«Os assassinados são defraudados até mesmo da única coisa que a nossa impotência pode garantir-lhes: a recordação». (Theodor W. Adorno)
«O dom de atiçar através do passado a chama da esperança pertence apenas ao historiógrafo perfeitamente convencido que diante do inimigo, e no caso deste vencer, nem sequer os mortos estarão em segurança. E este inimigo não tem cessado de vencer». (Walter Benjamin)
«Os verdadeiros indivíduos do nosso tempo são os mártires que atravessaram os infernos do sofrimento e da degradação na sua resistência à conquista e à opressão, e não as personalidades bombásticas da cultura popular, os dignatários convencionais. Esses heróis não celebrados expuseram conscientemente a sua existência como indivíduos à aniquilação terrorista que outros arrostam inconscientemente através dos processos sociais. Os mártires anónimos dos campos de concentração são os símbolos da humanidade que luta para nascer. A tarefa da filosofia é traduzir o que eles fizeram numa linguagem que será ouvida, mesmo que as suas vozes finitas tenham sido silenciadas pela tirania». (Max Horkheimer)
«A necessidade de morte não refuta a possibilidade de libertação final. Tal como as outras necessidades — pode tornar-se também racional, indolor. Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que eles amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte — num momento da sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão». (Herbert Marcuse) Na sua obra «Introdução à Leitura de Hegel», Alexandre Kojève (1947) analisou cuidadosamente «a ideia de morte na filosofia de Hegel», mostrando que ela estrutura a sua filosofia, pelo menos desde os textos de Yena. A tese de Kojève é simples: «A filosofia dialéctica ou antropológica de Hegel é, em última análise, uma filosofia da morte (ou, o que dá no mesmo, do ateísmo)». A morte desempenha, portanto, um papel primordial na filosofia de Hegel, em particular na sua «Fenomenologia do Espírito». A novidade da antropologia hegeliana reside precisamente na concepção do homem como «
morte adiada» ou «doença mortal do animal» e no destaque dos seus efeitos antropogénicos. Esta novidade é pensada através do seu confronto com outras concepções, em particular a judaico-cristã e a grega. Kojève está convencido de que o homem de Hegel é o homem que aparece na tradição pré-filosófica judaico-cristã, «a única verdadeiramente antropológica» que se manteve viva no decorrer dos tempos modernos «sob a forma de fé ou de teologia, ambas incompatíveis com a ciência ou a filosofia antigas e tradicionais». Desta tradição pré-filosófica, Hegel herdou a noção de indivíduo livre e histórico, ou seja, a noção de pessoa.
O Homem Grego. Na tradição clássica grega, o homem é um ser puramente natural que não tem liberdade, nem história, nem individualidade propriamente dita. Tal como o animal, o homem representa, na e pela sua existência real e activa, uma ideia ou essência eterna, dada uma vez por todas e permanecendo idêntica a si mesma: «
Assim como a vida do animal, a sua existência-empírica é absolutamente determinada pelo seu lugar natural que ocupa desde sempre no seio do cosmos dado imutável. E, se difere essencialmente do animal, é apenas pelo seu pensamento ou pelo seu discurso coerente (Logos), cuja aparição no cosmos nunca foi explicada. Mas esse discurso não nega nada e não cria nada: contenta-se em revelar o real dado. O discurso, isto é, o homem, incorpora-se ao Ser-dado. E o que há, em última análise, é esse Ser uno e único que se pensa eternamente na sua totalidade dada».
O Homem Judaico-Cristão. Na tradição judaico-cristã, o homem difere essencialmente da natureza, não só pelo seu pensamento, mas também pela sua actividade. A natureza é um pecado no homem e para o homem: este pode e deve opor-se à natureza e negá-la nele mesmo. Apesar de viver na natureza, o homem não está sujeito às suas leis, na medida em que pode opor-se à natureza e negá-la. Isto significa que o homem é, em última análise, independente em relação à natureza, isto é, é um ser autónomo e livre que, na sua condição de estranho na natureza, pode criar um mundo novo que lhe é próprio. Ora, este mundo novo criado pelo homem é um mundo histórico no qual o homem pode tornar-se um ser radicalmente diferente do que é como ser natural dado. Neste mundo histórico, o homem já não é um representante de uma espécie eterna ou imutável dada, mas um ser criado e criador, isto é, um indivíduo único no seu género.
