sábado, 26 de abril de 2008

Medicina sem Humanidade

Alexander Mitscherlich forjou a expressão "medicina sem humanidade" para denunciar a ausência da dimensão pessoal do homem doente no âmbito da medicina moderna, cujo triunfo assenta exclusivamente na aplicação dos métodos das ciências naturais e, ultimamente, dos métodos tecnológicos: «O médico deixa de adoptar a figura do curandeiro, rodeado do mistério dos seus poderes mágicos, para passar a ser um homem de ciência» (Hans-Georg Gadamer).
A medicina científica ou, como dizia Claude Bernard, "experimental", encara a doença como um "defeito objectivo" que pode ser "corrigido" através de uma "reparação". Como ciência natural, a medicina moderna isola o seu objecto, abstrai-o de todos os outros contextos e objectiva-o: «A ciência moderna e o seu ideal da objectivização significa para todos (médicos, pacientes ou simples cidadãos alerta e preocupados) uma tremenda alienação» (Hans-Georg Gadamer). Isolamento é a palavra chave da medicina moderna: em primeiro lugar, o homem doente é isolado do seu meio vital, através da hospitalização ou do internamento, e, em seguida, a doença é isolada do homem, sendo o doente reduzido a um "quadro clínico típico". Só depois de analisados os fenómenos típicos de uma doença em "um caso" dessa doença é que se inicia a terapia planeada e dirigida. As funções fisiológicas e patológicas são traduzidas em funções clínicas, isto é, num "conjunto de dados" que possibilitam apreender determinadas limitações e aberrações.
A subjectividade do doente permanece diafragmada, como indica a progressiva renúncia ao diálogo entre o doente e o médico. O diálogo é substituído pela orientação baseada nos dados recolhidos e registados. O doente já não aparece directamente como pessoa capaz de participar activamente na sua própria cura, mas é representado por sinais e símbolos inteligíveis apenas à especialização médica. A linguagem humana torna-se supérflua na "arte de curar" e a clínica torna-se essencialmente muda. O doente converte-se em objecto de estudo estatístico e de terapêutica, aprendendo a ser um paciente mudo da clínica que lhe presta os seus serviços. Tal como qualquer outra ciência natural, a medicina moderna é um "saber da dominação" (Max Scheler). Ora, como demonstrou Hans-Georg Gadamer, «não é possível tratar realmente nenhuma pessoa que se olhe a si mesma apenas como um «caso», e nenhum médico pode, por seu turno, ajudar um indivíduo a superar uma doença grave ou mais ou menos leve aplicando-lhe apenas o poder rotineiro da sua especialidade. Em ambas as perspectivas somos partícipes de um mundo da vida que nos suporta. E a tarefa que se nos impõe como seres humanos consiste em encontrar o nosso caminho nesse mundo vital e em aceitar os nossos condicionalismos. Tal caminho implica, para o médico, a dupla obrigação de unir a sua competência altamente especializada à sua participação no mundo da vida (Lebenswelt)».
Contudo, apesar do seu inegável triunfo, a medicina científica não pode superar o conhecimento de que o objecto de investigação e de tratamento médicos é o sujeito humano. Isto significa que, na medicina, o homem como sujeito que trata (médico) se contrapõe ao homem como sujeito tratado (doente): ambos são sujeitos humanos que participam no mundo da vida. De certo modo, a medicina moderna não pode aplicar a dicotomia sujeito-objecto à existência do homem, porque o doente continua a ser uma pessoa. Mesmo que seja convertido em objecto de tratamento terapêutico, o portador de uma doença continua a ser sujeito como homem doente. Por isso, uma medicina verdadeiramente humana não pode pressupor uma relação sujeito-objecto e o dualismo que lhe é subjacente, pelo menos desde Descartes.
A medicina psicossomática elaborada por V. von Weizsäcker anula o «desencantamento do objectivismo das ciências naturais», mediante a «introdução do sujeito» do homem doente na patologia, dando acesso a uma ontologia do homo patiens encarado como totalidade psicossomática. Deste modo, a relação médico-doente é sempre uma relação sujeito-sujeito e a alienação do corpo e da dor é eliminada através de uma medicina do corpo que aceita a auto-experiência corporal na vida da pessoa e da sociedade. Contudo, este novo paradigma médico implica uma nova filosofia da natureza e esta foi formulada por Ernst Bloch que leu o Jovem Marx (ou mesmo Hegel) à luz da filosofia da natureza de Schelling, antecipando uma solução para a crise ecológica. (Leia Ernst Bloch: A Filosofia da Esperança ou este post do blogue "CyberPhilosophy".)
Advertência. O assunto deste post é demasiado complexo e, por isso, foi impossível desenvolver a fundamentação filosófica dos dois paradigmas médicos mencionados: o científico e o psicossomático. Além disso, como vivo em Portugal, sei que não vale a pena pensar, porque neste país o pensamento não tem abrigo. Em Portugal nada tem futuro, a não ser a corrupção, a inveja, a mentira, a trapaça, o medo, enfim a estupidez. Portugal é o túmulo do génio. Merda de país o nosso!
Ao contrário do que tenho dito, a Filosofia não abandonou a natureza ao cuidado de uma ciência natural mecanicista e violenta, embora tenha contribuído decisivamente para a elaboração dessa imagem moderna da natureza. Segundo Collingwood, «Hegel quis ir de Galileu para Einstein mais ou menos em linha recta», abrindo a cosmologia à história. E Ernst Bloch elaborou uma filosofia da natureza não-mecanicista: a natureza é sempre natura naturans e natura abscondita, de modo a garantir a sua autonomia como natureza-sujeito e a libertá-la da noção de natureza dominada. A pátria surge assim como relação entre homem e natureza e a técnica da aliança lança uma ponte entre a subjectividade do homem e a subjectividade da natureza, impossibilitando o seu uso destrutivo, porque a natureza é a habitação do homem. O recurso à antropologia de Plessner ajuda a clarificar esta nova visão da natureza exterior e interior e a denunciar a alienação do homem do seu corpo. (Veja Helmuth Plessner: Conditio Humana.)
J Francisco Saraiva de Sousa

