terça-feira, 8 de abril de 2008

Tradição e Modernização Reflexiva

«Existe um quadro de Klee que se intitula Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar do local em que se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente deve ter o anjo da história. O seu rosto está voltado para o passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de acontecimentos, ele vê apenas uma única e só catástrofe, que não pára de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança a seus pés. Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera das suas asas, e é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas. Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos progresso». (Walter Benjamin)
Mas afinal o que é a tradição? No seu sentido mais geral, a tradição é, como diz Thompsom, «um traditum, isto é, qualquer coisa que é transmitida e trazida do passado». Thompson distingue quatro aspectos diferentes da tradição, frequentemente confundidos, mas interligados entre si: o hermenêutico, o normativo, o legitimador e o identificador.
1º. Aspecto hermenêutico. A hermenêutica de Heidegger a Gadamer encara a tradição como um conjunto de pré-compreensões ou de preconceitos de fundo que são aceites pelos indivíduos quando se orientam na vida quotidiana e que são transmitidos de geração em geração. Para a hermenêutica, a tradição não constitui um guia normativo usado para orientar a acção, mas um esquema interpretativo, uma estrutura mental prévia, usada para ajudar os indivíduos a entender e a compreender o mundo em que foram e estão lançados. Toda a compreensão funda-se em pré-compreensões ou, como prefere dizer Gadamer, em preconceitos, portanto, num conjunto de conceitos que tomamos como certos e evidentes e que fazem parte integrante da tradição a que pertencemos. Nenhuma compreensão pode ser completa e inteiramente isenta destes preconceitos fácticos ou contrafácticos.
Como já vimos noutro post, Gadamer leva a cabo a requalificação da crítica iluminista da tradição. Ao opor as noções de razão, de conhecimento científico e de emancipação às noções de tradição, de autoridade e de mito, o Iluminismo não descartou a tradição como tal, mas articulou um conjunto de novos preconceitos e de novos métodos que formavam o núcleo duro de outra tradição: a tradição do próprio Iluminismo. Por conseguinte, o Iluminismo não constitui a antítese da tradição, mas é, ele próprio, uma tradição entre outras tradições: um conjunto de suposições ou preconceitos aceites como verdadeiros, sem exame prévio, que articulam uma estrutura cognitiva que ilumina o conhecimento do mundo. Quando Habermas lhe lembra que a tradição pode ser criticada, Gadamer responde que esta é sempre uma tradição aberta e em constante mudança.
2º. Aspecto normativo. As tradições também são conjuntos de suposições, crenças e padrões de comportamento, trazidos do passado, que servem como princípios orientadores para as acções e as crenças do presente. Este aspecto normativo da tradição manifesta-se de duas maneiras: a) as tradições do passado podem funcionar como princípio normativo no sentido de rotinizarem determinadas práticas (práticas rotineiras), desse modo realizadas com pouca reflexão, dado que sempre foram realizadas da mesma maneira ao longo dos tempos. A vida quotidiana desenrola-se normalmente sob o signo da rotina. b) As tradições do passado também podem funcionar como princípio normativo no sentido de fundamentarem tradicionalmente determinadas práticas (práticas tradicionalmente fundamentadas), isto é, de justificá-las pela referência à tradição.
3º. Aspecto Legitimador. A tradição pode, em determinadas circunstâncias, servir como fonte de apoio para o exercício do poder e da autoridade. Max Weber distinguiu três modos de estabelecer a legitimidade de um sistema de dominação: a) a autoridade legal, cujas reivindicações de legitimidade se fundam em fundamentos racionais que envolvem a crença na legalidade das normas promulgadas; b) a autoridade carismática, cuja legitimidade se baseia em fundamentos carismáticos que implicam a devoção à santidade ou ao carácter excepcional de um indivíduo; e c) a autoridade tradicional, cuja legitimidade fundada na tradição envolve a crença no carácter sagrado de tradições imemoriais.
No caso da autoridade legal, os indivíduos obedecem a um sistema impessoal de normas, porque a burocracia é o regime de ninguém e onde ninguém pode ser responsabilizado, excepto os chamados "criminosos" criados pelas próprias leis. No caso da autoridade tradicional, as pessoas obedecem à pessoa que ocupa a posição de autoridade tradicionalmente sancionada: as suas acções tornam-se obrigatórias por tradição. Nalgumas circunstâncias, a tradição pode ter um carácter político, funcionando não só como princípio normativo de acção, mas também como base para o exercício do poder exercido sobre outros, de modo a garantir a sua obediência. Neste sentido, as tradições tornam-se ideológicas, sendo usadas para sustentar relações desiguais e assimétricas de poder.
4º. Aspecto Identificador. Este aspecto da tradição diz respeito ao papel desempenhado pela tradição na formação da identidade: identidade pessoal e identidade colectiva. A auto-identidade refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo, como sendo um indivíduo dotado de determinadas características ou traços pessoais e situado numa determinada trajectória de vida. A identidade colectiva refere-se ao sentido que cada um tem de si mesmo como sendo membro de um grupo social ou colectividade mais vasta. Trata-se, portanto, do sentido de pertença: a noção de fazer parte integrante de um grupo social que tem uma história própria e um destino colectivo comum.
O processo de formação de identidade não começa do nada; pelo contrário, como já vimos noutro post, constrói-se sempre a partir de um conjunto de material simbólico pré-existente que constitui a fonte da identidade. Ora, as tradições são precisamente reservatórios de suposições, preconceitos, crenças e padrões de comportamento que, trazidos do passado, fornecem os materiais simbólicos necessários para a auto-formação da identidade individual e colectiva. Assim, o sentido que cada um tem de si mesmo e de pertencer a um grupo social é moldado e condicionado pela tradição a que pertence. (CONTINUA)
J Francisco Saraiva de Sousa

