domingo, 4 de maio de 2008

Movimento dos Sem Terra

O Manuel Rocha tinha desafiado o André LF: "E aqui fica um desafio ao André, lá no outro lado do mar (Brasil), para que nos mande para publicação aqui no nosso espaço a sua perspectiva sobre esta matéria a partir do caso do movimento "sem-terra". E eis a resposta do André LF:
Atravessando sozinho o deserto, carregando-se a si próprio sem qualquer apoio transcendente, o homem de hoje caracteriza-se pela vulnerabilidade. A generalização da depressividade deve ser atribuída não às vicissitudes psicológicas de cada um ou às “dificuldades“ da vida atual, mas sim à deserção da res publica, que varreu o terreno até a emergência do indivíduo puro." (Gilles Lipovetsky)
"Os mortais moram quando recebem o céu como o céu, deixam à lua e ao sol a jornada que lhes é própria, deixam às estrelas o seu percurso e às estações a sua benção e sua inclemência; não transformam a noite em dia e nem o dia numa frenética agitação." (Martin Heidegger)
Amigos, redigi um breve texto, sem pretensões de realizar uma profunda análise sociológica, uma vez que não tenho tais conhecimentos e não conheço detalhadamente a história do Movimento dos Sem Terra (MST). Restrinjo-me, portanto, a reunir reflexões esparsas e espontâneas sobre o assunto proposto pelo Manuel.
As raízes do MST são antigas, uma vez que o problema da ocupação territorial e da reforma agrária existe desde os primórdios da nossa história. O Brasil, desde a sua descoberta, foi considerado uma terra que deveria ser ocupada para não ser perdida. Estabeleceu-se aqui uma colonização predominantemente exploratória.
Diante desse contexto, é natural que surgissem movimentos contrários à colonização exploratória e à ocupação territorial desmedida. O MST enquadra-se nesta trajetória.
Aos poucos o Movimento dos Sem Terra estabeleceu alianças com grupos religiosos e partidos políticos (PT) e as suas ambições se ampliaram. Como acontece em muitas organizações populares, os indivíduos do grupo dotados de maior visão estratégica e discernimento tornaram-se uma espécie de déspotas do Movimento. A maioria dos integrantes do movimento é constituída por pessoas paupérrimas, andarilhos, mendigos, desempregados, enfim, todos aqueles que compõem o grupo dos excluídos. Esta massa de párias obedece aos déspotas do movimento. Estes lhes dão as mais variadas ordens, muitas delas de extrema violência.
Há uma espécie de glamour em torno das ações do MST. Na faculdade vi muitos alunos bem nascidos e bem alimentados usando camisetas do grupo. Indagados sobre o porquê de tal indumentária, eles afirmavam: "Ah, acho bonito o símbolo do movimento. Eles lutam por ‘coisas justas'". Em tais comentários manifestam-se a ausência de senso crítico e o fetichismo que incensa o movimento dos sem terra.
Os objetivos do MST são variados e englobam desde a luta pela reforma agrária até a busca voraz por poder político. Seus líderes têm ampla influência política, muitos são membros do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual teve ampla participação na organização das bases do MST.
Sem dúvida, a luta pela reforma agrária é necessária. Entretanto, a meu ver, as falhas do MST residem nas ações que legitimam a sua ideologia. Freqüentemente, um grupo de bandoleiros, ordenado por líderes do movimento inebriados pelo poder, recorre a práticas violentas e manifestamente ilegais: esbulhos possessórios, ocupação violenta, assassinatos, práticas de guerrilha, etc.
Considerando-se as práticas controversas do MST, tem-se uma vaga idéia da relação problemática dos brasileiros com a terra. A nossa representação da natureza é muito complexa e ainda não recebeu a devida análise.
Nas conversas com amigos e conhecidos, é comum ouvir o relato de um sentimento de “desenraizamento”, de uma dificuldade de encontrar “a morada” e o temor de nunca achar o lar desejado. Nutrimos uma nostalgia por uma pátria desconhecida, uma espécie de Canaã que nunca será descoberta e habitada. Daí talvez uma das razões para o conhecido nomadismo do brasileiro. Certamente tais sentimentos se devem, em certa medida, aos efeitos da miscigenação que constitui o povo brasileiro e às marcas deixadas pela colonização. Não temos uma identidade nacional bem definida. Apesar das inúmeras tentativas, ninguém conseguiu explicar a nossa relação com a terra e com a morada.
