segunda-feira, 7 de abril de 2008

Nova Fundação da Tradição: A Modernização

«O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia» (Horkheimer & Adorno)
A filosofia social clássica legou-nos a ideia de que o desenvolvimento das sociedades modernas implicou necessariamente a perda de importância da tradição na vida quotidiana. Se a tradição é «coisa do passado», então as sociedades modernas contrastam com as «sociedades tradicionais». Esta ideia foi incorporada pelas teorias da modernização vista como um processo de desenraizamento das tradições, e assenta em dois pressupostos fundamentais:
1. A teoria social clássica foi herdeira do Iluminismo, que encarava a tradição uma fonte de mistificação e, como tal, uma inimiga da Razão e um obstáculo ao Progresso Humano.
2. A teoria social clássica via, portanto, a emergência e o desenvolvimento das sociedades modernas como um processo dinâmico intrinsecamente destruidor da tradição. Como herança do passado, a tradição devia ser criticada e dissipada em nome da Razão e, mesmo que isso não fosse possível, a própria dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia da sua destruição.
Karl Marx. A convergência destas duas considerações é evidente tanto na obra de Marx como na obra de Max Weber. Sob a influência do Iluminismo, Karl Marx via a tradição como a principal fonte de mistificação que encobria e ocultava a verdadeira natureza das relações sociais. A dinâmica interna da modernização encarregar-se-ia, ela própria, de quebrar e dissolver as relações sociais e as tradições das sociedades pré-modernas. Pelo menos, é assim que a modernização é apresentada no "Manifesto do Partido Comunista". Isto significa que a desmistificação das relações sociais é um processo latente ao desenvolvimento e à expansão do modo de produção capitalista: «O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a alteração incessante da produção, o derrubamento contínuo de todas as instituições sociais, em suma, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais imobilizadas na tradição, com o seu cortejo de concepções e de ideias, fixas e veneráveis, se dissolvem; aquelas que as substituem caducam antes mesmo de cristalizarem. Tudo o que tinha solidez e perdurbalidade esvai-se em fumo, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são forçados, finalmente, a encarar com olhos desiludidos as suas condições de existência e as suas relações mútuas» (Marx & Engels). Quando as forças de produção atingirem um determinado nível de desenvolvimento, entrarão em contradição com a manutenção das relações de produção estabelecidas, levando o proletariado a vê-las como relações de exploração do homem pelo homem e a lutar pela sua transformação revolucionária, em direcção a uma sociedade mais livre e justa, portanto, mais transparente: «Antes de tudo, a burguesia produz os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis» (Marx & Engels).
Max Weber. Embora não fosse optimista como Marx, Max Weber acreditava que o desenvolvimento do capitalismo industrial seria acompanhado pelo desaparecimento das cosmovisões tradicionais. É certo que a ética protestante desempenhou um papel fundamental na emergência do capitalismo ocidental, mas, uma vez estabelecido como forma predominante de actividade económica, o capitalismo adquiriu uma tal força que acabou por dispensar as ideias e as práticas religiosas que tinham sido necessárias ao seu surgimento. Além de ter promovido o aparecimento do Estado burocrático nacional, o desenvolvimento do capitalismo racionalizou progressivamente a acção social e adaptou-a aos critérios da eficiência técnica. O puramente pessoal e individual, o elemento espontâneo e emotivo da acção tradicional, foi esmagado pelas exigências de objectivos racionalmente calculados. Este processo de racionalização e, portanto, de desencantamento do mundo, foi o preço pago pela racionalização ocidental, de resto vista como «a fatalidade dos tempos modernos» (Weber).
As teorias da modernização elaboradas posteriormente aceitaram a existência da oposição entre sociedades tradicionais e sociedades modernas e encararam a passagem das primeiras para as segundas como um processo irreversível e de sentido único. Estas teorias podem ser enquadradas sob uma mesma designação: a grande narrativa da transformação cultural, para retomar um conceito de Lyotard, que Horkheimer & Adorno apresentaram numa perspectiva filosófica na sua obra "Dialéctica do Esclarecimento", onde, associando as ideias de Marx e de Weber, com recurso a Nietzsche e a Freud, conceberam a dialéctica do progresso como regressão. Esta grande narrativa da modernização pode ser reconduzida a três elementos-chave:
1. O surgimento do capitalismo industrial na Europa e noutros lugares do mundo foi acompanhado pelo declínio das crenças e das práticas religiosas e mágicas que prevaleciam nas sociedade pré-industriais. Isto significa que o desenvolvimento económico capitalista foi seguido, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e das práticas religiosas e pela racionalização progressiva da vida social. Peter Berger definiu a secularização como um processo de «progressiva "perda de realidade" por parte das interpretações religiosas tradicionais do mundo». Ao racionalizar sectores cada vez mais amplos da vida social, a modernização privou o indivíduo da segurança que lhe proporcionavam as instituições tradicionais. Esta insegurança implicou «a ameaça constante de isolamento e de falta de sentido».
2. O declínio da religião e da magia prepararam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou ideologias, que servem para mobilizar a acção política, sem referência a valores ou a seres de outro mundo (seres sobrenaturais). A consciência religiosa e mística da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas colectividades sociais e animadas pelos sistemas seculares de crenças.
3. Estes desenvolvimentos deram lugar à "Era da Ideologia" que culminou em movimentos revolucionários radicais no final do século XIX e inícios do século XX. Estes movimentos foram as últimas manifestações da era da ideologia. Actualmente, a política é cada vez mais um problema de reforma gradual e de acomodação pragmática de interesses em conflito. A acção social e política é cada vez menos animada por sistemas seculares de crenças que exigem a mudança social radical. Por isso, estamos a assistir não só ao fim da era das ideologias, mas também ao fim da ideologia como tal, como defenderam Daniel Bell, Raymond Aron, Jean-François Lyotard e Vattimo.
Lyotard vai mais longe quando afirma que o projecto moderno da realização da universalidade não foi abandonado ou esquecido, mas destruído e liquidado, e, em seu lugar, surge aquilo a que chamou pós-modernidade. Porém, A. Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash reagiram contra a esta teoria do fim da modernidade, opondo-lhe uma nova teoria da modernidade, a modernização reflexiva, já previamente desenvolvida por Giddens. Esta nova teoria defende que, nas primeiras fases da modernização, muitas instituições dependiam das tradições das sociedades pré-industriais. Contudo, à medida que a modernização entra na sua fase mais avançada (a modernização reflexiva de Beck), as tradições começaram a perder a sua força, de modo que as sociedades modernas se tornaram "destradicionalizadas". Embora não tenham ainda desaparecido completamente, as tradições gozam de um estatuto que mudou significativamente. As práticas tradicionais perderam o monopólio da verdade e tornaram-se menos seguras quando são expostas ao escrutínio e à discussão públicos. Ao serem chamadas a defender-se, estas práticas perdem o status de verdades inquestionáveis. Um modo de sobrevivência é a sua transformação num tipo de fundamentalismo, como o islâmico, que rejeita o apelo da justificação discursiva e procura, num clima de dúvida generalizada, reafirmar o seu carácter inviolável.
Podemos alegar dois argumentos contra a tese do declínio da tradição que teria acompanhado o desenvolvimento das sociedades modernas:
1. Determinadas tradições e sistemas de crenças tradicionais continuam a estar presentes nas sociedades dos séculos XX e XXI, tais como as igrejas católicas ou protestantes, às quais vieram associar-se os novos movimentos religiosos ou mágicos, tomados geralmente como o regresso do sagrado.
2. A tese do declínio da tradição não leva em conta o papel dos mass media.
John Thompson foi dos poucos teóricos sociais que compreendeu a verdadeiro impacto dos mass media na transformação das sociedades modernas. A sua teoria da modernização assenta na ideia crucial de que a mediatização da tradição a dotou de nova vida, liberando-a das limitações da interacção face a face e revestindo-a de novas características. A tradição desritualizou-se e perdeu parcialmente a sua fundação nos contextos práticos da vida quotidiana. Os mass media electrónicos tanto os da primeira geração como os da segunda geração são actualmente a nova fundação da tradição. (CONTINUA, mas os títulos serão diferentes.)
J Francisco Saraiva de Sousa

20 comentários:

E. A. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Manuel Rocha disse...

Francisco,

Isto está muitissimo bom !

