«A casa é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio de ligação é o devaneio. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "jogado no mundo" (...), o homem é colocado no berço da casa». (Gaston Bachelard)
O Porto edificou-se e cresceu, ao longo da sua gloriosa história de cidade invicta, como Cidade do Sonho, "a própria imagem do futuro sonhado" (M. Torga), que, nas últimas décadas, foi abandonada ao esquecimento, devido à concentração de poderes numa capital necrófila e a erros atávicos urbanos e arquitectónicos. No Porto, existem centenas e centenas de casas cuja topologia se organiza em altura: um porão enterrado, o piso térreo da vida comum, o andar de cima onde se dorme e o sótão onde se sonha. Porém, muitas dessas casas evocadas por Júlio Dinis, Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra, Jaime Cortesão, Miguel Torga e Agustina Bessa-Luís, e cantadas por Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, António Nobre, Florbela Espanca, Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade, foram e são demolidas para dar lugar a edifícios residenciais e a condomínios fechados, e outras permanecem abandonadas, à mercê da especulação imobiliária irracional, carente de visão do passado glorioso e do futuro aberto ao novo. Estas casas burguesas, ou até mesmo as casas pobres, são sonhos realizados e concretizados na pedra granítica e, na sua topologia onírica, memória e imaginação não se deixam dissociar, trabalhando para o seu aprofundamento mútuo: «Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem» (Bachelard).
O Porto é a cidade da "bela arquitectura" diversa e plural, cujos quarteirões abrigam no seu interior espaços de sonho, e até mesmo os mais "pobres", as "ilhas", são labirintos que projectam horizontalmente os sonhos diurnos dos seus habitantes, em contraste com as casas burguesas que se elevam na verticalidade, procurando contacto com a "morada celestial" e dando um ar fálico à cidade. No Porto, os edifícios são real e virtualmente corpos de imagens que dão aos seus habitantes, os portuenses - isto é, os homens portugueses «mais livres, mais progressivos, mais responsáveis e mais capazes» (M. Torga), razões ou ilusões de estabilidade e de segurança: as casas portuenses são seres verticais que se elevam e se diferenciam no sentido da sua verticalidade, fazendo apelo à nossa consciência de verticalidade, e, ao mesmo tempo, são seres concentrados, levando-nos à consciência de centralidade. Segundo Miguel Torga, «os valores autênticos da vida têm de ser sólidos como a Praça da Liberdade e altos como a Torre dos Clérigos». O Porto é imaginariamente uma enorme cidade-abrigo, uma cidade-fortaleza, uma cidade-invicta. Contudo, esta cidade de sonho precisa de cuidados redobrados: conservar os seus valores de intimidade e de cosmicidade, abrindo-se ao futuro e à modernização e ampliando a sua rica confluência de estilos arquitectónicos, em harmonia com a natureza e no resguardo da quadratura (Heidegger).
J Francisco Saraiva de Sousa
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