63 comentários:

E. A. disse...

Nem Portugal, nem nenhum outro país, enterra ou enterrou os génios. Ser ou ter génio, é um instinto fatal. Resiste como se respira.
Entretanto, concordo consigo no que diz respeito a uma tradição escolástica ou académica que já chega medíocre e se advém pútrida.

Em relação à Filosofia da Natureza ou a uma ética ambiental, no seu último parágrafo parece-me haver alguma inconsistência, porque, o que significa o "uso destrutivo" da natureza? O uso a partir do qual acrescem a longo prazo mais males que bens ao homem? Continua sem sair da subjectividade do homem. A "aliança" é uma estratégia de sobrevivência e domínio, como construir diques.
Mas, como pretende lançar uma hipótese mais desenvolvida, fico à espera para perceber melhor. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

É muito didícil explanar a hipótese com todo este calor que faz no Porto. A Papilon está como o Marx d' O Capital que desistiu da ressurreição da natureza, vendo-a como uma espécie de adversária. Como sabe, podemos superar as dificuldades teoricamente, mas a realidade nem sempre acompanha o pensamento. Há sempre na natureza algo em potência que se revela em função de uma confluência de factores, de uma conjuntura natural e cultural.
O uso destrutivo da natureza e nós humanos somos seres da/na natureza revela-se neste aquecimento global e na ausência de quatro estações, agora reduzidas a duas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o génio resiste, mas os corruptos nacionais sufocam e roubam-lhe a oportunidade. (Quando usei génio era no sentido de inteligência criativa.)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

O Marx d'O Capital yendeu a reduzir a relação homem/natureza à troca metabólica: daí a necessidade de luta com a natureza para lhe arrancar através do trabalho o sustento. Mas a natureza também é o nosso abrigo, como ele tinha visto nos Manuscritos de 1844. Heidegger também segue esta última linha de pensamento. Não podemos negar o agir instrumental e as relações instrumentais, porque elas estão sempre aí à luz do dia. Precisamos de inventar uma nova relação com a natureza, a exterior e a interior (o nosso corpo). A técnica de aliança deve escutar a natureza e as suas necessidades...

E. A. disse...

Por mim, viveríamos só com uma. :)

Mas, daí o problema. A Natureza n quer "alianças", isso são criações fantásticas do Homem para travar a sua auto-destruição e perseguir no seu domínio do mundo.
"A Natureza gosta de se esconder", disse Heraclito, o que significa que esteve, está e estará muito além do instinto teorético do homem.
Portanto, a premissa é: a sociedade global de consumo será o fim da Humanidade, logo, (assumindo a priori o especismo) temos de evitar aquela implicação. A Natureza é de outra ordem, não-captável por nós.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas esse é o "sentido" da aventura humana nesta imensa nave desgovernada que é a Terra.