Mas deixa-me a pensar se efectivamente a tradição se terá perdido com a modernidade ou apenas dado origem a novas "tradições". Não terá o sistema capitalista criado uma "tradição alternativa" ? Quando falamos de economia, por exemplo, estamos a falar de uma "ciência" ou de um corpo de doutrinas que têm imposto as suas "verdades funcionais" como tradições de valor tão dogmático como outra crença qualquer?


Papillon,

É nesses detalhes de criatividade que se reconhecem os gènios !

:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Neste post desprezei as mudanças económicas para não o sobrecarregar muito. Procuro manter-me ao nível da Cultura!
Sim, de certo modo, o sistema capitalista cria novas tradições alternativas, recriando as anteriores. Muito fléxivel na sua mobilidade. Mas retira-lhes quase sempre a autoridade!

Fernando Dias disse...

Por cá tivemos Teixeira de Pascoaes (consciência religiosa e mística pagã) a polemizar com António Sérgio (consciência secular positivista). Antes destes, Antero, e depois deste, Sampaio Bruno &…. Depois Eduardo Prado Coelho com Vergílio Ferreira e por fim, Muitos contra Boaventura Sousa Santos & …

Com o judeo-cristianismo entrou-se no tempo histórico, que é linear e irreversível. O marxismo, religião herética do judaísmo, prometeu o paraíso garantido na terra. O fundamentalismo islâmico é do mesmo género e promete o paraíso ne céu.

Temos boas notícias. Está-se a sair do tempo histórico e a voltar a entrar no tempo cósmico que é cíclico e mítico. Por outro lado o fim de uma civilização não é o fim da humanidade, mas apenas mais um passo na peregrinação do espírito humano. Já víamos espirais nas pedras de Foz Coa e na nossa cultura tradicional céltica, em que o passado o presente e o futuro eram tempos coincidentes, agora estamos a ver novas espirais.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Fernando Dias

Boa ideia essa de reconstruirmos os debates nacionais em termos filosóficos! Já estou a escrever o segundo post da série. É complicado fazer uma síntese inovadora... Também o que interessa é o debate e a busca cooperativa da verdade...

E. A. disse...

Eu sou o génio da lâmpada dourada, encrustada de esmeraldas e diamantes e de pins da Audrey Hepburn! Se me libertarem, concedo-vos três desejos (além de vos dar a lâmpada!) :)

Ass.: "Carochinha, a tradicionalista kitsch"

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hummm... Papillon

Concede-me saúde, paz e vida longa e produtiva!

E. A. disse...

ahahahah...
O Francisco é tão comedido e singelo nos seus desejos!
Lamento, mas esse tipo de anseios aborrecidos, é a minha prima, A Bela Adormecida, que os concretiza.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pena porque estou a sentir-me mal...
Abraço

E. A. disse...

Acho que os argumentos de Thompson são falsos, ou melhor, são incapazes de proverem uma resposta satisfatória ao nosso problema.
O facto de que a sabedoria e ritos tradicionais tenham perdido influência, não significa que o homem tenha perdido a sua propensão natural para se firmar em dogmas. O "regresso ao sagrado" não é mais que um fenómeno de procurar respostas, às quais a ciência não chega. Ou seja, até a fé iluminista (e tradicional, ao jeito de Gadamer) na ciência e na razão, também se perdeu.
Por outro lado, a "mediatização da tradição" tb é de matéria errónea. Pois, no outro texto que escreveu sobre o exame que T. faz aos mass media, ele próprio admite que a informação é disparada sem critérios. Ou seja: paradoxal... porque tradição não pode ser (só) "qualquer coisa trazida do passado", mas algo que faça sentido, num maciço coerente, para que ela possa ser aceite ou transposta, mas, pelo menos, identificável.
Dizer que a tradição é um conjunto de regras e crenças que nos possibilitem viver, invalida a nossa discussão, porque ignora o problema. É dado que nós vivamos segundo uma rede de crenças. Agora, o problema é pensar e prever o propósito daquilo que se entende por tradição "ocidental" e contestá-la (se for possível) com o descalabro do futuro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ainda não terminei o post: tem mais 2 ou 3 posts. Contudo, reconheço a pertinência da sua objecção. Vou tentar tê-la em conta! Vou tomar café.

