano do peso das leis mecanicistas, mas o materialismo aboliu o cogito, reduzindo o ser humano a um mero autómato. O seu arqui-protagonista, La Mettrie, deu vida ao projecto Homem-Máquina: "O homem é um máquina e, em todo o universo, existe apenas uma única substância que se modifica diferentemente". Para não entrar em conflito com as leis físico-químicas, Gerald M. Edelman nega que a consciência possa actuar causalmente no mundo: o homem-máquina de La Mettrie converte-se assim em zombie consumado e submisso às leis darwinistas da economia de mercado capitalista, cuja filosofia foi elaborada por Daniel Dennett. Mas seremos nós - os humanos - meros zombies sujeitos servilmente aos caprichos dos invocadores-feiticeiros capitalistas ou seremos algo mais? A morte pode ser como um carro que desaparece numa curva: deixamos de o ver mas ele continua o seu percurso. A pessoa que morreu deixa de ser visível mas continua a ser, ou talvez não, porque não sei. O objectivo foi criar perplexidade e espevitar a mente crítica, nada mais. A situação mais curiosa seria aquela em que o traço diz respeito à orientação sexual: Um cérebro gay é recebido por um corpo feminino que viveu experiências lésbicas. Se tivesse sido exclusivamente passivo e hiper-efeminado, o homem gay ficaria feliz por estar a viver num corpo de mulher. A vida clandestina faria parte do seu outro passado. Mas vamos supor que esse corpo tinha pertencido a uma lésbica butch hiper-masculina. Nesse caso, ele não seria completamente feliz, porque teria de tornar esse corpo mais feminino. Com o novo cérebro, o corpo passaria a ser passivo e receptivo, contrariando a orientação que lhe tinha sido dada pelo cérebro lésbico, mas, se guardasse memórias corporais da sua vida anterior, esse corpo sentir-se-ia revoltado com o uso que o cérebro gay faz dele: ser um corpo heterossexual atraído por homens. O cérebro que o comandou anteriormente e que foi esmagado era um cérebro lésbico e sentia atracção por mulheres; agora é um cérebro gay que, pelo facto de habitar um corpo feminino, se tornou heterossexual. Perplexidade total! Ora, nós estamos a supor que o cérebro transplantado guarda memórias, identidades, inscrições, marcas e outros traços comportamentais da sua encarnação corporal anterior, mas será que um cérebro transplantado se lembraria da sua outra identidade? Ou será que ele apenas moveria o corpo sem saber quem é, quem foi e quem será? Afinal, tanto o cérebro sem corpo como o corpo sem cérebro são meras peças anatómicas que fazem parte do mundo físico. A sua união operada por uma cirurgia de transplante do cérebro produzirá efectivamente vida mental dotada de consciência e de sentido? Ou apenas um mero zombie? A mente está ligada ao cérebro, mas pode não ser o cérebro, como defendem os fisicalistas que, por mais que se esforcem, ainda não conseguiram refutar a outra possibilidade: a mente pode ser algo diferente do cérebro e, enquanto mente encarnada num corpo em situação, ser dotada da capacidade para actuar causalmente no mundo. J Francisco Saraiva de Sousa
Fragmentos de Pensamento... sempre sujeitos a alterações.