E. A. disse...

O sentido da vida humana é criar ideias?
Não. Criar ideias é a sobrevivência do homem. O "sentido" é outra coisa.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Como diria Darwin, a nossa meta é a sobrevivência, e, como homem ocidental, vejo a nossa aventura como uma transmissão do legado cultural. O resto é «ideia»...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou seja: Evitar a auto-destruição ou a heterodestruição ou ambas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto à ética, defendo uma ética pática e não uma ética apática do tipo estóico! A apatia do homem consumidor é o nosso prooblema! :(

André LF disse...

Francisco, assusta-me a crescente reificação dos pacientes, levada a termo pelos governantes corruptos e pelos andróides da Medicina. Aqui o sistema de saúde é uma vergonha! No Brasil temos de financiar, por meio do pagamento de impostos exorbitantes, um Estado A, público, e um Estado B, privado. Paga-se para se ter um sistema de ensino público satisfatório, mas somos impelidos a estudar em colégios particulares, cujas mensalidades são muito elevadas. Embora a Constituição nos garanta o acesso a um sistema de saúde gratuito e eficiente, temos de pagar para termos a assitência de hospitais privados (muito ruins), pois os públicos são valas nas quais se depositam os moribundos. Nossa Constituição Federal é uma fábula!

André LF disse...

Papillon, qual é o "sentido" da vida humana?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Cá em Portugal o sistema pública começa a ser destruído para beneficiar os hospitais privados: o público funciona como escola experimental de aprendizagem; depois do treino vão para o privado. Mas o mais curioso é o investimento ser do Estado e a gestão ser privada: a parceria privado-pública. Mas tem havido protesto e o governo recuou... aparentemente.
Penso que estamos a regressar à época da exploração e da miséria...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Os Hospitais públicos (centrais) portugueses são bons; os privados são luxuosos e oferecem mais regalias aos doentes a troco de muito dinheiro (são caros); as parcerias público-privadas são públicas em termos de funcionamento. Os hospitais ou são novos ou foram renovados substancialmente. A saúde é praticamente gratuita, porque assim o exige a Constituição. Quem não tiver rendimento ou escasso rendimento não paga nada: tudo é de graça.
O ensino público também é gratuito, até o universitário: propinas muito baixas. Mas, como já verificou, o ensino público degrada-se muito e os privados tentam tirar proveito disso, embora não sejam necessariamente melhores. Ao nível do ensino universitário, o privado não presta: muito corrupto.
Isto faz parte do Estado Social Europeu que agora com a onda neoliberal está a ser destruído...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto ao sentido da vida, é melhor aguardar pela resposta mais transcendental da Papillon! :)

E. A. disse...

André,

A pergunta pelo sentido da vida na tradição filosófica significa perguntar se o Universo sem nós seria diferente, ou se o mundo sem mim seria diferente, portanto, se a humanidade pressupõe um desígnio mais vasto, cuja resposta é, (e por isso a pergunta do sentido da vida possa ser tendenciosa) de ordem divina.
Quando disse ao Francisco que criar ideias não pode ser o sentido do homem, é porque essa é a sua condição necessária, o intelecto são as "garras" com que não nascemos, se quiser, logo não arranja nenhum sentido para a sua vida, apenas a torna possível.

No meu ponto de vista, como humanista, não justifico a minha existência em Deus, logo carrego-me a mim mesma e arranjo "sentido" dando coerência narrativa à minha vida. De resto, a ironia é uma boa forma de vida, e talvez a mais autêntica.

Cumprimentos,

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

De Santo Agostinho até Hegel ou mesmo Marx, a história é vista como uma história da "salvação": o desígnio divino. É claro que esta concepção tem sido minada. Contudo, penso que ela alimentou e deu força à nossa aventura ocidental. E agora caminhamos sem projectos para o abismo, o caos, o sem-sentido. Ernst Bloch retoma a transcendência sem Deus! Penso que Bloch é muito actual e pertinente.