O regresso do quotidiano tem esse inconveniente: a tirânia da opinião, muito incentivada por certas pedagogias. Precisamos de mudança de paradigma educacional para reactivar a tradição: o conhecimento justificado.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

A sua primeira objecção não é efectivamente uma objecção. disse que todos exageraram no declínio da tradição: muitos elementos subsistem, outros foram transfigurados. Mas estão aí e, na ausência de sentido, as pessoas recorrem a eles. A tradição não está, portanto, morta, e o Iluminismo não alcançou os seus objectivos. O texto de Adorno e Horkheimer diz isso: regressão e eu tenho falado dessa regressão frequentemente que associo à barbárie.

À sua objecção, digo apenas que esses elementos do passado recuperados fazem sentido. Aliás, muitos regressos ao passado podem até ser nefastos: o nacionalismo e novos movimentos religiosos são alguns exemplos. Numa era de globalização, há essa saudade do local e seu passado: uma reacção romântica? Mas a tradição é essa matriz identitária! Essa a sua principal função no mundo de hoje.

A terceira objecção passa ao lado da questão. Porque a tradição já não tem esse papel normativo, mesmo quando algumas pessoas a reclamem nas palavras mas não nos actos.

De resto, quanto à tradição ocidental, é isso que procuro colocar em debate! Eu defendo-a e não abdico dela!

E. A. disse...

N sei se percebi bem a sua contra-objecção, mas aqui vai a minha tréplica. :)

N percebo se a sua angústia é que as pessoas fiquem sem sentido para a sua vida ou que ignorem ou mesmo que vituperem a tradição, designadamente tradição ocidental. Porque para mim recorrer à magia e crer nos "códigos da vinci", só demonstra a estupidez ascendente.
Sócrates foi condenado por atentar contra os costumes, e é este o baluarte da nossa tradição: lógica, razão; a dialéctica sucede desta fractura. É certo que ele próprio nos ensina que devemos atentar à verdade, sob que forma for, porque é ela que vem ter connosco e não o contrário (Fedro). Ou seja, temos de ter mecanismos de pertença, pois, de outro modo, corremos o risco de nos escapar o essencial. O Iluminismo será uma tentativa de esquecer o estado infantil da humanidade, ou seja, algo perigoso, e incapaz de prover um caminho, mas a "recuperação" daquele tem de ser coada com nexo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, Papillon, há esse regresso do mágico e de outros cenários medievais. Vejo-as como sintoma de uma falha: precisamos, como disse noutro post, de uma política do sentido e da educação! Reler a tradição na sua vertente crítica e não "popular". De resto, não vejo divergência... Há muito trabalho teórico a fazer... Leu o texto de Benjamin?

E. A. disse...

Interessante a imagem das ruínas, remete-me ao que chamou de "reacção romântica". A estética romântica apreciava as ruínas, pela nostalgia do passado e celebração dos mortos.
Nós vivemos como esse anjo. De costas para o futuro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, precisamos do Anjo. Eu tenho um anjo da guarda só meu!

E. A. disse...

Ainda bem Francisco. Eu não, só me tenho a mim.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Procure o seu Anjo! Se o fizer, encontra-o, porque ele anda nas suas imediações! Uma curiosidade: Um medium ou vidente qualquer coisa do Porto disse-me, sem lhe perguntar nada, porque estava no café, que ando sempre bem acompanhado, porque nesse dia ele já tinha contado 11 "almas". Geralmente, disse ele, costumo estar mais acompanhado. Depois outra vidente confirmou... Não os conhecia!

E. A. disse...

Isso é muito bonito, Francisco. Ainda bem q tem anjinhos à sua volta que gostam muito de si e n o deixam cair em desgraça.

Eu n tenho anjos à volta, os que habitam em mim são personagens minhas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Isso é sonhar acordada, Papillon! :) estou a escrever o 3º post sobre tradição... Papillon envie mensagens para o último post, please, é mais fácil para mim... :)