Como nos mostrou o Francisco, na "Carta a el-rei dom Manuel sobre o achamento do Brasil a 1 de Maio de 1500" de Pêro Vaz de Caminha, a representação portuguesa da natureza expõe-se nestes termos: "pródiga e edénica, boa para viver, boa para pilhar, paraíso e aventura". Ouso dizer que esta representação portuguesa da natureza é compartilhada por muitos brasileiros, entre os quais os integrantes do MST. Ocupar a terra para subjugá-la. Trata-se de uma relação extremamente patriarcal. A Terra, a mãe de todos nós, é maltratada pelos invasores, independentemente de suas ideologias. O morar autêntico, de que fala Heidegger, está ligado à preservação e ao cuidado. E este preservar não é apenas não causar danos a alguma coisa. O preservar autêntico tem uma dimensão ativa, positiva, e se concretiza quando deixamos algo na paz de sua própria natureza, de sua força originária (Gelassenheit, deixar-ser). Na doutrina de Mestre Eckhart, a palavra Gelâzenheit, do alemão medieval, ocupa um lugar central. Segundo Schürmann, Gelâzenheit designa “a atitude de um ser que olha os objetos e os acontecimentos não mais segundo sua utilidade, e aceita-os em sua autonomia. Tal atitude renuncia às influências e traz equanimidade da alma. Assim, pode-se traduzir esta palavra por conformação e por serenidade. As duas palavras falam de um desabituar-se a possuir as coisas e a se possuir. Lâzen, lassen, significa ‘deixar’, ‘restituir a liberdade’, e ‘desatar’. [...] Aquele que aprendeu a ‘deixar ser’ restitui todas as suas coisas à sua liberdade primitiva, devolve todas as coisas a elas mesmas. Ele desaprendeu a sujeitá-las a seus projetos, ele se despojou de toda afirmação de si, na qual o estorvam a curiosidade e a ambição”. Penso que neste belo trecho de Schürmann se delineiam aspectos de uma relação autêntica estabelecida entre o homem e a natureza. Quando observamos as ações predatórias do ser humano sobre a natureza - e aqui também se incluem muitos membros do MST - fica patente a nossa incapacidade para o morar autêntico. Aliada à necessidade de uma educação para o morar autêntico, apresenta-se, de acordo com Francisco, a idéia de criar uma nova política: “a política de autenticidade baseada na ascese espiritual do homem. Contra o predomínio das ciências sociais e humanas, a ascese vista como aperfeiçoamento espiritual constante pode ser o antídoto, isto é, a cura e a libertação do homem da tirania do consumismo”. Esta iniciativa é muito pertinente.
Para terminar estas breves viagens, reproduzo as palavras de Nancy Mangabeira Unger:
O desenraizamento do homem contemporâneo, que se manifesta no plano de sua vivência como ser social, remete a uma condição mais essencial. Destituído de caráter simbólico, seu mundo não se constitui como alteridade nem permite o diálogo. Sob o comando da vontade de poder, sempre hegemônica, da recusa do sagrado, da necessidade compulsiva de reduzir a natureza e outros homens à condição de objetos de sua ganância, ele perde simultaneamente a noção de seu lugar no universo e o contato com as potencialidades constitutivas de sua humanidade. Por isso vive um desenraizamento de sua própria natureza humana. Distante de si e sem continente que lhe dê abrigo, o homem contemporâneo é, em diversos sentidos, o sem-terra”.
Este texto é da autoria do André LF.
Anexo: O André LF refere "A Carta de Pêro Vaz de Caminha", de resto um título da obra imensa e luminosa de Jaime Cortesão. Este historiador da nacionalidade democrática portuguesa estudou o descobrimento ("A Expedição de Pedro Álvares Cabral e o Descobrimento do Brasil") e a colonização do Brasil ("A Colonização do Brasil" e "História do Brasil, 1500-1799", entre outras obras dedicadas às Descobertas Portuguesas e ao Brasil). No ensaio "O Franciscanismo e a Mística dos Descobrimentos", Jaime Cortesão conclui: Os franciscanos «foram os principais criadores da mística dos Descobrimentos. Aproximando o homem da natureza e substituindo um ideal contemplativo e de aspirações extraterrestres por um cristianismo amorável e pragmático, o franciscanismo dissipou a sombra de maldição e terror que pesava sobre a vida e sobre a Terra, e abriu caminho à marcha do homem no Planeta.
«Graças a São Francisco e aos seus colaboradores, o cristianismo revelou nos últimos séculos da Idade Média uma vitalidade e um poder de evolução capazes de encaminhar e transcender as transformações económicas e sociais que os povos europeus acabavam de sofrer, dando às aspirações na esfera utilitária um prolongamento sublime no mundo dos sentimentos e das ideias». Outra obra de Jaime Cortesão que merece ser meditada é "Portugal: a Terra e o Homem".

