terça-feira, 26 de outubro de 2010

Prós e Contras: Testamento Vital - A Escolha

«Não são os deuses, não é a natureza, é o homem somente que é capaz de ser esta potência estranha que oprime o homem». (Karl Marx)

«A desvalorização dos homens aumenta na razão directa da valorização dos objectos». (Karl Marx)

O debate Prós e Contras de hoje (25 de Outubro) em torno do testamento vital não seduziu os meus neurónios e as suas inter-ligações: as diversas perspectivas partidárias de legalização do testamento vital e as respectivas fundamentações retóricas soaram-me a uma única proposta pornograficamente indecente, até porque se socorreram da retórica mais desumana e cruel: a ideologia nefasta e decadente dos direitos humanos que tem ajudado a cometer os maiores atentados contra a dignidade dos oprimidos e as mais terríveis atrocidades contra a humanidade dos homens. Maria de Belém Roseira (PS) tende a reduzir todos os assuntos políticos a uma questão de direitos humanos, apesar de já ter reconhecido - num frente-a-frente de Mário Crespo - a imensa hipocrisia que é uma tal política feita em nome dos direitos humanos. Rui Nunes e Laura Ferreira dos Santos reforçaram o carácter necrófilo do testamento vital. Em nome de um princípio de autonomia adulterado e/ou de um direito à morte (sic), os defensores entusiastas (Maria de Belém Roseira, Rui Nunes e Laura Ferreira dos Santos) ou reservados (Daniel Serrão, Filipe Almeida e Isabel Galriça Neto) do testamento vital querem conceder aos cidadãos portugueses, enquanto adultos capazes, o direito de escolher antecipadamente uma morte supostamente digna no caso de se tornarem sujeitos incapazes. O testamento vital é, em última análise, um testamento mortal, com consentimento informativo prévio do desgraçado que se tornou desperdício inútil - não-lucrativo - para a sociedade. Num acto irreflectido de antecipação da desgraça certa, o homem delega a sua pequena e miserável autonomia ao procurador dos cuidados de saúde que o despacha logo que se torne um desperdício para a economia capitalista. Com o consentimento informativo, a autonomia anula-se e afunda-se "consciente e livremente" na heteronomia absoluta. A proposta parece ser inocente mas não tem nada de inocente: conceder uma hipotética morte digna a quem não teve oportunidade de ter uma vida digna é uma atrocidade. A dignificação artificial da morte é feita à custa de uma vida irremediavelmente perdida para a realização da humanidade dos homens, cujas vidas reais foram danificadas pelo sistema de corrupção nacional: a autonomia conquista-se durante a vida e não na morte. Conceber para um ser mortal o direito à morte é, de facto, um jogo de palavras pornograficamente indecente que visa justificar um pensamento político dominante que começa a ganhar forma visível no Ocidente decadente. As classes privilegiadas começam a abrir as portas à legalização imoral da solução esquimó: despachar os doentes desenganados, os doentes terminais ou os idosos degenerativos - ou não - que sobrecarregam a segurança social, levando-os a desejar conscientemente a própria morte. Perante esta proposta de programação burocrática e legal da morte que é o testamento vital, a eutanásia é absolutamente limpa, porque não abre as portas à programação totalitária da morte. O salto civilizacional defendido por Laura Ferreira dos Santos é um salto para a morte total: o seu pensamento vingativo é cúmplice da crueldade dos carrascos nacionais. O final deste debate em torno do testamento vital revelou todas as suas fragilidades, incongruências, mentiras e irracionalidades, neste momento de crise nacional profunda: o sistema nacional de saúde está a ser paulatinamente assaltado pelos banqueiros especulativos que o encaram como fonte garantida de mais-valias chorudas. A morte e a agonia do moribundo estão a tornar-se uma indústria lucrativa, com o aplauso desse monstro necrófilo que é a bioética na sua aliança fatal com o direito do carrasco. A concepção hegeliana do homem como morte adiada - completamente distinta da morte por procuração ou por testamento - não se coaduna com a ideologia velada da programação selectiva da morte. Na luta de vida ou de morte, isto é, na luta pelo reconhecimento, o que se arrisca não é a morte mas a vida: o homem que arrisca a sua vida por uma causa nobre - tal como eliminar os programadores da morte - merece - e tem - uma morte digna - a morte própria de Rilke; os outros que não arriscam a vida serão esquecidos.

J Francisco Saraiva de Sousa

19 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O quadro é da autoria de Remedios Varo: Dor Reumática II.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quem acompanhou a elaboração deste modelo crítico não precisa de uma lição de metodologia crítica para compreender a minha dialéctica blindada na abertura total: os conceitos nunca são fechados e eu posso a qualquer momento acrescentar novas determinações teóricas sem alterar a estrutura do texto, como já fiz. Certo, por vezes, recorro à abstracção "pura" para colmatar algumas ausências teóricas, mas as abstracções que utilizo já indicam o que estava ausente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ando a desenhar os telhados do Porto e vou continuar a desenhá-los até obter a perspectiva adequada para um quadro. No último desenho desloquei telhados de modo a captar a densidade arquitectónica da Invicta: introduzi as torres da Igreja da Lapa. Porém, quando reproduzir um destes desenhos para pintar vou usar cores surrealistas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas vou arranjar algum tempo para concluir o post dedicado ao bispo do Porto: pode demorar mas será concluído.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Geralmente, os candidatos a pintores usam retro-projectores ou mesmo programas de computador para desenhar. Eu desenho o que vejo com os meus olhos de fantasia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Já esbocei o desenho do S. Francisco a brincar com o seu pénis erecto: vou pintá-lo a óleo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Portugal é ridículo: agora querem vender a dívida portuguesa à China! Que miséria de país de chulos invejosos!