E. A. disse...

A esperança é um valor judaico-cristão, o qual não professo. Prefiro as ambições humanistas da Renascença, onde a racionalidade é preservada nos nossos comportamentos sociais e morais, mas não de forma pretensamente abstracta e totalizadora, mas atenta ao particular. Para mim esta é a verdadeira autonomia do ser e esta é a única maneira de nos redimirmos: olhar de frente para a morte e, assim, tomar a vida e determiná-la a cada instante.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Oi Papillon

Estou cada vez mais impressionado com Bloch e a sua utopia concreta. É muito denso e poético, mas a sua filosofia é potente: "espaço de uma tradição que continuaa fluir e de um vínculo com o fim...". Assim define Bloch o nosso caminho...

André LF disse...

Olá, Papillon!
A sua reposta me deixou repleto de dúvidas. Em primeiro lugar, não compreendi a sua frase "o intelecto são as 'garras' com que não nascemos". O que vc entende por "dar coerência narrativa" à vida. Seremos nós personagens à procura de um autor? Segundo o seu raciocínio, esta coerência narrativa é livre, isto é motivada pelo livre-arbítrio? Concordo com o que disse sobre a ironia.
Cumprimentos,

Francisco, grato pelos seus esclarecimentos. Vcs estão mais avançados do que nós em muitos aspectos, :)

Lamentavelmente, as diferenças de fuso horário entre nós dificultam o diálogo em tempo real :(

André LF disse...

Leia-se "O que vc entende por dar coerência narrativa à vida?".
Faltou o sinal de interrogação. Estou aluado :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Aqui são quase 4 horas da tarde: aí deve ser mais cedo 5 horas?
A Papillon rejeita a noção de esperança; eu prefiro conservá-la. A filosofia de Bloch faz frente a Heidegger no sentido de abrir o futuro. Para Heidegger, a ontologia está concluída nesse ser-todo que é a morte. Ora, a esperança completa a angústia e ultrapassa-a: abre o futuro ao novo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou como digo no post dedicado a Bloch:

"Esta ênfase na «consciência antecipadora», no «devaneio» e no «ainda-não-consciente», mostra claramente que o conceito de possibilidade não resulta somente da análise de determinadas condições de existência, mas constitui uma propriedade da «consciência pura». Bloch distancia-se, neste aspecto, de Heidegger e de Jean-Paul Sartre, bem como dos seus seguidores. Em Heidegger, a categoria central da experiência «autêntica» é, na sua analítica da morte, a angústia. Mas, uma vez encontrada a possibilidade, a esperança é um modo de experiência tão legítimo quanto a angústia. Face a uma «possibilidade concreta», existe a esperança de que seja realizada e a angústia de que não seja realizada. E, como a morte é inevitável, Bloch conclui: A possibilidade real «não reside em qualquer ontologia acabada do ser daquilo que já é existente, mas sim na ontologia do ainda-não-existente, que é continuamente fundamentado cada vez que descobre o futuro no passado e em toda a natureza». Na sua obra sobre Hegel (Sujeito-Objecto: O Pensamento de Hegel), Bloch acentua constantemente que a sua ontologia não está acabada, mas aberta ao futuro: «o marxismo não está fechado», isto é, concluído."

E. A. disse...

Em primeiro lugar, não compreendi a sua frase "o intelecto são as 'garras' com que não nascemos".

Como animais que somos, tendemos à sobrevivência; ora, o nosso único instrumento de ataque/defesa são as nossas estruturas do entendimento.

O que vc entende por "dar coerência narrativa" à vida. Seremos nós personagens à procura de um autor?

Não, é precisamente o contrário: nós somos os exclusivos autores da nossa vida, daí que a possamos torná-la coerente ou não, como se de uma obra-de-arte se tratasse. Ou seja, o único sentido que existe é subjectivo e não existe sentido “objectivo”, num ultra-mundo.


Segundo o seu raciocínio, esta coerência narrativa é livre, isto é motivada pelo livre-arbítrio?

Sim é livre, mas não sob livre arbítrio, porque este conceito pressupõe uma fundação num cogito cartesiano, ou eu transcendental kantiano, uma espécie de substrato perene e absoluto que subsiste independente do mundo, ideia falsa. O eu existe desde sempre no mundo.


