quinta-feira, 24 de abril de 2008

Filosofia Médica: Uma perspectiva teórica

A disciplina de Filosofia Médica ou Iatrofilosofia está lamentavelmente ausente nos currículos nacionais dos cursos de medicina, talvez devido à incapacidade de pensar conceptualmente exibida pelo português, que, por isso, «tem um verdadeiro horror à Filosofia, imaginando encontrá-la em tudo o que não entende. O português, continua Teixeira de Pascoaes, não quer interpretar o mundo e a vida, contenta-se em vivê-la exteriormente», de um modo emocional e trapaceiro que afoga a inteligência, e, mesmo quando parece despertar para o pensamento, fá-lo fingidamente não para compreender o mundo mas para tirar proveito e benefício próprios. Apesar de possuir uma língua erudita e rica, o português nunca produziu uma filosofia e a miséria dos cursos de filosofia estão aí para o confirmar.
A elaboração de um programa de Filosofia Médica não é tarefa nada fácil até mesmo para aqueles que sabem pensar sem trapacear, dada a extensão da bibliografia e a própria complexidade da medicina contemporânea. Contudo, pretendo combater determinadas tendências que parecem ocupar corruptamente o terreno da Filosofia Médica, através da enunciação de duas teses básicas negativas:
Tese 1. A Filosofia Médica não deve ser reduzida a um ramo da epistemologia, chamado iatro-epistemologia, que se ocupa da análise dos pressupostos filosóficos das ideias e das práticas médicas e da investigação dos problemas filosóficos surgidos da pesquisa e da prática médicas. Com esta primeira tese não pretendemos excluir a teoria do conhecimento científico do âmbito da filosofia médica; apenas lhe negamos a via de acesso privilegiado, sem abdicar do estudo da classificação e da hierarquia das ciência médicas.
Tese 2. A Filosofia Médica não deve ser reduzida a um ramo da ética, chamado bioética, embora trate necessariamente de problemas éticos colocados pela pesquisa e pela prática médicas e abordados em função das éticas filosóficas. Com esta segunda tese não pretendemos excluir a bioética ou mesmo a ética profissional do território da filosofia médica; apenas a subordinamos a uma nova política dos cuidados de saúde.
Com a enunciação destas duas teses negativas simples, abrimos um novo campo de estudos para a filosofia médica, liberto dos estratagemas moralistas, empresariais, corporativistas e religiosos instalados, de modo a pensar radicalmente a especificidade da medicina actual, altamente tecnológica, farmacológica, genética e cada vez mais submissa à lógica capitalista de mercado. O nosso plano de estudos de Filosofia Médica segue quatro caminhos selvagens e a nossa reflexão gira em torno das seguintes temáticas dominadas por uma delas:
A) Filosofia da Biologia ou Biofilosofia. Apesar de já existirem revistas de biofilosofia, a literatura é ainda muito escassa neste domínio da investigação filosófica, apesar de filósofos clássicos importantes, tais como Aristóteles, Kant e Hegel, terem dedicado muita atenção aos fenómenos biológicos. O próprio Darwin reconheceu a superioridade da biologia aristotélica, bem explanada no seu tratado De Anima, em comparação com a de Linnaeus e a de Cuvier, e P.B. & J.S. Medawar dedicaram-lhe um artigo interessante no "Dicionário de Biologia". Ora, como já sabia Paracelsus, a concepção da vida está intimamente ligada a uma teoria da natureza, donde resulta a necessidade de pensar uma medicina do ambiente.
B) Filosofia da Tecnologia ou Biotecnologia. Com excepção dos trabalhos de Hans Jonas, fortemente marcados por uma abordagem ética e jurídica, a biotecnologia não tem sido bem estudada pelos filósofos profissionais, apesar de constituir o maior desafio da sociedade contemporânea, ao qual convém acrescentar a engenharia biomédica, a engenharia genética, a telemedicina (medicina em rede e medicina telemática) e a cybermedicina. O projecto do genoma humano não pode ser desprezado.
