«E sou eu que tenho que dar a verdadeira explicação das Elegias? Elas ultrapassam-me infinitamente». (Rainer Maria Rilke) «Os meus poemas têm o sentido que se lhes dê». (Paul Valéry) «A obra literária faz apelo, de um modo essencial, à leitura». (Hans-Georg Gadamer) O conceito predominante destas divagações nocturnas é fractura: a fractura originária, a "dor originária" (Rilke), que aqui "identifico" com o Vale do Rift: a fractura da crosta terrestre que deu origem ao homem, esse ser fracturante nascido de uma fractura da Terra, que o obrigou a pôr-se de pé e a caminhar em frente. Como escreveu Yves Coppens: «A "espuma da Terra" é que teria propiciado o "Homem neuronal" (Jean-Pierre Changeux), esse Homem que apareceu porque a Terra se fracturou, porque o clima secou». O poema de Rilke que desencadeou estas divagações nocturnas diz: "Oh como tudo está longe
e há tanto tempo passado.
Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar.
E uma, de entre todas as estrelas,
havia de existir ainda na verdade.
Creio bem que saberia
qual delas foi que durou
sozinha,
qual, como cidade branca,
está no extremo do raio nos céus..." A Oitava Elegia de Duíno de Rainer Maria Rilke compara o modo de ser do homem que sai do ventre materno para viver de frente até à morte, e o modo de ser do animal que vive na eternidade, porque não saiu do seio. A Elegia termina com este verso: "Assim vivemos nós, sempre a despedir-nos" ("So leben wir und nehmen immer Abschied").
O nosso "destino" humano é estar em frente e sempre em frente. Somos seres conscientes e, por isso, ocorre a fractura entre sujeito e objecto. Esta fractura obriga-nos a estar sempre em frente do mundo, embora nascidos do ventre materno, e, não como sucede com os animais, no seio do mundo. Temos consciência de sermos mortais. A morte pertence-nos: a nossa própria morte. Estamos de tal modo familiarizados com esta atitude de estar em frente que tememos deixar estar em frente: tememos a nossa perda no seio do mundo. Como mortal, eu temo-a e muito, mas sou ser lançado em frente, sempre em frente, e erguido: observo o que me rodeia, com os olhos voltados para o futuro, ao mesmo tempo que algo atrás nos retém no passado, mas num passado despedido, constantemente despedido.
Heidegger não apreciava essa atitude humana de estar em frente: viu nela o espírito da ciência e da técnica, o domínio da natureza. Porém, a leitura de Heidegger é simplesmente uma leitura de Rilke. Talvez a leitura de Heidegger seja a mais adequada para dar sentido ao mundo dos povos selvagens, embora Rilke pareça não fazer uma distinção entre dois modos de ser humano. Como ser em risco, o homem não tem abrigo e, se o deseja ter, tem de o criar. Criar um abrigo, mesmo que passageiro, implica estar de frente e agir. O abrigo conquista-se nessa luta em que o homem se arrisca, consciente de poder perder a vida a qualquer momento. A consciência da nossa mortalidade é consciência do Tempo. O Tempo é o Grande Risco e, no "pedaço" que nos pertence, "nesta triste duração" (Rilke), estamos sempre a arriscar, arriscando a nossa própria vida. De certo modo, o Aberto de Rilke não significa somente poder viver a plenitude do presente, que é a plenitude da eternidade em que vive o animal. O Aberto menciona negativamente, no plano do homem, a "ausência" de "destino" ou, pelo menos, a impossibilidade de viver, num eterno presente, dentro do mundo e em fusão com o mundo. Uma vez saídos do ventre materno, tudo nos pode acontecer e estamos sempre em risco: a nossa acção e os seus efeitos escapam-nos ao controle. Devemos estar erguidos, de pé, com olhar circunspecto, vigilante e voltado para o futuro, porque a morte é sempre certa: somos seres "efémeros" (Rilke).