Espero que tenha sido mais ou menos clara. Mas se continuar a ter dúvidas, disponha!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, estamos encarnados ou, como dizia Merleau-Ponty, somos "cogito encarnado": o empírico e o transcendental devem ser lidos á luz da existência corpórea.

André LF disse...

Francisco, aqui são 12h:18min.
Vou ler o seu post sobre Bloch.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Enquanto o André lê o Bloch, vamos dialogar:

1. Quanto a este ponto, parece ser muito romântica. Herder tinha uma visão semelhante. Nascemos nus, dizia ele, e Gehlen retomou essa ideia na sua antropologia. Somos seres de cultura mas não deixámos ser tb seres da/na Natureza. Penso que essa ruptura inaugural entre natureza e cultura deve ser repensada.

2. A questão do autor colocada pelo André é pertinente, se pensarmos na tese de Foucault. Precisamos ser mais dialéctivos, mas a Papillon preferiu a via estética. Porém, a nossa subjectividade é sempre-já mediada pela linguagem, pela cultura e pela sociedade, as quais sempre existiram antes de mim. O cogito tem a sua génese nas interacções sociais, como dizia Mead.

3. Percebi e não percebi a sua posição: somos encarnados e estamos em situação. Em última análise, a liberdade perde-se no pensamento e, nesse caso, perde a autoria do projecto que pretende ser. Isto quer dizer talvez que a liberdade só faz sentido na esfera pública...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A dialéctica hegeliana do senhor/escravo, a luta pelo reconhecimento, é fundamental: a minha liberdade deseja-se nessa luta com os outros... e em cooperação: o grupo-fusão de Sartre.

André LF disse...

Papillon, não fui tão rigoroso na distinção entre liberdade e livre-arbítrio. Compreendi as suas concepções. Entretanto ainda duvido da veracidade do argumento segundo o qual somos os verdadeiros autores de nossas vidas. Acho que não somos tão hegemônicos e livres na elaboração desta autoria. Há muitos acontecimentos que prejudicam a nossa criação. Há pessoas que fazem das próprias vida uma obra de arte. A meu ver isto é um mistério insondável. A maioria vive uma existência inautêntica, reificada. Grato pelos seus esclarecimentos!

André LF disse...

Gosto muito de dialogar com vocês!
Infelizmente aqui há pouca vida inteligente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André e Papillon

Vou brincar com a visão estética da Papillon: A Papillon é pan-individualista esteta! Parece ter esquecido o "Pan" que pré-existe à própria "arte da criação", tal como a "matéria rebelde" a partir da qual Deus criou o "mundo" (a criação). Somos seres da/na Natureza: pan-naturalistas que sonham como o pan-sobrenatural!
André: é um prazer dialogar consigo. Os nossos tempos são tão indigentes que a erudição dos mestres nos escapa. Parece que nasciam a falar grego e latim... :)

E. A. disse...

André,

È a verdade: a autenticidade é muito difícil, mas a emancipação é o ideal.

Francisco,

N percebo o seu ponto 1. Eu n disse q nascíamos nus. Nós somos sempre seres sociais, com instintos sociais. Portanto n é possível haver ruptura entre natureza e civilização. Ao sermos sociais, somos naturais.

O facto do cogito ser determinado pelo outro, n quer dizer que o indivíduo n se manifeste. Já sabe que em relação à estética sou inflexível e sigo Heidegger: a arte é o domínio por excelência do desvelamento do ser.

A "salvação" como já foi inscrito historicamente o seu significado é sempre pessoal. Surgiu com Sócrates e teve o seu auge com Cristo. N há salvação comum, isso é conceptualmente insustentável. Na esfera pública somos racionais e livres à maneira kantiana, portanto, um eu uniformizado e homogeneizado. É evidente que não posso recusar a esfera pública na realização do ser, mas ela é sempre, para mim, uma via inferior de acesso à verdade.

E. A. disse...

Sobre o "pan-etc" nem percebi. Queira repetir, se fizer o favor.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quando falei do grande Pan, pensava no panlogicismo (ou ismo) de Hegel da Ciência da Lógica e posteriormente criticado por Marx. Antes da lógica já está "pan", o material informe sem o qual não há lógica.