Embora tenha descoberto a
espiritualidade do homem, portanto, a sua liberdade, a sua história e a sua individualidade, a tradição antropológica judaico-cristã é uma tradição essencialmente religiosa e teísta: a espiritualidade só se realiza e se manifesta plenamente no além. Isto significa que o espírito é Deus, um ser infinito e eterno. Hegel aplica ao homem a noção judaico-cristã de individualidade livre histórica, mas nega-lhe a imortalidade e, consequentemente, Deus. Para Hegel, o ser espiritual é necessariamente temporal e finito: o homem só pode ser um indivíduo livre e histórico se for mortal, isto é, finito no tempo e consciente da sua finitude e temporalidade radicais. O espírito é, pois, «o homem-no-mundo: o homem mortal que vive num mundo sem Deus e que fala de tudo o que existe e de tudo o que cria, inclusive ele próprio». Kojève destaca as consequências desta concepção ateia radical da
finitude humana:
1. Liberdade e Negatividade. Para Hegel, a liberdade é a realização e a manifestação da negatividade e, como tal, consiste no acto de negar o real na sua estrutura dada e manter a negação sob a forma de uma obra criada por essa negação activa. Esta liberdade constitui a realidade-essencial do homem. Contudo, dado a negatividade em si ser o nada e a liberdade ser a negatividade, não há liberdade sem a morte. Somente um ser mortal pode ser livre. Por isso, a morte constitui a manifestação última e autêntica da liberdade. Isto significa que o homem só pode ser livre se for essencial e voluntariamente mortal. Para Hegel, a liberdade é a autonomia em relação àquilo que é dado, isto é, a possibilidade de negá-lo tal como é dado. Em última análise, só pela morte voluntária o homem pode escapar do domínio de qualquer condição dada e imposta pela existência.
2. Historicidade. A liberdade absoluta entendida como não-conformismo é negatividade pura, isto é, nada e morte, a qual contradiz a vida, a existência e o próprio ser. Isto significa que a liberdade só é algo pelo ser que ela conserva negando-o e a negação só é real como criação do novo ou da obra realizada. O homem revolucionário só se aniquila na medida em que consegue conservar a sua obra negadora, ligando-a à identidade do ser, mantida através da sua negação pela lembrança ou tradição. Para Hegel, a liberdade só se realiza como história. O homem só pode ser livre na medida em que é um ser histórico e só há história onde há liberdade. Ora, se a liberdade revolucionária negadora pressupõe a morte, então só um ser mortal pode ser verdadeiramente histórico. A morte constitui a base última e o móbil primeiro da história: «
A história é o movimento dialéctico da força que mantém no Ser o nada que é o homem. Esta força realiza-se e manifesta-se como acção negadora ou criadora: acção negadora do dado que é o próprio homem, ou acção da luta que cria o homem histórico; e acção negadora do dado que é o mundo natural onde vive o animal, ou acção do trabalho que cria o mundo cultural, fora do qual o homem é puro nada, e onde ele não difere do nada a não ser por certo tempo».
3. Individualidade e Universalidade. Segundo Hegel, só um ser mortal pode ser livre e histórico, aceitando a ideia e a realidade da sua morte e arriscando a vida sem nenhuma necessidade, em função de uma ideia ou de um ideal. O indivíduo é uma síntese do particular com o universal. A particularidade só deixa de ser puramente dada, natural e animal, quando está associada, na individualidade humana, com a universalidade do discurso e da acção. É certo que só a acção particular pode agir, mas age sempre de modo universal quando representa e realiza a vontade geral de uma comunidade ou de um Estado. Isto significa que só como cidadão o homem pode ser verdadeira e realmente universal, embora permaneça particular. A individualidade humana manifesta-se e efectua-se no e pelo Estado, porque é este que lhe atribui uma realidade e um valor universalmente reconhecido. Ora, esta acção pelo e para o Estado implica o risco da vida para fins puramente políticos. Quem se recusa a arriscar a vida pelo Estado perde a sua cidadania ou o reconhecimento universal. Daqui decorre que o homem só pode ser um indivíduo porque pode morrer quando arrisca a vida.
