«A raiz do estético está na sensibilidade. O que é belo começa por ser sensorial: apela para os sentidos; é agradável, objecto de impulsos não sublimados». (Herbert Marcuse) A estética é uma disciplina da filosofia e, embora a beleza já tenha sido analisada desde a emergência do pensamento filosófico, nomeadamente por Platão e por Aristóteles, coube a Kant elaborar uma teoria estética como parte integrante do seu sistema filosófico na «Crítica da Faculdade do Juízo», e, posteriormente, a Hegel na sua monumental «Estética». Antes do século XVIII, não havia uma estética como ciência da sensualidade que correspondesse à lógica como ciência do entendimento conceptual. Só em meados do século XVIII, surgiu a estética como uma nova disciplina filosófica, entendida como a teoria do Belo e da Arte. Este uso moderno do termo foi estabelecido por Alexander Baumgarten: a mudança de significado do termo de "pertinente aos sentidos" para "pertinente à beleza e à arte" atravessa a própria obra de Kant. Na dimensão estética, a experiência básica é mais sensual do que conceptual: a percepção estética é essencialmente intuição e não noção. Como escreveu Herbert Marcuse: «A natureza da sensualidade é a "receptividade", a cognição obtida por meio da sua afectação por determinados objectos. É em virtude da sua relação intrínseca com a sensualidade que a função estética assume a sua posição central. A percepção estética é acompanhada do prazer. Este prazer deriva da percepção da forma pura de um objecto, independentemente da sua "matéria" ou do seu "propósito" (interno ou externo). Um objecto representado na sua forma pura é "belo". Tal representação é obra (ou, melhor, o jogo) da imaginação. Como imaginação, a percepção estética é sensualidade, ao mesmo tempo mais do que sensualidade (a "terceira" faculdade básica): dá prazer e, portanto, é essencialmente subjectiva; mas na medida em que esse prazer é constituído pela forma pura do próprio objecto, acompanha universal e necessariamente a percepção estética, para qualquer sujeito que percebe. Embora sensual e, portanto, receptiva, a imaginação estética é criadora: numa livre síntese da sua própria criação, ela constitui beleza. Na imaginação estética, a sensualidade gera princípios universais válidos para a ordem objectiva», entre os quais se destacam a "intencionalidade sem intento" e a "legitimidade sem lei". Para Kant, a dimensão estética é o meio onde os sentidos e o intelecto se encontram e a sua mediação é realizada pela imaginação. Esta mediação é a tentativa de reconciliar as duas esferas da existência humana que tinham sido separadas e despedaçadas por um princípio de realidade repressivo. Dado a faculdade estética ser afim da sensualidade (pertinente aos sentidos), a reconciliação estética implica um fortalecimento da sensualidade contra a tirania da razão e exige, em última instância, a libertação da sensualidade da dominação repressiva da razão.
H. Kawabata & S. Zeki (2004) retomaram a "questão kantiana do gosto" (ou simplesmente a sua noção de que a percepção estética da beleza é sensual e gratificante) em termos experimentais e, usando a técnica de ressonância magnética funcional, procuraram saber quais as áreas do cérebro envolvidas quando os sujeitos observam ou vêem pinturas que consideram ser belas, independentemente da categoria de pintura. Os resultados mostraram que a percepção de diferentes categorias de pinturas estava associada com distintas áreas visuais especializadas do cérebro: o córtex orbito-frontal é diferencialmente envolvido durante a percepção de estímulos belos e feios, independentemente da categoria de pintura, e a percepção de estímulos belos ou feios mobiliza de modo diferente o córtex motor. Estudos anteriores tinham mostrado que o córtex orbito-frontal estava envolvido na percepção de estímulos de recompensa (Aharon et al, 2001; Francis et al., 1999; Rolls, 2000; Small et al., 2001). Este estudo de Kawabata & Zeki (2004) mostrou que também está envolvido na percepção de estímulos considerados feios. Portanto, os juízos das categorias da beleza e da fealdade são «processados» nas mesmas áreas; o que varia é a sua actividade, a qual aumenta em resposta a estímulos aversivos (Kawasaki et al., 2001) ou feios. Outras áreas envolvidas nos juízos estéticos são o cingulo anterior e o córtex parietal esquerdo, a primeira das quais está associada com uma diversidade de estados emocionais, tais como o amor romântico (Bartels & Zeki, 2000), a resposta agradável à música (Blood & Zatorre, 2001) e a visão de pinturas sexualmente excitantes. Esta activação parece implicar uma conexão entre o sentido estético (agradável aos sentidos) e as emoções. O córtex parietal está associado com a atenção espacial (Corbetta & Shulman, 2002) e, neste caso, com a comparação entre estímulos belos versus neutrais. Este estudo mostrou que existem dois padrões diferentes de activação do cérebro: a actividade relacionada com tipos de estímulos particulares, os quais envolvem áreas especializadas, em particular a área denominada V4, na cor, e a área denominada V5, no movimento. A activação do córtex motor ocorre na transgressão de normas sociais (Berthoz et al., 2002), no medo induzido por estímulos visuais (Armony & Dolan, 2002), na extraordinária congruência das vozes e das faces, bem como na raiva (Dougherty et al., 1999), e nos estados de consciência visual (Pinns & Ffytche, 2003). No caso dos juízos estéticos, pode estar envolvido quando os estímulos se tornam conscientes. Contudo, estes resultados não trazem nenhum esclarecimento à estética filosófica, excepto a «confirmação» de que o belo está associado à recompensa, portanto, à gratificação (emoções positivas), e o feio, à aversão e talvez à punição (emoções negativas), sendo por isso muito difícil especular sobre os nossos juízos estéticos a partir dos seus correlatos neurais, sobretudo quando a pesquisa pretende ser uma formulação experimental do problema kantiano da validade universal dos juízos estéticos. (Este post já tinha sido editado no meu blogue "NeuroFilosofia", com o título Cérebro e Beleza. Sofreu muitas alterações e pode ainda ser alterado. Já agora reconduzo para este excelente blogue da minha amiga Denise: Rabiscos e Garatujas.) J Francisco Saraiva de Sousa
7 comentários:
Excelente.
