«O sistema genético e o sistema imunitário funcionam como memórias que registam o passado da espécie e o passado do indivíduo, respectivamente. Mas um ser vivo não é apenas o último elo de uma cadeia ininterrupta de organismos. A vida é um processo que não se limita a registar o passado, mas que se vira também para o futuro. Segundo parece, o sistema nervoso surgiu como aparelho para coordenar o comportamento de diversas células nos organismos multicelulares. Tornou-se depois máquina registadora de determinados acontecimentos da vida do indivíduo. E, finalmente, tornou-se capaz de inventar o futuro». (François Jacob)
François Jacob esboça - em poucas palavras - uma teoria dos sistemas biológicos - o sistema genético, o sistema imunitário e o sistema nervoso - que ainda não foi pensada filosoficamente ou mesmo cientificamente. Pensar filosoficamente a teoria biológica - tal como tem sido elaborada pelas ciências biológicas - é tarefa que compete à Filosofia Biológica: aqui o que pretendo fazer é dar início à formulação da Filosofia do Sistema Imunitário. Segundo Jacob, o sistema imunitário funciona como memória que regista o passado infeccioso do indivíduo. Pensar a memória imunitária nas suas relações com a memória genética e a memória neural constitui desde logo um desafio-objecto-território para a Filosofia Imunológica: aquilo a que chamei memória neural ou, se quiserem, memória neuro-psicológica, foi sempre o alvo preferencial da reflexão filosófica. A Filosofia da Memória tem um passado milenar fabuloso, constituindo talvez um dos maiores tesouros cognitivos do pensamento filosófico. As ciências biológicas lançaram dois desafios a esse legado filosófico, primeiro quando reduziram a memória considerada até aqui como uma faculdade da mente consciente a uma função cerebral susceptível de ser explicada pela linguagem celular e molecular da neurobiologia da memória, e segundo quando começaram - graças ao desenvolvimento da biologia molecular - a falar de outros tipos de memória, tais como a memória genética e a memória imunitária. (E o que pensar da memória imunitária das sucessivas gravidezes masculinas «localizada» algures no útero da mãe?) Quando desafiada pela ciência, a filosofia tende a recuar, e este recuo assume geralmente duas formas: o abandono-entrega desse objecto de estudo - ou fragmento do mundo real - à competência da análise científica, limitando-se a filosofia a fazer a teoria do conhecimento científico, ou então continuar a fazer o seu percurso teórico autónomo ignorando o discurso e a prática efectiva das ciências. Os cientistas ficam muito frustrados com estas duas reacções filosóficas às descobertas científicas: eles depositam muita confiança na Filosofia e desejam que a Filosofia seja algo mais do que uma mera epistemologia da ciência que praticam. Como cientista partilho este desejo legítimo da ciência, e como filósofo vou procurar satisfazê-lo. Não sei se repararam que, quando mencionei os desafios colocados pela ciência à filosofia, omiti o discurso dos "ismos", tais como monismo, dualismo ou interaccionismo, materialismo ou idealismo. Esta omissão filosófica não é inocente: antes de colocar desafios filosóficos ousados à ciência, prefiro pensar filosoficamente as suas teorias-paradigmas, procurando dar um contributo para a sua clarificação teórica e para o conhecimento da fábrica do mundo. No que se refere às relações entre filosofia e ciência, afasto-me das posições dos meus mestres que condenaram - talvez injustamente - a tentativa inacabada de Engels de elaborar uma «dialéctica da natureza». Assim, por exemplo, Althusser forjou a expressão filosofia espontânea dos cientistas para delimitar o espaço de intervenção da filosofia no discurso científico: o papel da filosofia é evitar que os cientistas se desviem da verdadeira filosofia da ciência - o materialismo, sem no entanto interferir com os seus conteúdos objectivos de conhecimento. Ora, se as considerarmos na sua dimensão estritamente cognitiva, filosofia e ciência não são distintas uma da outra: ambas tecem teorias e modelos que acrescentam à realidade-mundo as determinações do seu conhecimento. Porém, mesmo que essa fosse a sua principal função crítica, a filosofia poderia - e pode - ser obrigada - no decorrer do seu cumprimento-desempenho - a interferir com a interpretação da ciência e dos seus conteúdos objectivos de conhecimento, como o demonstra a polémica em torno da interpretação adequada da mecânica quântica. Para mostrar que a sua interpretação adequada é o materialismo, Althusser seria forçado a introduzir alterações substanciais no corpo teórico e empírico da física quântica, refutando a interpretação idealista como desvio-erro-padrão da filosofia espontânea dos físicos em relação ao programa materialista de investigação. Qualquer tentativa filosófica de sistematizar a filosofia espontânea dos cientistas, dando-lhe a forma ajustada e adequada, interfere com a prática científica na sua relação de conhecimento com o mundo ou o fragmento do mundo que tematiza. Filosofia e ciência devem unir os seus esforços na busca cooperativa da verdade. E será à luz dessa cooperação ciência-filosofia - aliás benéfica para ambas! - que tentarei esboçar as linhas gerais da filosofia do sistema imunitário.