A faculdade da morte é, pois, a condição necessária e suficiente não só da liberdade e da historicidade do homem, mas também da sua universalidade, sem a qual não seria efectivamente um indivíduo. Para Hegel, o ser verdadeiro do homem é a sua acção e a acção é a realização da negatividade que se manifesta, no plano fenoménico, como morte consciente e voluntária, portanto, aceite livremente sem nenhuma necessidade vital. O desejo de reconhecimento é o desejo de um desejo que transcende o dado natural e, na medida em que se realiza numa luta de vida ou de morte, cria um ser humano. O aniquilamento do animal, do ser dado, é a criação do homem que aparece pela primeira vez no mundo dado natural como combatente da primeira luta sangrenta por puro prestígio. Ser homem é, para Hegel, poder e saber morrer. Isto significa que o ser verdadeiro do homem é, em última análise, a sua morte como fenómeno consciente. Como escreve Kòjeve:
«
A realidade humana é, em última análise, a realidade-objectiva da morte: o homem não é somente mortal; ele é a morte encarnada; é a sua própria morte. E, ao contrário da morte natural, puramente biológica, a morte que é o homem é uma morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária. A morte humana, a morte do homem, e, por conseguinte, toda a sua existência verdadeiramente humana são, portanto, um suicídio».
Na dialéctica do Senhor e do Escravo, Hegel mostra que o ser dado, o animal, só se cria como ser humano na luta pelo reconhecimento, no decorrer da qual arrisca constantemente a vida. O ser do homem aparece e manifesta-se como suicídio adiado ou mediatizado pela acção negadora que engendra a consciência discursiva do mundo exterior e de si mesmo. Somente na e pela luta pode o homem criar-se a partir do animal e, deste modo, atingir a verdade do reconhecimento universal. A luta pelo reconhecimento tem, pois, um carácter antropogénico: cria o homem a partir do animal. No fundo, o homem é um ser que se suicida e a sua existência autêntica é uma morte consciente e voluntária em vias de devir. Esta consciência da morte humaniza o homem e constitui o fundamento derradeiro da sua humanidade. Com esta introdução da ideia da morte ou do espírito finito e mortal, Hegel transformou a teologia em antropologia dialéctica. Este tema hegeliano da morte foi retomado por Heidegger que, ao desprezar os temas complementares da luta e do trabalho, ficou impossibilitado de explicar a história. Os temas negligenciados por Heidegger foram tratados por Marx, cuja filosofia da história omitiu a morte e, deste modo, ficou impossibilitada de ver que a revolução é sangrenta, como mostra a concepção hegeliana do terror.
A
filosofia da liberdade de Hegel é uma filosofia da morte, que encara o
suicídio como a «manifestação suprema da liberdade do homem», esse ser que é «morte violenta, ao mesmo tempo consciente de si e voluntária». Ora, dado a morte ser a condição necessária e suficiente da liberdade e da historicidade, da individualidade e da universalidade, num mundo perfeitamente corrupto como o nosso e sem futuro, a não ser continuar a constituir a «reserva de mão-de-obra barata» (Marx) necessária ao sustento e à diversão de uns poucos corruptos e
abusadores do poder, a
morte voluntária constitui a única alternativa capaz de afirmar a recusa da ordem social estabelecida no seu conjunto. Assim, todos aqueles que procuraram a sua própria morte devem ser vistos como a encarnação da
Grande Recusa: preferiram matar-se, em vez de viver uma vida pouco digna. De certo modo, realizaram (negativamente) o sentido da política: suicidaram-se para se livrarem da escravatura e da
democracia cleptocrática que negam à maioria das pessoas uma vida digna e sem angústia. Este sentido político do suicídio é a negação da ordem estabelecida, que, doravante, pode ser avaliada criticamente pelas taxas de suicídio que provoca e desencadeia. Recordar os que morrem voluntariamente é manter viva a sua luta contra a ordem estabelecida. O estudante universitário de filosofia que se imolou em fogo quando viu o seu país invadido pelas tropas russas é o símbolo vivo da resistência contra o poder corrupto.
J Francisco Saraiva de Sousa