E. A. disse...

Sim, temos os princípios fundamentais da lógica para fazermos frente ao caos, até mesmo para o percepcionarmos.
N percebo é porque infere coisas q eu n digo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Sou um "electrão de subjectividade" em diálogo com outros electrões subjectivos: todos recebemos o fogo do céu!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu pretendo introduzir o sujeito nas partículas que formam a "matéria", de modo a explodir a visão mecanicista (sem vida) da natureza. Alio o meu electrão subjectivo à natureza para falar em coprodutividade, a técnica da aliança.

E. A. disse...

O fogo de Prometeus. :)

E. A. disse...

Quando diz que há subjectividades, quer dizer é que há vontades e a aliança seria o conciliar de vontades, mas como consegue determinar a vontade da Natureza? Interpreta-a de forma teleológica, à Aristóteles? E a casualidade de Darwin fica onde?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, seria uma técnica da vontade e das vontades. Estou pronto a abandonar Darwin ao seu mecanicismo.
O que tento é uma nova física ou a possibilidade de uma nova física: via Paracelso, Leibniz, Goethe, Schelling e Hegel: uma filosofia da natureza qualitativa. Sim, Aristóteles tinha essa visão e Averrois forjou a noção de "matéria criadora".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

De facto, não precisamos ceder à física de Galileu e Newton, até porque Hegel traçou uma linha recta até Einstein. Os físicos vão buscar inspiração à Índia e à China, mas nós temos essa tradição. Sim, a técnica de Yoga é desse género.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou tentar noutros posts sensibilizar para essa nova filosofia da natureza, mas não antes de Maio: este mês de Abril já teve muita produção. É preciso repartir sob risco de "secar". :))

E. A. disse...

Nem sei se o entendo... a teoria leibniziana da harmonia pré-estabelecida é incompatível com o seu propósito: os corpos são regidos por leis mecânicas, as almas, as mónadas, têm intenções e os dois são "harmonizados" a priori por Deus.

Está, fico à espera, então.

E. A. disse...

Sim, Francisco n seque a fonte. Que eu gosto de me banhar nela. ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Vou alimentar os melros: já me chamam e espreitam os bonitinhos espertos! São tão bonitos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

São infinitamente bonitos e inteligentes. Não percebo como existem pessoas que, olhando para eles, vêem "animais irracionais". Até os passarinhos, e há uma espécie muitooooo pequena (não a identifiquei), quase do tamanho de um comprimido, são bem inteligentes. Um entrou aqui na sala e tive quase um dia a resolver o problema dele, porque meteu-se debaixo da estante e ela é enorme e pesada e fixa. Mas consegui atrai-lo com comida, abri tudo e ele lá saiu. São alegres e cantam de manhã até à noite e tb durante a noite, sobretudo os melros. Tb sou visitado por um papagaio: onde está há barafunda.

E. A. disse...

Devia ter um gato: observaria a natureza em acção!
Talvez seja o que falta ao homem apático de hoje - como habita fora do campo, já n se espanta com a Natureza!
O senhor Jean-Marie Pelt, fundador do Instituto Europeu da Ecologia diz que o que fará mudar o neo-liberalismo, coveiro do futuro da humanidade, serão os "acidentes"... talvez mesmo só grandes acidentes façam acordar o bicho desnaturado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pelt é um botânico e tem obras muito interessantes: as orquídeas são no reino das plantas aquilo que somos no reino animal. Mas usa uma linguagem muito metafórica.
Bloch tb falava dos acidentes, partilho essa visão acidental.
Mas os "meus" melros são livres e comunicamos através do assobio: eles aprendem e basta soltar o assobio certo e lá estão eles presentes. Sempre tive animais; agora não tenho, porque a cadelinha deu-me cabo de tudo e da paciência. Mas tenho pena...

E. A. disse...

Eu tenho roseiras de várias cores, orquídeas, hortênsias, camélias, frésias, uma laranjeira, mini-palmeiras, heras e plantas aromáticas para a cozinha. Animais só os polinizadores e nós. :))

Mas tb tenho pena de não ter... adoro cães! São muito brincalhões. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Excelente estar com verde... Rosas são bonitas e o resto também. :)

André LF disse...

Francisco, seu texto sobre Bloch me deixou interessado pela obra deste pensador. Não há obras dele em português?
Sou apaixonado pela natureza e pelos pássaros, gatos, cães, golfinhos, cavalos, etc. Nutro por um respeito sagrado por estes seres. Muitas vezes vislumbrei no olhar destas criaturas mais vida interior do que no olhar dos meus compatriotas. Até mesmo a ameba merece a minha admiração :) Em um dos cantos da Ilíada, há uma passagem em que Zeus, ao ver os cavalos de Pátroclo chorando a morte deste, procura consolá-los, afirmando que os seres humanos, comparados aos cavalos, animais divinos, são seres miseráveis.