30 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Adorei o seu texto sobre o movimento dos sem-terra.

Bruce V. Folt tem um belo livro sobre "Habitar a Terra: Heidegger, Ética Ambiental e a Metafísica da Natureza".

Se quiser alterar alguma coisa diga!

André LF disse...

Obrigado, Francisco! Escrevi o texto às pressas. Levei um susto quando o vi publicado no seu post :)
Reelendo o texto, notei nele um pouco de desorganização. Se quiser alterá-lo ou ampliá-lo esteja à vontade.
Fiquei feliz por vc gostar das minhas viagens!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Dei os título MST, mas se desejar ainda pode ser mudado. O Manuel vai ficar radiante, porque também está a escrever um post sobre o assunto. :)

André LF disse...

O título está bom! Estou ansioso pelo texto do Manuel!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Manuel deve estar a jantar.

A língua portuguesa é muito filosófica, ao contrário do que pensa a Borboleta. Morar, cuidar, habitar, terra (muitos sentidos), residir, enfim a distinção entre ser e estar: boas palavras para elaborar uma filosofia da natureza em português.
Depois do jantar comento melhor o seu post.

André LF disse...

Francisco, escrevi "ainda" duas vezes :)
"A nossa representação da natureza é muito complexa e ainda não recebeu ainda devida análise".
Ao retratar os atos dos integrantes do MST, não escondi a minha opinião sobre eles.
Certamente se algumas pessoas do PT ligadas ao MST lessem o meu texto, tentariam me lapidar. Na versão delas, o que eu chamo de excessos e práticas terroristas, são na realidade ações necessárias ao estabelecimento da Justiça Social :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já corrigi..., e coloquei em negrito alguns conceitos.

André LF disse...

Ok, obrigado!

André LF disse...

Também acho a língua portuguesa muito filósofica. Até hoje não compreendi os argumentos da Papillon sobre a ausência de conteúdo filosófico do nosso idioma. Acho a língua portuguesa muito mais expressiva que a inglesa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Desactivei a moderação dos comentários, em caso de surgirem o Manuel, a Denise ou a Papillon. Assim, podem dialogar e o André responder na "hora".
Também acho: o inglês é uma língua relativamente pobre. Penso que a Papillon defende a ideia de que nunca seremos capazes de produzir uma filosofia (original, genuína)em língua portuguesa. Contudo, a língua foi marcada pela filosofia, mesmo sem termos um filósofo/astro.

Manuel Rocha disse...

Pôxa, André, que você é rápido pra caramba a despachar "encomendas"!

:)))

Meu Caro,

Foi um gosto este seu texto. Sinceramente, acho que temos que poetenciar estas experiências.

Considero que agarra muito bem a essência da questão do desenraizamento subjacente ao MST e deixa-o muito bem ligado aos oportunismos politicos que sempre parasitam do drama social associado a estas questões.

Deixo uma questão complementar: qual a sensibilidade que existe entre vós sobre as politicas que têm vindo a ser seguidas em contexto MST, nomeadamente a entrega de parcelas para agricultura ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Li com mais atenção e recordo de ter visto um documentário sobre o movimento dos sem terra. É claro que à primeira vista fico preocupado com o futuro da floresta da Amazónia, mas, por outro lado, reconheço que as pessoas têm direito à terra: a reforma agrária. Mas o André coloca um outro problema: o aproveitamento político e ideológico do movimento e, neste aspecto, revelam-se os interesses que movem os lideres do movimento.
Estes poucos enriquecem, o resto (a maioria) fica sem nada.
Concordo consigo quando menciona a miscigenação como um factor problemático na formação da identidade nacional brasileira. Talvez fosse melhor inventar novas políticas e sensibilizar as pessoas para os problemas ecológicos, em especial o excesso demográfico. De certo modo, as culturas índias souberam coexistir com a floresta sem a destruir: a escola de Darcy Ribeiro tem estudos sobre essa adaptação ecologicamente sustentável. Apenas acrescento que morar sobre a Terra significa salvar a Terra. A Terra deve ser vista e vivida como Pátria e as políticas do ambiente devem fundar-se nesta noção.