Susan Sontag que foi salva do seu cancro pelos novos tratamentos médicos confrontou-se, pelo menos duas vezes, com o discurso imunológico, não para compreender a imensa revolução científica que se operou no seu seio quando Macfarlane Burnet substituiu os modelos instrutivos da imunidade (Paul Ehrlich, Karl Landsteiner, Linus Pauling) pela teoria da selecção clonal da imunidade, preparada e antecedida pelos modelos selectivos de Niels K. Jerne e de Joshua Lederberg, mas para o desconstruir, acusando-o de usar a metáfora militar para conceptualizar a doença e a saúde, e de desencadear assim a ideia de guerra total que faz do corpo um campo de batalha, onde o "outro alienígena" - o agente patogénico que provoca a doença - é visto como um invasor-inimigo que deve ser eliminado pelo exército próprio do organismo. O erro de Sontag está no facto de ter aplicado a noção de doença-metáfora ao próprio discurso médico-científico, como se a imunologia médica fosse - em si mesma - uma mera metaforização da doença, colocada sempre-já ao serviço do capitalismo para justificar o autoritarismo do Estado-Capitalista e o uso que faz da repressão violenta para silenciar ou eliminar as forças da oposição. A mente-cérebro de Sontag estava de tal modo ofuscada pelas imagens apocalípticas associadas à epidemia da Sida que foi impedida de distinguir o discurso e a prática da ciência médica que a salvou da morte precoce dos seus eventuais e reais usos ideológicos por parte do poder estabelecido. Apesar da sua valência pertinente de crítica da ideologia médica, a filosofia médica de Sontag - sim, é um contributo importante para a filosofia médica! - foi incapaz de desbravar o terreno para a elaboração da filosofia da imunologia que, dado ser uma criação de cérebros masculinos, utiliza naturalmente uma linguagem belicista bem-ajustada à compreensão da luta entre o "eu" e o "não-eu" - o outro - que se trava no nosso corpo para nos proteger dos invasores-inimigos que nos querem matar. Ao contrário do que pensava Susan Sontag, há mundo fora dos textos e de cada ser humano, considerado - neste caso - na sua individualidade biológica, e esse mundo é hostil: o dito de Heráclito - segundo o qual «a guerra é o pai de tudo, o soberano de todos: a alguns ela revelou como deuses, outros como homens; alguns ela faz escravos, outros homens livres» -, que choca a sensibilidade feminina de Sontag, continua a fornecer-nos a melhor imagem do mundo. A fenomenologia do sistema imunitário - isto é, a descrição dos fenómenos imunitários fundamentais, tais como imunidade celular, imunidade humoral, hipersensibilidade retardada, profilaxia, anafilaxia, respostas imunes primária e secundária, inflamação, memória imunológica, auto-reconhecimento, transplante de tecidos, enxertos, tolerância imunológica, vacinação, imunodeficiências primárias e secundárias, auto-imunidade e doenças auto-imunes - retoma essa imagem dialéctica de Heráclito para mostrar que a função primária do sistema imunitário é eliminar os agentes infecciosos e minimizar os danos que eles podem causar ao organismo, de modo a conservar a estabilidade própria do corpo, isto é, a sua própria homeostase. É certo que o homem é lançado «nu e desprotegido, fraco e necessitado, tímido e desarmado e, cúmulo da sua miséria, destituído de tudo o que pudesse guiar-lhe a vida» (Herder) num mundo hostil, mas não está completamente desprotegido: o cérebro e o sistema imunitário são duas das adaptações filogenéticas que lhe permitem proteger-se da hostilidade do mundo. (A imunologia lança desafios teóricos