A filosofia da mente tende a aceitar a visão científica do mundo, negando o mundo da mente consciente em nome do fisicalismo mais bastardo. As diversas versões do materialismo afirmam que o mundo físico é auto-contido ou fechado: os processos mentais podem ser explicados e compreendidos em termos de teorias físicas. Embora algumas versões materialistas admitam a existência de processos mentais e, especialmente, da consciência, o princípio da inviolabilidade do mundo físico (Popper) implica a redução dos processos mentais a processos físicos, donde resulta a negação da experiência subjectiva e de estados mentais subjectivos. Afirmar que nada existe a não ser o mundo físico é o mesmo que afirmar que a mente é o cérebro. A versão fisicalista do materialismo assume esta identificação dos estados mentais com os estados físico-químicos dos cérebros: a mente não é algo diferente do cérebro; é o próprio cérebro. Porém, as teorias neuroredutoras não explicam o funcionamento da mente consciente e a sua emergência biológica, porque não conseguem explicar como é que os padrões neurais se transformam em padrões mentais (Damásio): a consciência é um sistema neural de regulações em funcionamento (Changeux). Os neurónios são conscientes isoladamente e/ou nas suas conexões? Se isolarmos experimentalmente um grupo de neurónios, eles podem produzir sensações, percepções e consciência? Changeux considera que as operações mentais e os seus resultados são percebidos por um sistema de vigilância constituído por neurónios muito divergentes, como os do tronco cerebral, e pelas respectivas reentradas. Este sistema de regulações composto por teias de aranha neurais funciona como um todo, donde a consciência emerge, tal como um iceberg emerge da água. A teoria da consciência de Gerald M. Edelman redu-la a uma propriedade de processos neurais que não pode actuar causalmente no mundo, porque uma teoria científica tem de aceitar dogmaticamente o facto de o mundo físico ser causalmente fechado. A biologia da consciência não pode entrar em conflito com as leis da física e da química. Neste mundo da física e da química, somente as forças e as energias podem ser causalmente efectivas: a consciência está privada desse poder causal. Já é difícil aceitar este neuroreducionismo, mas mais difícil é atribuir consciência e inteligência aos computadores, como fazem os maluquinhos das ciências cognitivas e da mente computacional, os alvos da crítica pertinente de John Searle.
O objectivo derradeiro do programa da ciência física é elaborar uma teoria física unificada da mente e do corpo, isto é, uma teoria física unificada do universo. Dado ter conseguido progredir em termos de conhecimento do universo físico deixando a mente de fora do que tenta explicar, a ciência física nunca encarou o mundo como algo mais do que aquilo que pode ser compreendido por ela. Vamos supor que esta pretensão fisicalista seja plausível, imaginando que podemos realizar um transplante do cérebro com sucesso. Num laboratório de biologia avançada, existem duas peças anatómicas conservadas: o cérebro conservado de um indivíduo com um traço X que morreu num acidente de trabalho, e o corpo intacto de outro indivíduo, cujo cérebro com um traço Y foi esmagado pela queda de um tijolo. Os dois cadáveres foram artificialmente conservados: um cérebro sem corpo (X) e um corpo sem cérebro (Y). Uma equipa de neurocirurgiões desse laboratório resolve dotar o corpo sem cérebro com o cérebro sem corpo. A cirurgia foi realizada com enorme sucesso médico: o corpo sem cérebro com o traço Y recebeu o cérebro com o traço X sem corpo. A equipa que realizou a operação espera que o resultado confirme a hipótese de que os estados mentais são apenas estados cerebrais. Quando o cérebro com o traço X acordar no seu novo corpo hospedeiro, retomará - espera-se - a sua vida consciente, tal como a tinha vivido antes de ter morrido num acidente de trabalho.