C) O Normal e o Patológico. Os conceitos de doença e de saúde têm sido muito estudados, mas numa perspectiva demasiado "construtivista social", frequentemente com coloração feminista, da qual resulta necessariamente a desconstrução do modelo médico. Torna-se necessário repensar filosoficamente o modelo médico e protegê-lo das ondas relativistas que invadem o pensamento contemporâneo, aliás demasiado feminino. Mas, nesta tarefa de repensar o modelo médico no quadro do actual pluralismo médico, é preciso ter em conta a tese de Ivan Illich, segundo a qual «a organização médica ameaça a saúde», de modo a colocar um travão ao processo de medicalização da vida em curso, colocado ao serviço das indústrias médicas e farmacêuticas, e, numa nova perspectiva mais substancial e relacional, procurar elaborar uma ontologia fenomenológica do Homo Patiens (Homem Doente). Contudo, nesta reflexão verifica-se facilmente que o conceito de doença é médico, mas o conceito de saúde é filosófico e, portanto, político.
D) Meditatio mortis. Este tema constitui o fio condutor de toda a elaboração do plano de estudos da filosofia da medicina, possibilitando não privilegiar as abordagens bioética e bioepistemológica. Neste sentido, torna-se necessário não só perspectivar as diversas imagens da morte, mas também mostrar que morte e vida constituem as faces da mesma moeda, de modo a repensar a medicina da dor e a geriatria, esse mito da moderna sociedade de consumo metabólicamente reduzida.
Outros temas que podem ser articulados com estas quatro temáticas básicas são a iatrologia (estudo dos problemas lógicos da medicina), iatrossemântica (estudo dos problemas semânticos da medicina), iatrognosiologia (estudo dos problemas do conhecimento médico), iatrometodologia (estudo dos problemas metodológicos da pesquisa e da prática médicas), iatro-ontologia (estudo dos conceitos ou hipóteses ontológicos subjacentes às doutrinas e práticas médicas), iatro-axiologia (estudo dos valores médicos), iatro-ética (estudo dos problemas morais suscitados pela pesquisa e prática médicas) e iatropraxeologia (estudo dos problemas gerais colocados pela prática médica individual e pela concepção da saúde pública). É evidente que um plano de estudos iatrofilosóficos que gira em torno de uma meditatio mortis está fortemente assente na teoria social crítica e não abdica da perspectiva política da autonomia: aquela que deseja transformar o mundo, de modo a torná-lo habitável e mais acolhedor.
A Filosofia Médica não é uma mera espectadora da actividade médica, porque pode exercer efectivamente um papel activo na actividade médica e na sua organização. Este papel nem sempre tem sido benéfico, sobretudo em Portugal, porque, neste país, as pessoas não estudam seriamente filosofia da medicina, preferindo reproduzir noções moralistas conservadoras sobre a actividade e a pesquisa médicas. O objectivo da Filosofia Médica é precisamente afastar de cena esses luso-ignorantes maléficos, mais servidores do Diabo do que de Deus, e incentivar os estudos de iatrofilosofia, de modo a contribuir para a formação de médicos com competência filosófica e de filósofos com competência médica. Seguindo o exemplo de Abel Salazar, podemos avançar com um projecto ousado de Filosofia Médica em Portugal. De certo modo, a máxima de Abel Salazar («Um médico que só sabe medicina nem medicina sabe») retoma o projecto filosófico de Hipócrates e da medicina antiga e clássica. Paracelsus disse-o, nos novos tempos, nestes termos: «O médico deve ser superior, deve saber mais. Pois o médico deve ser um pai da Filosofia». Em suma, trata-se de elaborar uma teoria crítica da medicina.
J Francisco Saraiva de Sousa

