sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Pobreza

As Virtudes em vez dos Valores
Na Universidade, um professor repetia-me vezes sem fim, em privado e em público, em tom mais amigável do que ofensivo, esta frase: «O Francisco é um cientista sem ética». No seu entendimento, não se tratava de uma crítica mas de uma constatação: nas minhas intervenções ou trabalhos de investigação, nunca colocava o «problema da fundamentação ética» dos «assuntos» em questão e ele achava que qualquer análise científica deveria colocar questões éticas e procurar explicitá-las. Como era dos poucos professores com quem simpatizava efectivamente, limitava-me a escutá-lo sem ripostar, reafirmando o meu compromisso com a verdade.
Hoje julgo compreender melhor a minha atitude espontânea em relação à ética, que formulo nestes termos: a ética filosófica não deve ser entendida como uma teoria dos valores (axiologia), mas, em vez disso, como uma teoria das virtudes. E, como era e continuo a ser um homem «virtuoso», adormecia nas aulas de ética, sempre que o professor falava de valores ou de hierarquias de valores, seguindo literalmente - repare-se - Risieri Frondizi («Que son los Valores?»), quando eu já lia seriamente Kant, Hegel, Max Scheler, Jean-Paul Sartre, Marcuse, Adorno, Habermas, Merleau-Ponty, Althusser, Lukács, Gadamer e Heidegger, para só mencionar estes. Sempre estive mais avançado do que os professores em matéria de conhecimento e esse mesmo professor reconhecia-o quando dizia que «estava a anos luz de distância...».
Mas, na altura, reconheço, não sabia tematizar a minha posição e ainda hoje não sei bem. Suspeito que a «Teoria dos Sentimentos Morais» de Adam Smith ajuda a clarificar a minha posição, sobretudo quando elabora a perspectiva do «observador imparcial», portanto universal, que antecipa os modelos relacionais do self.
E, como quero contagiar os meus «amigos» online com esta minha nova paixão, deixo aqui umas palavras de Smith sobre a «pobreza» (não exclusão social, como se diz hoje):
«É porque os homens estão dispostos a simpatizar mais completamente com a nossa alegria do que com a nossa dor, que exibimos a nossa riqueza e escondemos a nossa pobreza. Nada mortifica mais do que sermos obrigados a expor a nossa aflição aos olhos do público, e a sentir que, embora a nossa situação esteja exposta aos olhos da humanidade, nenhum mortal é capaz de conceber um pouco que seja de nosso sofrimento» (p.59). Ao contrário do homem rico, «o homem pobre envergonha-se de sua pobreza» (p.60) e, como acontece com todos os outros homens, admira mais a riqueza e seus detentores do que a pobreza e as sua vítimas.
Como mortais que são, os portugueses dedicam-se a tempo inteiro a exibir sinais da sua riqueza e a esconder a sua pobreza da atenção pública, mesmo quando vivem com a corda ao pescoço. Se esta é efectivamente uma disposição geral dos mortais, então, na actual conjuntura de desemprego e de muita pobreza escondida, torna-se necessário contrariá-la e chamar a atenção pública para a real situação de pobreza dos portugueses, de modo a mortificar a consciência dos políticos responsáveis por esta situação, porque - os estóicos já o sabiam - a lembrança de todos os erros cometidos deve mortificá-los e levá-los, se ainda forem homens, a reparar os seus erros.
O ponto de vista do «espectador imparcial» é o ponto de vista da solidariedade social e da reciprocidade. Homem político que não seja capaz de se colocar no lugar e na situação do outro, neste caso dos desempregados, muitos dos quais licenciados, e ajudar a alterá-la, não deve merecer a aprovação dos seus eleitores.
J Francisco Saraiva de Sousa

4 comentários:

Carlos Serra disse...

Excelente, excelente! São poucos hoje os cientistas que reclamam um papel junto dos deserdados da terra, para usar a linguagem do Frantz Fanon! É sempre atractivo o conforto intelectual no sofá da doce neutralidade weberiana. Daí a reforma intelectual sempre antecipada. Abraço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Franz Fanon escreveu e Jean-Paul Sartre elogiou!
Em Portugal, os intelectuais, ou melhor, os pseudo-intelectuais, não têm preocupação social e, diga-se de passagem, não pensam: sobrevivem e tiram curso para arranjar um emprego, de preferência vitalício, com o qual se identificam totalmente. Em vez de serem pessoas, são títulos...
Os autores referidos e o pensamento por eles defendido ofendem a pseudo-intelectualidade portuguesa, cuja existência é metabolicamente reduzida.

Helena Antunes disse...

Muito bem distinguiu pobreza de exclusão social, porque de facto há quem ignorantemente confunda. E, como sabemos, nem todos os pobres são excluídos, nem todos os excluídos são constituídos por pobres.

Sem dúvida é necessária uma intervenção política e governativa nestes domínios. Estes assuntos deviam fazer mais parte da agenda político-governativa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Concordo plenamente com a perspectiva da Helena e do Carlos Serra.
A agenda política nem sempre leva em conta estas distinções e, frequentemente, mostra-se insensível a essas assimetrias sociais.
Abraço