Se a dor é fenda, fractura, dilaceramento, então o homem é ser dorido/sofrido/fracturado: os homens são "os perdulários de dores" (Rilke). Esta é a nossa condição de mortais. Estar de frente é ser ao modo de ser da fractura originária e esta não é somente a fractura interior/exterior, sujeito/objecto, mas também a fractura que atravessa a nossa própria espessura interior. Corremos o risco de fractura total em diversas frentes. Somos seres fracturantes: a vida efémera é a luta em que o homem se arrisca sem garantia fundamental a não ser a da morte certa. O seio em que o animal vive mergulhado na "imediatez" do presente é vivido fugazmente pelos homens durante os momentos de paixão, mas estes momentos são milésimos de segundo numa vida consagrada à fractura e, portanto, em risco permanente e sempre condenada à morte. Donde vem a Relação ao homem? O universo poético de Rilke começa a estremecer: a fissão é apenas uma modalidade de ser fracturado. Há outra modalidade de ser fracturado: a fusão, mas ambas se banham e se fundam na fractura originária, a que funda o humano mortal. Nessa fractura que somos, podemos tomar uma decisão/resolução: adiar constantemente a morte em atitude circunspectiva e ex(s)pectante ou antecipar a morte que nos acompanha: fugimos do "destino certo" ou ansiamos por ele, sabendo que a vida não tem sentido e que é absurda (Rilke). Nessa pequena mas dolorosa decisão/resolução reside toda a nossa liberdade. Somos seres que adiam a morte autêntica: aquela morte "heróica" (Rilke) que resulta da nossa própria decisão. Somos mortos adiados: "os infinitamente mortos" (Rilke). Por isso, como mortal, fora, completamente fora... de mim, eu estou. Afinal, sou um ser fracturante! O poema de Rilke diz:
"Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar." O poema revela no seu último verso donde vem a Relação: "Gostava de rezar" "debaixo do céu imenso". Como os poetas são seres tão simples! Também Guerra Junqueiro o sabia. Anoitece a carne, amanhece o espírito! O espírito azul... E, com este anoitecer azul do espírito, despeço-me dos laços virtuais fracturantes. Visto-me de noite e noite profunda eu sou, o fundo da meia-noite onde o azul aparece na sua azulidade, aquela que anseia pelo ainda não-nascido. Aliás, abriga o não-nascido. Isso mesmo: a-briga o não-nascido. Nada está destinado ao ser fracturante, de resto o ser "solitário" (Rilke) que passa pela vida "em despedida sempre". Como diz o poeta:
"Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou".
Ou o poema de Georg Trakl:
«Da sombra de um sopro nascidos,
Erramos pelo mundo abandonados
E andamos no eterno perdidos,
Sem sabermos a que Deus consagrados.
«Pobres néscios à porta, ao relento,
Pedintes sem nada de seu,
Quais cegos escutando o silêncio
Em que o nosso rumor se perdeu.
«Somos os viandantes sem norte,
Nuvens, e o vento a dissipá-las,
Flores estremecendo com o frio da morte,
À espera que venham cortá-las». (Leia este post sobre a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, o mestre da Escola de Konstanz da Teoria da Recepção: H. R. Jauss e W. Iser.) J Francisco Saraiva de Sousa
35 comentários:
Limitei-me a editar as divagações feitas na caixa de comentários do post anterior, e os comentários da Papillon. O conceito predominante é fractura: a fractura originária, a "dor originária" (Rilke), que aqui "identifico" com o Vale do Rift: a fractura da crosta terrestre que deu origem ao homem, ser fracturante nascido de uma fractura da Terra, que o obrigou a pôr-se de pé e caminhar em frente.
Por que é que publicou os meus comentários?
Bom, vou almoçar.
Ficou zangada por ter publicado? Então retiro, se quiser. Editei porque clarificam algumas ideias.
Whatever. O que fica aqui é seu.
Cheguei agora ao Porto. Que saudade do Porto! :)
Papillon
Não me aproprio dos textos dos outros: os comentários que editei em post são seus, tal como já eram seus quando os colocou na caixa de comentários do post anterior. São diálogos...
A Liga Portuguesa de Futebol é uma vergonha mundial!
Papillon, não fique brava!
Comentários poéticos e inspirados como o seu merecessem publicação. Além de ter bom gosto, o Francisco é muito honesto em relação às fontes que ele cita :)
Francisco, por que a liga Portuguesa de Futebol é uma vergonha mundial?
Quis dizer "merecem".
Graças à bronquite crônica que me acometeu, tenho dormido mal e, consequentemente, pensado com dificuldade :(
O sistema público de saúde brasileiro é lastimável. Achar um médico humano e competente é tarefa árdua.
Vou tentar agora uma odisséia em busca de um bom tratamento.
André
A Liga quer punir os clubes da cidade do Porto.
Espero que tenha melhorado da bronquite.
Escrevi isto ontem; hoje estava para melhor o trabalho dos conceitos, mas estive fora e agora não me apetece. Faço isso com tempo.