fascinantes à antropologia fundamental: todos os seus conceitos teóricos carregam no seu cerne o esboço de uma antropologia imunitária que, se for pensada até às suas últimas consequências, permite pensar o homem como ser programado para a morte. Não é por mero acaso que um imunologista do calibre de Burnet tenha escrito sobre a história natural da morte e da hereditariedade. Não resisto à tentação de voltar a criticar o poder geriátrico instalado nas sociedades europeias: a morte é um programa biológico e o estar-morto tem a mesma relação com a vida consciente que o estado de ainda-não-ter-nascido. Os velhos da Europa - e do mundo - devem pensar que o envelhecimento é essencialmente a perda de interesse da natureza pelos organismos que, tendo finalizado a sua tarefa reprodutora, já não estão submetidos à pressão evolutiva: a sua morte que é o fim do seu pequeno universo liberta o espaço para os novos organismos sujeitos à pressão evolutiva. Os velhos só têm direito à existência se a sociedade mentalmente activa assim o entender. Ora, velhos que quase não se reproduziram e que roubaram o futuro aos outros no decurso da sua existência egoísta e cruel não merecem a vida que inventaram à custa do sofrimento alheio. Sei que este é um pensamento "perigoso", mas, se não evitarmos o confronto estúpido com a biologia, ela terá a última palavra - e não será uma palavra amigável.)
Quando o organismo é invadido por substâncias ou micro-organismos estranhos, ele defende-se através do desenvolvimento da imunidade, o processo biológico pelo qual o organismo, a partir da experiência de ofensas passadas, aprende a afrontar de modo eficaz e específico as ofensas presentes e futuras. Há dois tipos de imunidade: a imunidade celular e a imunidade humoral. A descoberta de que o soro de sangue mata frequentemente determinadas bactérias levou à formulação da teoria humoral da imunidade (Edward Jenner, Louis Pasteur), segundo a qual os anticorpos - solúveis no sangue - são a base da imunidade que se desenvolve para com a infecção. Porém, no decurso do mesmo período entre 1880 e 1890, a descoberta de que certas células do baço, do fígado, dos gânglios linfáticos, da medula óssea e do sangue - tais como leucócitos polimorfonucleados, monócitos e outras células do corpo que formam o sistema reticuloendotelial (RES) - são capazes de bloquear e ingerir bactérias ou outras substâncias estranhas - através do processo conhecido como fagocitose - levou o grupo de Metchnikoff a formular a teoria celular da imunidade. As duas teorias da imunidade não são opostas, e os estudos de Paul Ehrlich sobre a toxina e a antitoxina diftérica permitiram elaborar uma teoria unificada da imunidade. As experiências realizadas depois de 1890 evidenciaram muitas outras substâncias, para além das bactérias e das toxinas bactéricas, que provocam a formação de anticorpos. Os antigenes são as substâncias químicas capazes de induzir uma resposta imune específica. Os anticorpos são aquelas globulinas plasmáticas conhecidas no seu conjunto como imunoglobulinas, e cada um deles pertence a uma das cinco classes principais de imunoglobulinas: IgG, IgA, IgM, IgD e IgE. A imunidade baseia-se em mecanismos celulares e humorais. Em termos gerais, o mecanismo da imunidade celular diz respeito aos antigenes incapazes de atingir os tecidos linfóides, dado estarem imobilizados na periferia do corpo, ao passo que o mecanismo da imunidade humoral compreende as respostas imunitárias que dependem do transporte do antigene para os tecidos linfóides e que se traduzem na síntese de