11 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Meus amigos

Deixem os vossos comentários. Hoje estou a sentir-me muito mal. Regresso logo que possa. Já não consigo ver o computer. Parece distante...
Abraço

Manuel Rocha disse...

Hummm....você devia levar a sério a minha sugestão de vir até cá ( sem computer ) dar-me uma ajuda a mondar os alhos.

Cuide-se !

Fernando Dias disse...

Desejo um rápido restabelecimento, Francisco!
Só não sei como consegue ter fôlego para construir estes textos (tratados) da melhor filosofia que tenho vindo a ler.

Um abraço de melhoras

E. A. disse...

Acho excelente a proposta do Manuel!
O Francisco deve deixar a "cidade" e fazer uma cura pelas "serras"... :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado Amigos

Já descancei um pouco a cabeça; se não tiver hemorragia nasal, pode ser que o sangue não tenha perdido novamente a sua capacidade de coagular. Daqui a pouco tomo um duche!

Este problema da tradição tomou conta de mim. pensava retomar Heidegger e Walter Benjamin como fontes de inspiração, mas Howard Caygill cobsidera-os como destruidores da tradição com estranhas e inusitadas proximidades. Pessoalmente vejo a linguagem, memória e história noutros termos e, nesse caso, a tradição não é destruida mas resgatada e salva no presente. Novamente aqui o problema da narração!

Papillon

Tenho sentido de humor. Não fique a cismar naquilo que não pensei. Daqui a pouco já processei a dupla-doca e os efeitos desaparecem. :)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O que a Papillon pensa sobre este caminho de fuga para a frente? Já pode adivinhar quais os aspectos da tradição abandonados e os que permanecem nos nossos horizontes de compreensão do mundo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos virtuais do E-Mail

Tenho recebido alguns e-mails a pedirem-me artigos científicos e acesso livre a certos sites, a propósito das referências bibliográficas. Mas, nessa matéria, pouco posso fazer, porque não posso nem devo fornecer palavras-chave ou enviar o material via e-mail: é ILEGAL! Contudo, pode ser comprado... on-line, mediante assinatura ou um a um. Sem ajuda da Universidade, isso fica muito e muito caro, porque 5-6 folhas podem custar tanto que um livro ou mais!
O material que aqui edito está publicado! Podem fazer referência recorrendo a uma secção onde colocam os artigos online com respectivos endereços electrónicos.

Cumprimentos virtuais

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Além disso, aproveito para vos dar um conselho: Se estão a fazer tese de doutoramento sobre a minha área, façam a vossa própria bibliografia em função do plano que delinearam para a vossa pesquisa e da vossa hipótese de trabalho: a minha era, como viram, biologicamente redutora. Já agora acrescento que não achei material clinicamente interessante ou que merecesse um estudo à parte. O papel da clínica aqui é deveras limitado e talvez muito retristo à relação médico/paciente. Se puder ajudar noutro assunto, façam o favor de me contactar como têm feito. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Outra coisa: Ainda não faculto a minha tese de doutoramento, embora ela possa ser consultada em lugar próprio.
E também ainda não estou preparado para dar uma entrevista sobre as suas temáticas. Espero que o meu amigo jornalista online tenha um pouco mais de paciência comigo. Talvez daqui a algum tempo me apeteça falar sobre ela. Agora desejo METAFÍSICA! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Emboa a Papillon discorde com a publicação destes meus três últimos comentários, penso que eles se justificam pelo facto de não ter tempo para responder pessoalmente a todos. Mas, se for agraciado pela expansão do tempo, espero responder individualmente a cada um via e-mail. Mas neste momento a minha hora metafísica ocupa todas as minhas preocupações.

E. A. disse...

p.s.: só para que os leitores entendam, a aveugle.papillon é um dos anjos de Francisco Saraiva de Sousa. Mas como anjo vanguardista, em vez de segredar ao ouvido, comunico via net. :)

Ah, n vale a pena consultarem-me! Cada um tem o seu anjo virtual! Procurem-no!