segunda-feira, 5 de maio de 2008

Marxismo e Filosofia da Natureza

«O comunismo enquanto naturalismo integralmente evoluído = humanismo, enquanto humanismo plenamente desenvolvido = naturalismo, constitui a resolução autêntica do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem. É a verdadeira solução do conflito entre a existência e a essência, entre a objectivação e a autoafirmação, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É a decifração do enigma da História e está consciente de ele próprio ser essa solução». (Karl Marx)
«Por conseguinte, a sociedade constitui a união perfeita do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo integral do homem e o humanismo integral da natureza». (Karl Marx)
Na sua obra "Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã", F. Engels aponta as limitações da visão mecanicista da natureza, isto é, do materialismo clássico francês:

«O materialismo do século passado (XVIII) era predominantemente mecanicista, visto que nessa época a mecânica, e mesmo assim apenas a mecânica dos corpos sólidos, celestes e terrestres, numa palavra, a mecânica da gravidade, era de todas as Ciências Naturais a única que havia chegado a certo ponto de coroamento. A química existia somente sob uma forma incipiente, flogística. A biologia estava ainda de fraldas; os organismos vegetais e animais tinham sido investigados somente de maneira superficial e explicavam-se por meio de causas puramente mecânicas; para os materialistas do século XVIII, o homem era o que o animal fora para Descartes: uma máquina. Essa aplicação exclusiva do modelo da mecânica a fenómenos de natureza química e orgânica nos quais, embora actuem, as leis mecânicas passam a plano secundário perante outras que lhes são superiores, constituía uma das limitações específicas, mas inevitáveis na sua época, do materialismo clássico francês.
«A segunda limitação específica deste materialismo consistia na sua incapacidade de conceber o mundo como um processo, como uma matéria sujeita a desenvolvimento histórico. Isto correspondia ao estado das ciências naturais naquela época e ao modo metafísico, isto é, antidialéctico de filosofar, que lhe correspondia. Sabia-se que a natureza estava sujeita a movimento eterno. Contudo, segundo as ideias dominantes naquela época, esse movimento fazia-se não menos perenemente, em órbita circular, razão pela qual não mudava de lugar e produzia sempre os mesmos efeitos. Naqueles tempos, essa ideia era inevitável. Mal acabava de ser formulada a teoria kantiana sobre a formação do nosso sistema solar, que era considerada ainda como simples curiosidade. A história do desenvolvimento da terra, a geologia, era ainda completamente desconhecida e na época não se podia estabelecer cientificamente a ideia de que os seres animados que hoje vivem na natureza são resultado de um longo desenvolvimento que vai do simples ao complexo. A concepção anti-histórica da natureza era, por conseguinte, inevitável. Esta concepção não pode ser lançada à face dos filósofos do século XVIII, tanto mais que aparece também em Hegel. Neste, a natureza, como simples “exteriorização” da ideia, não é susceptível de desenvolvimento no tempo, podendo apenas desdobrar a sua variedade no espaço, razão por que exibe conjunta e simultaneamente todas as fases de desenvolvimento que traz no seu seio e se acha condenada à repetição eterna dos mesmos processos. E este contra-senso de uma evolução no espaço, mas à margem do tempo, factor fundamental de toda a evolução, Hegel impõe-no à natureza exactamente no momento em que se haviam formado a geologia, a embriologia, a fisiologia vegetal e animal e a química orgânica, e quando brotavam por toda a parte, com base nestas novas ciências, previsões geniais (como por exemplo as de Goethe e Lamarck), do que havia de ser mais tarde a teoria da evolução. Todavia, o sistema assim o exige e, por respeito ao sistema, o método tinha que se trair a si mesmo».
As três descobertas científicas decisivas que levaram F. Engels a pensar a necessidade de mudança de paradigmas foram: a da célula por Virchow (biologia celular), a da transformação da energia (termodinâmica que aplica à vida, muito antes de Erwin Schrödinger) e a da teoria da evolução de Darwin (biologia da evolução). Segundo Engels, todas estas descobertas científicas e as suas consequências exigem a elaboração teórica de uma nova filosofia da natureza, aquilo a que chama "a concepção dialéctica da natureza", à qual se chega "através da acumulação dos factos da ciência da natureza" e através da "compreensão anterior da consciência das leis do pensamento dialéctico". Com diz Engels em "Anti-Dühring": «Em todo caso, a ciência da natureza está hoje na situação de não poder fugir à síntese dialéctica. A compreensão do pensamento dialéctico facilitará a síntese, desde que não perca de vista que os resultados, em que se resumem as suas experiências, são outros tantos conceitos, e a arte de operar com eles não é nem inata nem dada pelo senso comum ordinário, mas exige uma verdadeira acção do pensamento, que, por sua vez, é possuidor de uma longa história experimental, da mesma forma que a investigação empírica da natureza».