André LF disse...

Eis o trecho a que me referi:
"Et, à les voir (os dois cavalos e Pátroclo) se lamenter ainsi, le Cronide les prend en pitié, et, hochant la tête, il dit à son coeur:
Pauvres bêtes! pourquoi vous ai-je donc donnés à sire Pélee- un mortel!- vous que ne touche ni l'âge ni la mort? Est-ce donc pour que vous ayez votre part des douleurs avec les malheureux humains? Rien n'est plus misérable que l'homme, entre tous les êtres qui respirent et qui marchent sur la terre. (Iliade, XVII, 413-448, trad. de Paul Mazon).
Vale observar que a postura de Zeus muitas vezes é contraditória. Neste canto ele expressa seu desprezo pelo homem, este ser miserável. Em outras passagens da Ilíada,Zeus faz tudo o que está a seu alcance para proteger estes divinos "animais miseráveis".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Há tradução do Princípio Esperança da Contraponto, uma editora daí. Mas ainda não chegou a Portugal. Também gostava de o ler em português. Estive numa livraria agora e vi muitas traduções de Heidegger daí. Pena os livros chegarem muito caros, porque logo ao lado temos traduções espanholas ou francesas ou inglesas ou em alemão baratas.
Concordo e secundo tudo o que disse sobre os animais. :)

Papillon

Mil Planaltos de Deleuze está em português... Agora é a hora dos morcegos: uns "fofinhos" muito pequenos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

De facto, começamos a ficar cansados destes seres miseráveis. Confesso que por vezes fico mesmo farto de os escutar, até porque já não os procuro compreender.
Homero é um grande "pai"... e sempre actual. As edições aqui esgotam-se mas não sei se é lido ou só comprado para enfeitar a estante lá de casa. Porque há tugas que compram livros a metro... :)

André LF disse...

Já vi alguns energúmenos adornando as suas estantes com a Ilíada :(
Heresia grave! Também estou farto destes seres miseráveis. No meu caso, este enfado é perigoso, pois sou psicólogo. Ultimamente tenho pensado em mudar de profissão.

André LF disse...

O preço dos livros é muito elevado para os nossos padrões. As obras de Marcel Conche, por exemplo, um filósofo francês que aprecio, não estão disponíveis em português e sou obrigado a comprar as edições francesas. O preço delas, como sabe, está fixado em euro. Tenho de pagar o frete que não é barato
:(
Há um insidioso mecanismo a favor da manutenção da ignorância dos indivíduos.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

As profissões agora são muito estranhas e é nessas relações profissionais que ficamos sem paciência para os seres miseráveis. Pois, e psicólogo... Por vezes, dá vontade de levar as coisas à bofetada! Mas é preciso fingir que está tudo bem! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

São caros, mas as editoras portuguesas e brasileiras podiam associar-se de modo a tornar o livro mais barato.
O 1º volume de Nietzsche de Heidegger (editora dai) estava a 50 euros. Caro! Em média, os preços dos livros oscilam nos 20 euros.
Em termos de ciência, os mais baratos são em inglês!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Se pedir para a editora, paga na mesma o frete? Claro, estava a esquecer que nós não temos fronteiras. Assim ficam muito caros. Aqui temos a fnac que é francesa: facilita.

André LF disse...

De tanto fingir, tenho medo de me tornar um impostor. Talvez pudéssemos criar uma nova escola de psicologia, cujo método principal seria a bofetada :)
Temos também a fnac. Porém, o frete está inserido nas encomendas, o que aumenta significativamente o preço dos livros.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou então uma pancada em cima da mesa. Já o faço espontaneamente e quem está comigo dabe que atinguiu o limite da minha paciência, embora continue a conversar normalmente! :)

André LF disse...

Boa técnica :)
Vou adotá-la!

E. A. disse...

Obg. F., já sabia! Mas ainda não estão publicados os volumes todos ou já?

Morcegos? Ratos com asas? Que nojo!
Acho que devia fechar a janela, ainda lhe entram melgas e vampiros e mosquitos.