anticorpos. A imunidade celular compreende o comportamento fagocítico do sistema reticuloendotelial que elimina do organismo uma extensa gama de materiais estranhos, tais como produtos da demolição de tecidos, bactérias e outros agentes, e outro tipo mais específico de imunidade celular que se observa no fenómeno da hipersensibilidade retardada, ilustrado pela reacção à tuberculina. Em qualquer um destes casos, a imunidade celular não apresenta a elevada especificidade da imunidade humoral que, envolvendo anticorpos e antigenes, representa a mais avançada adaptação evolutiva a um ambiente hostil. A imunidade humoral tem sido pensada como podendo ser adquirida - no sentido de derivar da exposição directa a um antigene - ou natural - no sentido de prescindir dessa exposição, mas a convicção crescente de que todos os anticorpos aparecem como resposta aos antigenes reforça a ideia da imunidade humoral ser basicamente adquirida. A imunidade humoral adquirida pode ser activa ou passiva: a imunidade activa é aquela em que os anticorpos se formam nos tecidos do corpo depois deste ter sido exposto a um antigene, ao passo que a imunidade passiva é produzida num organismo por transferência deliberada de soro de um outro organismo que está imune. Além desta forma artificial de conferir imunidade a um organismo injectando-lhe soro contendo anticorpos de um outro organismo humano ou animal, a imunidade passiva pode ser natural, como sucede na transmissão de anticorpos maternos para o feto, através da placenta ou saco-vitelino ou do primeiro leite, o chamado colostro, que o recém-nascido recebe do peito da mãe. Porém, como os tecidos do indivíduo imunizado passivamente não participam na produção de anticorpos, a sua imunidade é temporária e desaparece no decurso de poucas semanas. Até aqui expliquei o sistema de resposta imunitária que é activado pela intrusão, no organismo, de substâncias estranhas, mas, por vezes, os constituintes do próprio corpo actuam como substâncias estranhas, tornando-se assim antigénicos. A forma mais interessante como isso pode acontecer - mas não a única, como é evidente! - é a doença auto-imune. No sistema imunitário, o repertório de especificidades exibidas pelas populações de células T e B é gerado ao acaso e, por isso, há sempre a possibilidade de muitas especificidades serem dirigidas contra constituintes do próprio corpo. Para evitar a auto-reactividade, o organismo deve estabelecer mecanismos de auto-tolerância que lhe permitam distinguir entre os determinantes próprios e os determinantes não-próprios ou, para usar a terminologia de Niels K. Jerne, decidir - através da consulta do dicionário - qual é a palavra alheia que não pertence à sua própria linguagem. Porém, tal como todos os outros mecanismos biológicos, os mecanismos de auto-reconhecimento podem ser rompidos, e, apesar de ser rara, a auto-imunidade manifesta-se num vasto espectro de doenças auto-imunes, desde a doença de Hashimoto (tiroidite auto-imune) até à miastenia grave (paralisia que se assemelha à paralisia provocada pelo curare), passando pela esclerose múltipla, perturbações neurológicas debilitantes (panencefalomielite subaguda esclerosante, por exemplo), colite ulcerosa, oftalmia do nervo simpático, infertilidade masculina, anemia perniciosa, síndrome de Goodpasture, distúrbios sanguíneos, doenças de receptores e artrite reumatóide. Por causa do seu carácter auto-progressivo, as doenças auto-imunes são particularmente difíceis de tratar: o seu tratamento inclui o uso de drogas anti-inflamatórias e de agentes imunossupressores.