André LF disse...

Olá, Francisco!
Tenho procurado livros do Arnold Gehlen traduzidos para o português, mas tem sido uma tarefa inútil. Encontrei dois livros pessimamente traduzidos. Para variar, tratava-se de uma tradução brasileira. Infelizmente meus conhecimentos de alemão não são muito amplos. Somente agora tenho a oportunidade de estudar este idioma.
Os seus posts sobre Gehlen estão muito bons. Gostaria que vc escrevesse mais sobre este pensador tão importante e injustamente deixado de lado pelas estúpidas universidades brasileiras.
Vc conhece alguma boa tradução em português (de Portugal) ou francês e espanhol (este teclado não possui o sinal de interrogação)
Um abraço,
André

André LF disse...

A China está com todos os olhos voltados para o Brasil. Estou com receio de que em breve o mandarim substitua o nosso idioma.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Infelizmente, os livros de antropologia filosófica não foram muito divulgados fora do espaço alemão, em parte devido ao impacto de Heidegger.

Sim, a tradução de Moral e Hipermoral do Tempo Brasileira é péssima.
Em português de cá só está traduzida A Alma na era da técnica, mas a editora já não existe.

Em espanhol, há duas traduções O Homem de uma editora de Salamanca e a Antropologia Filosófica - tradução parcial - de uma editora que é acessível na Argentina ou no México.

Além disso, Gehlen foi negligenciado por causa do seu suposto e real conservadorismo.

Fico triste por saber que o Brasil também pode vir a ser "colonizado" pela China! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, as universidades brasileiras e portuguesas e ocidentais foram destruídas por este bando de gestores ladrões!

Para dizer a verdade, nem sei o que é viver numa boa universidade. Em Portugal, a universidade é mais outra mentira: em vez de gente competente, tem um bando de burros. É preciso denunciar a burrice que impera no ocidente! Estou cada vez mais convencido de que a democracia está a afundar o ocidente! Pelo menos, esta democracia da treta!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O problema dos portugueses não é serem burros, mas sim serem burros malvados: Portugal ajuda a compreender a maldade humana, porque é um país de malvados.

André LF disse...

Grato pelas dicas, Francisco!
Sim além de ser negligenciado por causa do conservadorismo, Gehlen foi acusado de defender as causas nazistas. Nas universidades brasileiras- as enxovias do pensamento, como costumo chamá-las- ele é completamente ignorado.

Também não sei o que é viver numa boa universidade. Vivo num país totalmente dominado pelos seres metabolicamente reduzidos.
Aqui há os parasitas de sinapses, verdadeiras pragas que infestam as poucas inteligências que existem. Ao lado de um parasita de sinapse, é impossível desenvolver qualquer tipo de raciocínio :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Gostei da expressão parasitas de sinapses - das sinapses dos outros!
Infelizmente, a massificação do ensino conduziu ao naufrágio da universidade. Agora, a essa praga social dos parasitas de sinapses, juntou-se outra - a da universidade como empresa. Os gestores e economistas são uma grande praga: reduzem tudo ao seu esquema embrutecedor. :(

Uma obra fundamental de Gehlen é Urmensch und Spütkultur de 1956. É capaz de ser o melhor acesso ao seu pensamento, porque nela encontramos a teoria das instituições. Desconheço qualquer tradução.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Na antropologia de Gehlen, habita um velho conceito metafísico que recebe o nome de protofantasia: uma sociedade hierarquizada com instituições fortes e autoritárias. A sua teoria das instituições repudia toda a modernidade, mas pode ser liberta deste elemento conservador que se revela contra a pintura moderna.
Porém, apesar disso, Gehlen captou o regresso do primitivismo... e o metabolicamente reduzido confirma isso. É preciso rever a distinção entre consciência instrumental e consciência ideativa, de modo a reflectir o recuo da cultura face a uma natureza brutalizada. De certo modo, Lorenz substitui a protofantasia pela selecção natural, mas a antropologia de Gehlen faz uma crítica do darwinismo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Curiosamente, Lukács refere a tal obra na sua última Estética - Homem primitivo e Cultura tardia. É crítico mas não repudia a antropologia de Gehlen de forma frontal: Lukács sempre foi selectivo nas suas leituras.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Para dizer a verdade, a minha antropologia sempre teve essa marca conservadora: a protofantasia tanto pode elevar a humanidade do homem como também pode facilitar a sua degradação mediante o retrocesso à animalidade. Spengler tb já tinha verificado isso. Na Alemanha, predominou uma teoria médica que fez frente ao darwinismo, apesar de ter sido posteriormente integrada na nova síntese. Partilham uma ideia comum: a animalidade natural do homem. A aventura humana está sempre em risco. Ora, aqui para não sermos conservadores, podemos recorrer a Hegel... Há muito trabalho a fazer, mas os parasitas de sinapses não deixam trabalhar... :(

André LF disse...

Sim, eles parasitam as sinapses dos outros. Eu inventei esta expressão durante uma viagem na qual eu estava sendo torturado por dois seres tóxicos, cujas ruminações impediram a leitura de um livro. Pensei: " Assim como na Biologia existem as relações harmônicas e desarmônicas entre as espécies (predatismo,comensalismo, etc), elas podem ser verificadas nos contatos humanos.

Necessito conhecer melhor as contribuições de Lukács.

Temos de descobrir um meio capaz de erradicar a existência dos parasitas de sinapses. Inicialmente, é necessário vergastá-los por meio de uma crítica corajosa e lúcida. Vc tem feito isso com altivez e competência.
Eles têm uma fraqueza: são covardes, pusilânimes e se escondem atrás de instituições e conchas burocráticas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vamos lutar contra as conchas burocráticas! :)