Apesar de criticar o carácter idealista da dialéctica de Hegel, Engels, na sua polémica contra Dühring, abraça claramente a filosofia da natureza de Hegel, sobretudo quando retoma o seu princípio da "mudança da quantidade em qualidade", mais precisamente do “salto qualitativo”, reconhecendo na natureza uma análise qualitativa cabalmente anti-mecanicista: «Este movimento mecânico não esgota o movimento em geral, porque o movimento não é simplesmente mudança de lugar, mas também é, num plano supramecânico, mudança de qualidades». Na sua obra "Dialéctica da Natureza", infelizmente inacabada, procura mostrar que «a dialéctica despojada de misticismo se converte numa necessidade absoluta para a ciência da natureza», sem esquecer a "interacção recíproca" que a caracteriza ao longo da sua história: «Numa palavra, o animal apenas utiliza a natureza exterior e provoca nela modificações apenas pela sua presença; por seu lado, o homem transforma-a para que ela sirva os seus fins: domina-a (através do seu trabalho)». Ora, Engels refere muitos exemplos que mostram que esta dominação da natureza nem sempre termina com "vitórias sobre a natureza": a natureza é "imprevisível" e, quando "massacrada", pode "vingar-se" e "revoltar-se contra o homem".
A "síntese dialéctica" da natureza corresponde no momento presente à moderna "visão ecológica da natureza" ou "síntese ecológica". No seio do marxismo, esta nova filosofia da natureza foi elaborada por Ernst Bloch e implica aquilo a que tenho chamado uma "nova política de autenticidade" baseada na "ascese espiritual do homem". Para evitar a devastação da natureza e a própria auto-destruição do homem, a ascese deve ser vista e vivida como aperfeiçoamento espiritual constante que cure e imunize o homem da "tirania do consumismo". Trata-se, portanto, de introduzir a ascese no interior da filosofia que visa "a transformação do mundo" (Marx) e a realização da utopia da "pátria da identidade" (Bloch): viver em conformidade com a natureza. Com esta noção, pretendemos desviar a noção de "progresso" da economia capitalista/domínio técnico da natureza para o plano do aperfeiçoamento espiritual do indivíduo enraizado na natureza e na sua comunidade. Isto significa que a noção de progresso pode ser retomada como aperfeiçoamento do indivíduo: libertá-lo da via consumista e destrutiva.
A crise ecológica é crise antropológica: o desenvolvimento da mente é o antídoto contra a estupidez e a indigência cognitiva predominantes nas sociedades capitalistas tardias. Bloch fornece uma nova noção de cidadania do mundo e da terra, a qual implica uma revolução silenciosa contra os poderes estabelecidos. Uma forma radical deste marxismo ascético seria a recusa de viver nas grandes cidades e recolher-se ou refugiar-se em pequenas aldeia ecológicas, tendo por objectivo o exercício diário do aperfeiçoamento do espírito em "conformidade com a natureza", de modo a retomar o velho ideal da "vida justa" dos gregos: a sabedoria. A noção de "fortaleza da alma" de Marco Aurélio reconduz à noção de "fortaleza vazia" de Bruno Bettelheim: o "autismo" encarado aqui como "alheamento do mundo". Tal como sucedia nos campos de concentração nazis, embora de modo não voluntário, os homens consumidores de hoje são seres "sem-abrigo" ou "sem lar": a sua fortaleza interior está completamente vazia e apátrida, como dizia Heidegger pensando talvez em Rilke.
Leitura recomendada: A minha amiga Denise esta a escrever uma série de posts sobre literatura infantil. É a resposta a um desafio que lhe tinha colocado e, neste post, destaca a importância da oralidade para a formação das crianças.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Com este post, pretendi recuperar a obra de Engels do esquecimento e dar-lhe vida nova. É evidente que o conceito marxista de natureza é muito complexo, mas a utopia da pátria da identidade está presente desde cedo no marxismo, como comprovam as citações em epigrafe.
Para todos os efeitos, Engels associa mecanicismo à ideologia burguesa e ao capitalismo, e parece exigir uma nova visão e relação com a natureza: a natureza viva como pátria do homem. Haverá quem critique o antropocentrismo, mas não há maneira de lhe escapar e, mesmo que houvesse, ninguém lucraria com tal perspectiva.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O capitalismo não explora somente o homem; explora também a natureza e apropria-se da natureza de modo a privar a maioria dos homems da sua pátria natural: externa e interna. A natureza é propriedade dos capitalistas. Daí a miséria humana... Apropria-se da natureza para se apropriar da força de trabalho humana: capitalismo é destruição total!

Denise disse...

O Francico é imparável!
Umas linhas apenas para lhe dizer que o acompanho na leitura atenta dos seus posts mas que não consigo, neste momento, ter um tempinho para comentar...
E, ainda, agradecer a recomendação de leitura.

Um abraço e boa noite!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Denise

Comente apenas se o quiser fazer; se não lhe apetecer, não comente.
Já estou a preparar a iniciação geral da estética da recepção.

Cumprimentos