Qualquer teoria imunológica debate-se com duas questões fundamentais: Como aprende o plasma da célula a sintetizar as moléculas globulínicas dos anticorpos que trazem um específico local de combinação, complementar ao determinante antigénico de uma substância completamente estranha? Como conseguem as células formadoras de anticorpos distinguir os componentes corpóreos não-antigénicos - o eu - das substâncias estranhas antigénicas - o não-eu? Como é evidente, as defesas imunológicas erguidas contra as substâncias estranhas não podem voltar-se contra o próprio corpo. As diversas experiências com o enxerto cutâneo são suficientes para mostrar que o organismo sabe distinguir as configurações químicas exteriores das configurações que lhe são próprias. Com excepção do auto-enxerto e dos enxertos trocados entre gémeos idênticos que se desenvolvem a partir de um único ovo, o corpo-hospedeiro-receptor rejeita o tecido cutâneo transplantado do corpo-dador de outra pessoa (homoenxerto) que reconhece como estranho. Destas experiências simples resulta o ideia de que os indivíduos possuem não só os genes que caracterizam a espécie a que pertencem, mas também complexos conjuntos de determinantes alotípicos responsáveis pela unicidade individual. A resposta às questões que preocupam as teorias imunológicas foi proporcionada pelas experiências nas quais um organismo é induzido artificialmente a aceitar como parte de si próprio substâncias ou células que, do ponto de vista genético, não deviam permanecer nele: os gémeos humanos diferentes - fraternos ou biovulares - partilham no útero uma circulação placentária comum, circunstância que permite a cada gémeo receber continuamente do outro uma ampla variedade de células, entre as quais os precursores de glóbulos vermelhos capazes de fundar uma colónia na medula óssea, multiplicando-se e produzindo eritrócitos. Estes gémeos tornam-se quimeras e assim permanecem durante toda a vida: cada um deles tem dois grupos sanguíneos, o próprio e o geneticamente próprio do outro gémeo. Ao contrário dos gémeos biovulares que se desenvolveram a partir de placentas separadas, estes gémeos fraternos com duplo grupo sanguíneo aceitam os transplantes cutâneos, como se fossem gémeos monozigóticos. Com base nesta observação, Macfarlane Burnet elaborou a hipótese de que um antigene estranho introduzido precocemente na vida embrionária não só desencadeia a formação de anticorpos, como também será - a partir desse momento - considerado parte integrante de si próprio - parte não antigénica - pelos sistemas formadores de anticorpos do organismo. As experiências de enxerto cutâneo realizadas em ratos que, graças à endogamia, adquiriram semelhanças genéticas formidáveis, permitiram confirmar as ideias de Burnet sobre o auto-reconhecimento e sobre os mecanismos da tolerância imunológica. Num determinado momento da vida embrionária ou neonatal, as células formadoras de anticorpos realizam uma espécie de inventário das células e das substâncias presentes - incluindo todos os materiais estranhos que foram introduzidos acidental ou experimentalmente - no organismo e classificam-nas como si próprias. Ora, a partir do momento em que se realiza este inventário, todos os outros materiais são classificados como estranhos ao organismo, desencadeando mais tarde as respostas imunitárias. A investidura da tolerância imunológica recebida pelo si próprio impede uma eventual reacção do corpo contra os seus próprios constituintes. As reacções auto-imunitárias só ocorrem nas circunstâncias onde não se verifica a investidura assegurada pela tolerância imunológica. Peter B. Medawar considera que o conceito de tolerância imunológica - usado para designar um estado de não-reactividade imunologicamente específico, em relação a uma substância que teria normalmente sido antigénica - é inapropriado para a imunologia, mas, apesar disso, ele continua a ser usado, promovendo novas investigações que procuram clarificar o seu mecanismo: os organismos dos vertebrados superiores são tolerantes aos seus próprios constituintes corporais e a falha em estabelecer ou manter essa tolerância provoca a doença auto-imune. Até meados de 1950, as teorias da imunidade eram classificadas em instrutivas e selectivas, como já referimos anteriormente. As teorias instrutivas postulavam que o antigene actuava como um molde sobre o qual as moléculas de anticorpos se dobravam, de modo a adquirir uma configuração complementar adequada. Mas, quando se descobriu que os anticorpos de diferentes especificidades tinham diferentes sequências de aminoácidos nos seus sítios específicos de combinação, as teorias instrutivas foram abandonadas e substituídas pelas teorias selectivas que postulam que os anticorpos de todas as especificidades são produzidos em baixas concentrações antes da administração dos antigenes e que a própria molécula do anticorpo actua seleccionando o antigene. Segundo as teorias selectivas, a função de um antigene consiste em escolher e estimular a síntese de um anticorpo cuja especificidade preexiste numa forma