André LF disse...

Manuel, fico muito contente por vc ter gostado do texto. Normalmente, não sou rápido para entregar encomendas :) Já disse uma vez ao Francisco que entre os pecados capitais dos brasileiros estão a Preguiça e a Desorganização. Hoje travei uma batalha com estes demônios da alma e, à minha maneira, os venci. O motivo da rapidez foi o interesse que a sua questão me despertou. Reconheço que deixei de analisar diversos pontos do assunto em questão. Conto com a contribuição de vcs!
Acho muito valiosos os debates que ocorrem nesta Ágora Virtual! Vou refletir sobre a questão que vc coloca.

André LF disse...

Francisco, vc percebeu bem a minha preocupação. Fico muito triste quando interesses políticos perniciosos se insinuam em movimentos populares.
A miscigenação nos traz muitos problemas, entre eles a dificuldade de reconhecer a identidade nacional.

André LF disse...

Grato pela inserção do anexo, Francisco. Não fui muito cuidadoso nas minhas citações.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Fiz um anexo para divulgar a obra de Jaime Cortesão. Infelizmente não encontrei a "Carta", ou melhor, essa obra do historiiador português que tem esta obra "A Fundação de São Paulo: Capital Geográfica do Brasil"...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Só encontro 6 obras das Obras Completas de J. Cortesão. Já tinha perdido a consciência das obras dedicadas ao Brasil. Era médico, humanista, literato, historiador e um apaixonado pela natureza.

André LF disse...

Francisco, as obras de Cortesão que vc não encontrou estão esgotadas?
Vou procurar alguma obra dele nas bibliotecas da minha cidade.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Um amigo enviou-me um email, cujo conteúdo é este: "Os jornalistas do jornal A Bola precisavam de rever a sua geografia! Agora "Lordelo do Ouro", freguesia portuense, mudou-se para o Algarve! Haja Paciência!".
De facto, já não há paciência para tanta ignorância activa!

André LF disse...

Ele tinha uma formação muito ampla. Atualmente é muito raro encontrar pessoas com interesses variados. O excesso de especialização está matando o pensamento criativo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Com excepção dos "Descobrimentos Portugueses" e dos "Factores Democráticos", receio que devam estar esgotadas e logo quando se comemora o Brasil...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo: a especialização mata a criatividade! Mas talvez apenas nos nossos países, porque noutros as universidades fomentam e facilitam essas incursões transdisciplinares...

André LF disse...

Pensei que as incursões transdiciplinares estavam a ser varridas do globo. Fico feliz em saber que ainda existem locais em que o pensamento floresce sem amarras e cabrestos.

André LF disse...

Vou visitar a minha avó. Espero encontrá-los aqui ainda hoje :)

André LF disse...

Sempre me esqueço das diferenças de horário. Aí já é quase meia noite. Bom, boa noite, amigos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Apesar de nós, portugueses, nos deitarmos tarde. Por isso, os pais da Maddie MccCain dizem que existem "grandes diferenças culturais" entre portugueses e ingleses: eles deitam as crianças às 7, 7:30, e deitam-se por volta das 23:00. Ora, nós madrugamos...
Boa noite!

E. A. disse...

Boa noite!

Gostaria de dizer que eu também sou uma desterrada, dado ter nascido alegre numa capital que canta a tristeza. Sou sem-terra e, por tal, o meu estado natural é o êxodo, ou em busca da terra prometida.
Encontrei um pequeno paraíso, este fds, meus senhores! O meu sorriso de mona lisa, revela estado de graça. :)

Well, back to reality!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Papillon

Vejo que vem feliz!
Este post é do André LF.

E. A. disse...

Não venho feliz, venho renovada.
O André deveria ter um blog!

Bem, muita coisa para fazer... bye bye

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo: o André devia ter um blogue!