16 comentários:

André LF disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

A formação médica está muito desumanizada. Abel Salazar era médico e também filósofo e pintor. Mas era a excepção e, apesar de ter um Instituto de Ciências Biomédicas com o seu nome, a sua obra e ambição foram sufocadas pela mediocridade portuguesa. Estou cada vez mais convencido que o português é muito emotivo e, por isso, pouco inteligente. Muita inveja: Portugal é um país muito invejoso, terrivelmente invejoso. Não sei explicar esta inveja portuguesa... Tudo morre aqui devido à fauna nacional... Como diria Florbela: Uma tristeza!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Concordo com a sua perspectiva filosófica: o Manuel diz que a Filosofia é transversal a todas as áreas e que devia ser estudada em todos os cursos. De facto, o divórcio entre filosofia e ciências tem sido fatal para todos!

André LF disse...

Francisco, eu tinha escrito o meu comentário, mas não pude completá-lo devido à problemas do mundo virtual. Eis o que eu tinha escrito:
" Francisco, seu texto nos traz um tema muito pertinente. Sou formado em Psicologia. Nos meus tempos de faculdade, eram notáveis a ignorância e a indiferença de muitos dos meus colegas e professores com relação à filosofia. Sempre lhes disse que a Psicologia (na realidade, “as Psicologias, tendo em vista o amplo número de escolas) estava começando a andar e a filosofia já tinha percorrido um amplo trajeto. Durante os estágios na faculdade, convivi com alguns médicos de diferentes especializações. Todos eles tinham algo em comum: a falta de competência filosófica. Assim como os cavalos que só enxergam o que está à sua frente, os médicos pareciam ver apenas o que pertencia ao estreito âmbito de suas respectivas especializações. Importantes temas tais como a morte, a angústia, o temor diante da aniquilação do ser, amplamente debatidos nas faculdades de filosofia, infelizmente não recebem a atenção dos médicos. A Filosofia Médica não é observada no Brasil.
Recentemente estive em consulta médica. Assim que o médico me viu, me senti como um extraterrestre ou o inseto da Metamorfose. Parece-me que os conhecimentos médicos dele- que não eram terapêuticos- transformaram-no em andróide a serviço da Técnica Médica. Há médicos para os quais somos apenas partes do corpo humano. A frase de Paracelsus que você mencionou é de uma atualidade espantosa."

André LF disse...

O brasileiro também é emotivo e, por conseqüência, pouco dado à reflexão. Para muitos dos meus compatriotas, o cérebro é um mero enfeite. Fico em dúvida sobre o principal defeito do brasileiro. São tantos: preguiça, malandragem congênita, tendência à corrupção, ignorância, etc. Somos conhecidos por nossas belas (e fáceis) mulheres, pelo nosso Carnaval (que se prolonga por quase todo o ano), pelo nosso "caráter festivo". Mal sabem os gringos que esta "festividade" não é autêntica, não passa de um estado artificial.
Há até a expressão famosa o "jeitinho brasileiro", isto é, a nossa capacidade para burlar as regras, "passar rasteira" nas leis e convenções, convencer maliciosamente.
Certa vez encontrei um dinamarquês no Rio de Janeiro. Perguntei-lhe o que lhe atraía no Brasil. Ele me disse que gostava de vir aqui para festejar. Não preciso dizer mais nada, não é? :)
Enfim, ninguém nos leva a sério.

André LF disse...

Leia-se "devido a problemas" e não "à problemas" :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Portugueses e brasileiros são malandros! Aqui também (sobretudo os funcionários públicos) andam sempre a passear e o povo festeja sempre que pode. Mas tb andam com depressão financeira! Estamos condenados pelo nascimento a sermos portugueses ou brasileiros! Esta onda generaliza-se pelo mundo... e é invencível... :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Gostei da expressão: "o cérebro é um mero enfeite". E pesa-lhes muito! :)

Manuel Rocha disse...

Que mauzinhos que vocês estão !!!!

::)))

Belissimo o post!
Gosto de ver a teoria critica a desbravar caminho contra a institucionalização corporativa do tecido social e da vida que encara o Homem como produto industrial de série, montagem de componentes.

André LF disse...

Rs, é um enfeite muito pesado!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Precisamos avançar com uma Filosofia da Natureza": uma teoria crítica da natureza.
Eu e o André estávamos a ser simplesmente "realistas"! :))

André LF disse...

Francisco, hoje eu acordei com uma overdose de realismo. Não estou me tolerando hoje :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Eu só de pensar que amanhã é 25 de Abril foco tb com overdose de tugas corruptos.
Ontem vi um programa do amigo Mário Soares e fiquei surpreso com o que contou sobre a sua prisão e estadia entre presos comuns! Socialismo na gaveta! Os comuns vendem-se facilmente em troca de uns "bolinhos" e deixam-se "manipular". E os seus "amigos americanos"! Realismo é pensar que as pessoas corrompem-se facilmente e os projectos são esquecidos: "trama o próximo e garante o teu lugar ao sol" é o lema dominante.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Agora entendo a diferença entre Ditadura e Democracia. Na ditadura somos pobres não livres, enquanto na democracia somos pobres livres! O pai da democracia portuguesa é "brilhante"! Pensei que o combate era contra a mediocridade e a corrupção, mas enganei-me: Pobres mas livres; corruptos e ricos: Eis a democracia! (Estou irónico!) :)

André LF disse...

Gostei muito da sua expressão: "Na ditadura somos pobres livres enquanto na democracia somos pobres livres". Nunca vi definição melhor!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mário Soares ensina-nos a essência da "democracia"... Podia ser um pouco mais "cínico" mas não precisa...
O que me impressiona e deixa triste é o facto das pessoas não perceberem ou fingir que nãp percebem: muito escravas da sua falta de entendimento.