quarta-feira, 23 de abril de 2008

A Utopia Médica de Bacon

«A morte pode tornar-se um símbolo de liberdade. A necessidade de morte não refuta a possibilidade de libertação final. Tal como as outras necessidades, (a morte) pode tornar-se também racional, indolor. Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte — num momento da sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão». (Herbert Marcuse)
Ernst Bloch analisou as «utopias médicas» na sua magnífica obra «Das Prinzip Hoffnung» e, nos seus diálogos com a história da filosofia, destacou sempre o pensamento de Francis Bacon, que partilhava com Thomas More a luta contra o envelhecimento. Aliás, Francis Bacon foi mesmo o primeiro filósofo a exigir o prolongamento da vida como um novo dever dos médicos. Segundo Bacon, a medicina tinha uma tripla função:
1) a preservação da saúde;
2) a cura das doenças;
3) e o prolongamento da vida, que era, segundo ele, «a mais nobre de todas» as funções médicas.
Esta ideia seminal do prolongamento da vida está na origem não só de uma nova concepção da morte e do envelhecimento e do surgimento de novas disciplinas e actividades de saúde, tais como a geriatria que Ivan Illich criticou com muita pertinência, como também de um novo mito social: o valor social da velhice, que actualmente em Portugal parece ser «desvalorizado», pelo menos em termos de mercado de trabalho, embora os "colarinhos brancos grisalhos" (W. Mills) se recusem a abandonar as suas longas e pardacentas carreiras, alegando desejar morrer à mesa de trabalho. Isto significa que, para os decisores nacionais, o envelhecimento dos outros começa a ser encarado como um problema económico: a velhice dos outros, não a sua, tornou-se pesada e, neste clima de ganância económica, a eutanásia começa a emergir na agenda dos mass media. Porém, a eutanásia tem emergido de forma dissimulada: o poder estabelecido inventa novas formas de se livrar dos indesejáveis, nomeadamente convertendo-os em "cobaias públicas" para aperfeiçoar as habilidades médicas usadas posteriormente nas clínicas privadas. A utopia realizada está a tornar-se um terrível pesadelo e, para que isso não aconteça sistematicamente contra os humilhados e os ofendidos, a teoria crítica deve rever a sua posição perante o fenómeno incontornável da "morte certa" (Heidegger): o direito individual de escolher o momento apropriado para morrer deve ser garantido pelo Estado e pelo seu sistema nacional de saúde, porque esta escolha é a única que realiza plenamente a liberdade do indivíduo (Hegel).
Todos os mortais, mesmo e sobretudo os mais brilhantes entre eles, sentem uma enorme angústia em face da possibilidade incontornável do nada absoluto. Contudo, dado o seu enraizamento na tradição filosófica ocidental e a impossibilidade de domar a morte, os filósofos mais dispares entre si acabam por revelar muitas similitudes entre si, encarando a morte certa como um aviso para assumir uma vida autêntica, independentemente do que se possa entender por autenticidade. Assim, por exemplo, Marcuse e Heidegger são profundamente hegelianos no que respeita à compreensão da finitude humana. Marcuse aceita a eutanásia. Depois de uma longa vida gratificante ou mesmo condenada ao sofrimento sem cura, o mortal pode e deve escolher o momento em que quer pôr termo à sua própria vida, na certeza de que o mundo caminha no sentido certo.
Um estudo recente de biomedicina social (Hospital de São João do Porto/Faculdade de Medicina) mostrou que um número significativo de pessoas idosas encaram positivamente a possibilidade de eutanásia, embora este estudo não explicite as razões de tal atitude. Certamente que não desejam uma morte assistida por terem vivido uma vida gratificante, mas talvez porque, a partir de certa idade, a vida deixa de ser vivida com esperança: os cuidados médicos permitem aos velhos adiarem a sua morte, sem lhes fornecer qualquer apoio. O prolongamento da vida é, como demonstrou Ernst Bloch, a realização de uma velha utopia médica, mas, de facto, esse prolongamento é uma agonia constantemente adiada e constantemente condenada à morte certa. Além disso, inverte a preocupação fundamental da política: a natalidade (sem idades) e não a mortalidade (Hannah Arendt).
A filosofia da medicina de Bacon tem aspectos muito interessantes no que diz respeito aos regimes de saúde e aos cuidados de saúde: «A observação de si próprio, o que faz bem e o que nos faz mal, é a melhor medicina para preservar a saúde» (Bacon). Com esta tese de Bacon, está esboçada a tese dos cuidados de si como base de uma medicina preventiva, reforçada pela necessidade social de abertura da medicina à sociedade leiga e pela necessidade de implementar um novo projecto aberto de educação médica.
Os campos da medicina preventiva e da saúde pública partilham os objectivos de prevenir doenças específicas, promover a saúde e aplicar os conceitos e as técnicas da epidemiologia para alcançar esses objectivos. Dando corpo ao dever médico estabelecido por Bacon de prolongamento da vida, a medicina preventiva procura prolongar a vida das pessoas, ajudando-as a melhorar a sua própria saúde. Por sua vez, a saúde pública procura promover a saúde nas populações através de esforços comunitários organizados. Embora possam ser tratadas separadamente, convém destacar a continuidade entre a prática da medicina preventiva pelos médicos e outros profissionais da saúde, as tentativas das pessoas e das famílias para promover a sua própria saúde e dos seus vizinhos e os esforços dos governos e agências voluntárias para alcançar os mesmos objectivos de saúde.
A educação médica ocidental tem destacado mais o diagnóstico e o tratamento médico das doenças do que a promoção da saúde, e, mesmo quando se foca a medicina preventiva, esta tende a ser vista como cuidado de saúde prestado por médicos com a ajuda de outros profissionais da saúde, como se as pessoas, os seus potenciais «doentes», não tivessem o direito e o dever de cuidar de si próprios e só recorrer aos cuidados médicos em situações que não possam controlar. Esta nova perspectiva da medicina preventiva abre-a a todas as pessoas e a educação médica deve aceitar esta abertura, abdicando do monopólio corporativista dos cuidados de saúde, porque a saúde é um bem público e cada um deve assumir a responsabilidade pela sua própria saúde. (Leia este post do Manuel Rocha.)
J Francisco Saraiva de Sousa