Qual será realmente a sua "nova" identidade? O corpo recebe com o cérebro a identidade marcada pelo traço X, ou conserva os traços da sua identidade anterior? E, se o cérebro com o traço X conservar a sua identidade anterior e se se lembrar dela, não entrará em confronto com o novo corpo receptor? Um corpo desmemorizado recebe um cérebro estranho que se recorda das experiências subjectivas do seu outro corpo originário, sentindo-se alojado num corpo estranho, tal como um amputado masculino se sente quando recebe uma mão feminina. O novo ser resultante dessa cirurgia de transplante do cérebro será, neste caso de perturbação de identidade corporal, uma espécie de transsexual: uma mente/cérebro prisioneira num corpo estranho ou mesmo errado. A infância recordada não será a infância vivida por aquele corpo hospedeiro e o tal traço X pode ser o sexo, a orientação sexual, uma perturbação mental ou neurológica e outras características comportamentais e cognitivas. Um cérebro feminino colocado num corpo masculino produzirá um macho típico? Um cérebro masculino encarnado cirurgicamente num corpo feminino produzirá uma fêmea típica? Um cérebro gay colocado num corpo que funcionou de modo heterossexual mudará essa orientação corporal? Um cérebro heterossexual colocado num corpo que funcionou de modo homossexual mudará essa orientação corporal? Para as neurociências, o mundo da mente consciente continua a ser um milagre ou um enigma por explicar. Descartes defendeu o dualismo interaccionista entre mente e corpo, salvaguardando o espírito humano do peso das leis mecanicistas, mas o materialismo aboliu o cogito, reduzindo o ser humano a um mero autómato. O seu arqui-protagonista, La Mettrie, deu vida ao projecto Homem-Máquina: "O homem é um máquina e, em todo o universo, existe apenas uma única substância que se modifica diferentemente". Para não entrar em conflito com as leis físico-químicas, Gerald M. Edelman nega que a consciência possa actuar causalmente no mundo: o homem-máquina de La Mettrie converte-se assim em zombie consumado e submisso às leis darwinistas da economia de mercado capitalista, cuja filosofia foi elaborada por Daniel Dennett. Mas seremos nós - os humanos - meros zombies sujeitos servilmente aos caprichos dos invocadores-feiticeiros capitalistas ou seremos algo mais? A morte pode ser como um carro que desaparece numa curva: deixamos de o ver mas ele continua o seu percurso. A pessoa que morreu deixa de ser visível mas continua a ser, ou talvez não, porque não sei. O objectivo foi criar perplexidade e espevitar a mente crítica, nada mais. A situação mais curiosa seria aquela em que o traço diz respeito à orientação sexual: Um cérebro gay é recebido por um corpo feminino que viveu experiências lésbicas. Se tivesse sido exclusivamente passivo e hiper-efeminado, o homem gay ficaria feliz por estar a viver num corpo de mulher. A vida clandestina faria parte do seu outro passado. Mas vamos supor que esse corpo tinha pertencido a uma lésbica butch hiper-masculina. Nesse caso, ele não seria completamente feliz, porque teria de tornar esse corpo mais feminino. Com o novo cérebro, o corpo passaria a ser passivo e receptivo, contrariando a orientação que lhe tinha sido dada pelo cérebro lésbico, mas, se guardasse memórias corporais da sua vida anterior, esse corpo sentir-se-ia revoltado com o uso que o cérebro gay faz dele: ser um corpo heterossexual atraído por homens. O cérebro que o comandou anteriormente e que foi esmagado era um cérebro lésbico e sentia atracção por mulheres; agora é um cérebro gay que, pelo facto de habitar um corpo feminino, se tornou heterossexual. Perplexidade total! Ora, nós estamos a supor que o cérebro transplantado guarda memórias, identidades, inscrições, marcas e outros traços comportamentais da sua encarnação corporal anterior, mas será que um cérebro transplantado se lembraria da sua outra identidade? Ou será que ele apenas moveria o corpo sem saber quem é, quem foi e quem será? Afinal, tanto o cérebro sem corpo como o corpo sem cérebro são meras peças anatómicas que fazem parte do mundo físico. A sua união operada por uma cirurgia de transplante do cérebro produzirá efectivamente vida mental dotada de consciência e de sentido? Ou apenas um mero zombie? A mente está ligada ao cérebro, mas pode não ser o cérebro, como defendem os fisicalistas que, por mais que se esforcem, ainda não conseguiram refutar a outra possibilidade: a mente pode ser algo diferente do cérebro e, enquanto mente encarnada num corpo em situação, ser dotada da capacidade para actuar causalmente no mundo. J Francisco Saraiva de Sousa