determinada pela informação genética, sendo o sistema imunitário impermeável às informações exteriores. Para cada um dos milhares de possíveis antigenes estranhos, o corpo contém já uma célula ou um grupo de células geneticamente capazes de sintetizar um anticorpo complementar: quer dizer que cada célula ou grupo de células sabe antecipadamente como fabricar um anticorpo específico sem que o antigene correspondente tenha sido introduzido no organismo. Imaginando a selecção ao nível celular, Macfarlane Burnet propôs a teoria da selecção clonal da imunidade, segundo a qual os linfócitos imunocompetentes possuem anticorpos como receptores na sua membrana celular, e cada um desses linfócitos imunocompetentes possui anticorpos como receptores dotados de especificidade particular. A teoria da selecção clonal, tal como a estabeleceu Burnet, preconiza que, nos primeiros estádios da vida embrionária, os precursores dos portadores das palavras estrangeiras ou dos modelos dos anticorpos - os linfócitos - são notavelmente mutáveis: o seu material genético sofre mutações espontâneas e ao acaso, criando assim todos os possíveis modelos de anticorpos. Cada célula que sofreu mutação torna-se - através de uma simples divisão - o precursor de um pequeno grupo ou clone de células idênticas, cada um dos quais dotado de uma configuração para um ou para alguns anticorpos específicos. Dado as mutações serem o resultado de um processo aleatório, surgem espontaneamente modelos de anticorpos contra os auto-antigenes que estão dentro do corpo, mas estas células que contêm auto-configurações são destruídas pelo contacto com os seus respectivos antigenes, até porque elevadas doses ou concentrações de um antigene inibem a formação dos anticorpos num adulto (paralisia imunológica). Durante uma fase precoce da vida embrionária, os clones inviáveis ou proibidos que se opõem aos antigenes próprios são eliminados à nascença. Normalmente, os antigenes estranhos não podem atingir o embrião, mas, quando o fazem, são aceites como próprios. Se os antigenes estranhos não atingem o embrião, este conserva todas as configurações casuais não dirigidas contra os próprios constituintes. A teoria da selecção clonal explica como o corpo cria o seu próprio dicionário de termos estrangeiros (Niels K. Jerne), isto é, a sua lista de configurações imunológicas correspondentes a determinantes antigénicos não representados entre os constituintes do corpo, obedecendo aos três requisitos prévios: a produção de cada anticorpo ocorre em clones de células e a progenitura desenvolve-se com base em acontecimentos de maturação e divisão a partir de um único linfócito sensível ao antigene sem permuta de material genético com outras células (1); todas as células - e sua descendência - fabricam moléculas de anticorpos com uma única especificidade (2); o grande número de sequências variáveis de aminoácidos deve adaptar-se aos actuais conhecimentos sobre a síntese proteica com controlo genético (3). Quando escolheu o discurso imunológico como alvo preferencial da sua crítica, Susan Sontag captou - sem disso ter consciência - o âmago da ciência médica contemporânea: a imunologia é hoje uma disciplina biomédica tão importante - ou talvez mais importante! - como a microbiologia ou a hematologia. A passagem da noção inicial da imunidade como resistência dos indivíduos contra as infecções microbianas para a noção de imunidade como o conjunto de factores humorais e celulares, específicos ou não da substância introduzida, que protegem o organismo contra as agressões infecciosas e parasitárias e as proliferações malignas - esta passagem assinala o fim da imunologia clássica e o nascimento da imunologia moderna que abre novos rumos à medicina. A Filosofia Médica não pode continuar indiferente à imunologia que lhe permite elaborar uma teoria geral da medicina, tendo como fio condutor a antropologia fundamental enriquecida pela antropologia imunitária. (A fatalidade letal de ser português não me permite sonhar com a elaboração deste projecto: os malditos saloios fagocitam tudo o que tenha mérito, reduzindo o conhecimento a mero excremento seu. Portugal é lixo que produz continuamente mais lixo!)
Anexo: Tinha a intenção de terminar este texto-introdutório com duas extensões conceptuais com relevância para o desenvolvimento da própria teoria filosófica: a vacinação e as doenças auto-imunes. Mas não posso cumprir esta promessa, a menos que prolongasse ainda mais este texto. Posso fazer tudo isto noutros textos porque sou conceptual designer! Mas neste país maldito o conceptual designer que sou é movido pela fúria destrutiva e, por isso, nunca perde de vista o fenómeno da morte. Porém, como não sou mau por natureza, avanço desde já com um conceito demolidor: a hermenêutica do texto filosófico e a desconstrução são doenças auto-imunes da filosofia contemporânea, contra as quais elaboro vacinas. (Uma área de pesquisa é a interface entre o sistema imunitário e o sistema nervoso: Niels K. Jerne deu-lhe início num artigo seminal.)
J Francisco Saraiva de Sousa