19 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Este post pretende introduzir no pensamento de Esquerda o problema da morte. Certa vez escutei Mário Soares a dizer que não compreendia a preocupação pela morte de determinados autores. Interpreto isso como uma dificuldade da Esquerda para pensar a analítica da morte (Heidegger) e, pior, como ausência de "realismo": os humanos são mortais e se a morte não for reintroduzida na esfera pública estamos a contribuir para o colapso da civilização protagonizado pela social-democracia e pelo neoliberalismo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Os comunistas sacrificam o indivíduo ao todo ou ao processo de construção da sua utopia política: a morte individual está fora do seu horizonte. E não se inibem perante o massacre colectivo: o Terror. Ora, a teoria crítica deve demarcar-se dessa perspectiva processual e reintroduzir a morte individual e a sua escolha como acto pleno de liberdade. Isto implica dizer sim à eutanásia, repensar o suicídio, a pena de morte e o crime político. Portanto, usar a morte como arma de combate político.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O homem deve ser constantemente confrontado com a sua própria morte, porque só desse modo pode dignificar a VIDA.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Na morte certa reside a verdade, a partir da qual podemos pensar, libertar o futuro e elaborar uma política do ambiente. Um desafio para o meu amigo Manuel! :)

Manuel Rocha disse...

A questão é muito pertinente e está muito bem colocada.

Claro que se temos uma relação pouco natural com a Vida não se poderia esperar que a tivéssemos com a Morte. De novo estamos perante a análise parcelar do real, quando encaramos a morte fora do contexto da vida. De novo estamos perante o frenesim que nos leva a querer institucionalizar tudo e o seu contrário, e a tratar cada questão como uma especialização com fronteiras próprias e inegociáveis.

Quando falou de natalidade lembrei-me das politicas demográficas à Mao. Uma questão mal estudada que talvez importasse revisitar sem preconceitos ideológicos, não lhe parece ?

Tomo boa nota desse seu desafio, mas proponho-lhe um negócio: em troca o Francisco faz-me um post em que analisa a relação entre desintegração cultural e miséria humana.

De acordo ?

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok, vou tentar fazer esse post! Desafio aceite... :)

Manuel Rocha disse...