Eu n disse q se tinha apropriado. Pôs palavras na minha boca - virtual - q eu n proferi. Apenas acho q os comentários devem ser aquilo q são.
N estou brava, André.
Papillon
A razão do equívoco está resolvida: Peço desculpa por ter colocado os seus comentários.
Não vale a pena estarmos a discutir esse assunto. Peace and love. :)
Espero que o André tenha vencido "a (sua) odisséia em busca de um bom tratamento" para a bronquite.
Sim, n se preocupe, n gosto de discutir por motivos vãos.
Aqui tb é difícil arranjar médicos competentes. Comungo com o André e desejo-lhe boa sorte e as melhoras.
Estive a ver "A Marquesa de Sade" do Bergman... já n "tocava" em Sade há anos! É sempre bom regressar aos velhos ídolos da adolescência. :)
Hummmm... A Papillon está a sentir-se "sádica"? Qual a razão desse interesse por Sade?
André LF disse...
Amigos, obrigado pelos votos de melhoras.
Vivi hoje uma situação tragicômica. Fui a um posto médico (sistema privado de saúde, uma vez que o público é sofrível) considerado um dos melhores da minha cidade. Assim que me viu, o médico, um rapaz imberbe e de olhar apatetado, fez-me perguntas vagas e completamente fora do contexto clínico. Auscultou brevemente os meus pulmões e pediu para que eu me submetesse ao exame de Raios-X dos pulmões. Quando lhe entregaram as chapas dos meus pulmões, o médico olhava para elas como se estivesse diante de um OVNI. Ainda sim, para não evidenciar a sua ignorância, ele me disse "é a situação é grave e é melhor o senhor procurar um especialista (!)Pode ser pneumonia". Pode ser!
Em seguida, prescreveu-me um antibiótico muito forte, sem saber qualquer era a minha enfermidade...
Não entendo como um sujeito que leva mais de 10 anos para se tornar médico não consegue sequer chegar a um diagnóstico preciso. Paga-se um preço muito alto para se receber um tratamento desta qualidade... Resultado: Terei de procurar algum pneumologista competente. A busca por médicos competentes é realmente uma odisséia. Acho que até Ulisses enlouqueceria.
André
Estranho como ele não soube dizer se era pneumonia ou não! De facto, uma história estranha! Talvez o antibiótico o ajude. Mas consulte outro mais competente. Se tivesse aqui não sairiam do Hospital sem diagnóstico e, se suspeitassem de pneumonia, ficaria internado para observações mais cuidadosas e tratamento. Mas acredite na sua estrela: pode ser a estrela da verdade (Rilke).
Afinal, acabei por modificar a versão original sem lhe roubar a improvisação nocturna que lhe deu origem. Abraço para todos e bons sonhos.
Bons sonhos! Acreditarei na minha estrela!
Bem, esse tipo de dedução - Sade, sadismo/sádico - é um pouco básica, n lhe parece? ;)
Vejo que não entendeu o jogo irónico das palavras! Bom Dia!
O jogo "irónico" do Francisco "ultrapassa-me infinitamente". ;)
É bom sermos ultrapassados/superados infinitamente: sinal de que as coisas avançam. O pior é quando não nos ultrapassam, por estarem prisioneiros da indigência cognitiva, com o espírito intoxicado no álcool, como sucedeu ontem na Queima das Fitas!
Ui! A queima das fitas do Porto! Recordações! Mas das boas! Muito alcoól, mas muito riso e alegria tb. Lembro-me que naquelas duas noites nem concertos vi, nem sei quem tocou! Eu e os meus amigos portuenses n saíamos das barraquinhas...
Já sabe que é assim! N há nada a fazer!
Ai! Enganei-me no acento do "álcool"... reminiscências de noites loucas, queimam-se os neurónios e depois é isto.
Somos um Trauma: o homem é um trauma. A antropologia é traumatologia. :)
Sim, somos esburacados, diz Lacan -"troumatique".
Afinal, a ontologia é um buraco esburacado! Ou onto-trauma-logia.
A Tia Adoptada tem razão: as frases em epigrafe antecipam ou apontam para uma estética da recepção! :-)
Mas a Tia Adoptada mais parece um OVNI... Ah, ah, ah, ah...
Piu piu piu piu...
Ok vamos piar e picar a Liga Portuguesa de Futebol e seu Hermínio Loureiro, o "justiceiro" daqueles que não conseguem ganhar um jogo de futebol no campo, com as patas traseiras...
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