Considero que é muito difícil especular sobre os nossos juízos estéticos a partir dos seus correlatos neurais. Correlatos são só correlatos. Um erro frequente dos cientistas é confundirem conceitos, misturarem correlato com causalidade. E ainda pior, é estabelecerem a causalidade num só sentido, no sentido do cérebro para a mente.
A mente (logo os juízos estéticos) desafia os princípios clássicos sobre a natureza da causalidade. Segundo a crença científica, nos conceitos clássicos de causalidade, se conhecessem com exactidão os estados cerebrais correlatos da fenomenologia mental, estariam aptos a explicar toda a fenomenologia mental, e como tal, também a estética. Ora, isto é um erro colossal. Todavia, a maioria da “boa gente” recusa-se a aceitar que comete este erro.
Quanto ao padrão do gosto, e aos juízes ideais para legitimar o que é uma obra de arte bela, ou artisticamente boa, isso já é outro problema…
Caro, caríssimo, J Francisco,
Nem sabe o quão feliz fico com este seu post. No meu RG gerou-se um debate sobre o conceito de sensualidade e eu, cansada e ocupada, tive alguma dificuldade em clarificar o conceito. Se me permite, vou citá-lo, e com muito gosto, no meu estaminé.
Um abraço
Fernando Dias
Apesar de só capatarem correlatos neurais, estes estudos de ressonância magnética funcional abrem algumas pistas. Ainda não tive tempo de processar todos esses artigos, mas há uma associação deveras interessante entre a beleza e a excitação sexual: a sensualidade de Marcuse está lá, embora na minha perspectiva não se deva defender uma libertação total de Eros (e Marcuse também se apercebeu disso), porque Eros foi colonizado pelo mercado do prazer, logo converteu-se em sensibilidade mutilada.
Mas enquanto não soubermos como processos neurais se transformam em processos mentais, para usar a linguagem de Damásio, pouco podemos inferir destes estudos que desprezam outras dimensões dos fenómenos estéticos. Achei graça foi os autores deste estudo pretenderem submeter à experimentação a teoria kantiana dos juízos estéticos. Mas é bom usar novas metodologias, porque ficamos sempre mais "ricos".
Denise
Li o seu post e fiquei muito sensibilizado com as suas palavras muito amigáveis. Infelizmente Baumgarten é muito desconhecido, bem com Schiller: a "ciência da sensibilidade/sensualidade" foi recuperada por Marcuse que pretendia reformular o próprio projecto científico, criandoo uma ciência da imaginação não-dominadora, não-mutilante... Mas prometo voltar a este assunto.
Abraço
Já agora recomendo a leitura do Prólogo da "Crítica da Faculdade do Juízo", o qual possibilita uma compreensão rápida do pensamento de Kant. Depois convém ler a analítica do belo e a do sublime. (O senso comum e a sua relação com o juízo! Um tema do agrado de H. Arendt.) Um livro que ajuda é o de Heidegger: "Kant e o Problema da Metafísica", que marcou a leitura de Marcuse. Cassirer também tem bons estudos!
Obrigada pelas recomendações. E pela classificação atribuída ao meu RG. Excelente, vindo de si, é uma honra!
Lá lera Kant e Heidegger. Também algumas consideraçõs do Baudelaire. Não conhecia, porém, Marcuse.
Denise
Baudelaire é excelente leitura! E depois Walter Benjamin. Marcuse foi um teórico de 68! Esquecido mas cheio de juventude.
F. Dias
A causalidade já cansa um pouco, sobretudo na filosofia anglosaxónica. A sua frase:
"E ainda pior, é estabelecerem a causalidade num só sentido, no sentido do cérebro para a mente.",
faz-me pensar que, de certo modo, não conseguimos escapar ao dualismo: há o sentido mente para o cérebro, mas é mediado pela sociedade, a língua e a cultura. Aliás, todas elas "presentes" nos luízos estéticos.
Porém, a associação com a excitação sexual faz-me lembrar que existem certas perturbações ou diferenças sexuais que podem ajudar a clarificar a "estética". Mais ainda é só uma intuição!
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