Óptimo, assim é só depois linkar e dar por finda a série sobre probreza vs miséria que estava a tentar desenvolver ...;)

Está ao corrente das manifestações de camponeses produtores de coca na Colómbia ? Não lhe parece uma boa âncora para o tema ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, é capaz de ser, mas já numa perspectiva intercultural.
Também pensava no ambiente como conceito filosófico e como elaborar um projecto ambiental susceptível de sensibilizar as pessoas. Novamente, a educação! Afinal, ambiente e cultura estão ligados.
Já são duas frentes: a busca cooperativa da verdade pode ser melhor que a busca solitária. talvez outros se linkem nesta busca!

André LF disse...

Francisco, a morte saiu do nosso horizonte existencial e foi substituída pelo consumismo exacerbado e pela satisfação dos gados bem alimentados. De seres-para-a-morte, passamos a seres-para-o-consumo ou talvez a seres consumidos.
É hora de salientar a importância do problema da morte!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Seres consumidos: boa expressão. Eu e o Manuel vamos tentar pensar em conjunto esse problema. Se tivesse um blogue, podiamos estabelecer links.
Isto veio a propósito de uma entrevista dada ontem por um físico nuclear português convertido ao ambiente: uma decepção. Porque ninguém está preocupado com o ambiente ou qualquer outra coisa que transcenda a esfera do consumo. Gado mesmo com telemóveis nas mãos!

André LF disse...

Francisco, estou pensando em ter um blogue. Meu único problema é a falta de organização e de disciplina, mazelas comuns aos brasileiros :) Pretendo corrigir estes defeitos!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Depois de ter o blogue, muda, porque começamos a sentir a responsabilidade pelo blogue, por nós e pelos outros: é um compromisso virtual mas muito forte, por vezes quase uma adição. Formam-se alianças, afinidades virtuais interessantes. Pode ser uma via para revitalizar a esfera pública, pelo menos quero acreditar nisso.

Manuel Rocha disse...

André,

Não se iluda e não tome os portugueses pelo Francisco...ele tem um gene rotativo que não tem nada a ver com a média cá da terra...:)))

André LF disse...

Também acredito na importância da responsabilidade. Formam-se, realmente, alianças virtuais sólidas e até mesmo amizades.
Desde que descobri o seu blogue, quando procurava informação sobre Gehlen, tornei-me parte desta comunidade. Sensibiliza-me o acolhimento das pessoas, a escuta atenta dos participantes.
Não tinha pensado ainda no blogue como uma forma de revitalização da esfera pública. Vou refletir sobre esta concepção.

André LF disse...

Também acho, Manuel! Sua idéia do gene rotativo é muito boa! Nunca vi uma mente tão fecunda como a do Francisco! Sozinho, ele produz mais do que 1 milhão de brasileiros juntos. E olhe que não estou a exagerar!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sempre que a TV anuncia as comemorações do 25 de Abril as pessoas presentes dizem: "Maldito Dia!". É preocupante esta desilusão dos tugas!

Ok, amigos, então podemos formar os três uma aliança rotativa, mais o Fernando Dias que, entretanto, se "perdeu" no ciberespaço!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Quantos dias tenho para editar o post? Preciso de alguns dias (3-4?).
Estava a ler o livro de Rupert Sheldrake, "O Renascimento da Naturez", mas não simpatizo com a ideia da hipótese de Gaia encarada como um regresso ao "animismo". A teoria dos campos mórficos ou da causalidade formativa é curiosa mas joga com uma concepção demasiado "feminina" da natureza, embora pareça retomar a ideia humeana de lei como hábito, explicando os fenómenos por ressonância mórfica: o passado a agir sobre o presente, via informação.
Penso que uma ontologia do ser como relação (relacional) resolve o problema da filosofia da natureza sem violentar muito a ciência!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sheldrake tem uma ideia interessante que já referi sem conhecer a sua: o contraste entre o peregrino e o turista. Um participa nos lugares que visita e soma a sua energia à do lugar; o outro é mero espectador e subtrai energia. O turismo como forma secularizada da peregrinação!

Manuel Rocha disse...

Simpatizei com a ideia de Sheldrake...e por Toutatis, não se apresse...os meus proximos dias também vão andar menos disponíveis para dar andamento à sua "encomenda"...:))