sexta-feira, 2 de maio de 2008

Desintegração Cultural e Miséria Humana

«O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem — [entenda-se o super-monstro] — é a fera dilatada.
«Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de aço, os intestinos de bronze, o olhar de relâmpagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando labaredas, vomitando morte.
«A pata pré-histórica do atlantossáurio esmaga o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krupp rebenta baluartes e trincheiras. Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasta uma capital.
«Os grandes monstros não chegaram verdadeiramente na época secundária; apareceram na última, com o homem. Ao pé de um Napoleão, um megalossáurio é uma formiga. Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos fariseus e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadouro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. […] O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela. Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro. Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar». (Guerra Junqueiro)
«Como central da regressão, a cultura de massas encarrega-se de produzir aqueles arquétipos em cuja sobrevivência a psicologia fascista encontra o meio mais seguro de consolidar as modernas relações de dominação. Símbolos de tempos imemoriais são construídos na linha de montagem. A fábrica de sonhos não fabrica os sonhos dos clientes, mas dissemina entre a população o sonho dos fornecedores. É o milénio de um sistema de castas industriais, composto por intermináveis dinastias (...), responsáveis pela mumificação do mundo». (Theodor W. Adorno)
«O efeito global da indústria da cultura é o de um antiracionalismo; nela o iluminismo, isto é, o progressivo domínio técnico da Natureza, converteu-se num logro colectivo, num instrumento de coacção da consciência. Ela impede a formação de indivíduos autónomos e independentes, capazes de avaliar com consciência e de tomar decisões». (Theodor W. Adorno)
O Manuel Rocha já respondeu ao desafio que lhe tinha colocado e, em troca, propôs-me este «negócio»: «Tomo boa nota desse seu desafio, mas proponho-lhe um negócio: em troca o Francisco faz-me um post em que analisa a relação entre desintegração cultural e miséria humana.» Este post é, pois, a "encomenda" que devo ao Manuel Rocha.
Os textos de Adorno e de Guerra Junqueiro apresentados em epigrafe revelam o caminho que pretendo percorrer para responder ao desafio colocado pelo Manuel Rocha: mostrar que, no Ocidente, a chamada "sociedade da abundância" conseguiu vencer a fome colectiva à custa da regressão mental e cognitiva das suas populações. Ou, mudando o sentido dos conceitos de Mestre Eckhart: a sociedade da abundância elimina parcialmente a pobreza exterior, ao mesmo tempo que promove subjectiva e objectivamente a pobreza interior, sem alcançar a "revalorização fisiológica do homem", como pretendia Josué de Castro. A desintegração cultural ou a barbárie cultural significa a menorização e a infantilização do homem interior e a medicalização do homem exterior, e resulta da própria dinâmica de crescimento do modo de produção capitalista, pelo menos nesta sua fase tardia. Nas sociedades ocidentais, o capitalismo amenizou as desigualdades sociais e eliminou muitas privações materiais, dado as promover noutras regiões do mundo que vivem em estado de privação preocupante.
Ora, a atrofia mental e cognitiva dos indivíduos metabolicamente reduzidos torna difícil ou mesmo impossível a tarefa da filosofia crítica: a unidade da teoria e da praxis. Os consumidores dispensam o pensamento independente e entregam-se ao consumo compulsivo, como se os recursos naturais e humanos fossem inesgotáveis. Perderam a consciência da sua própria finitude e da finitude dos recursos naturais, e vivem iludidos numa espécie de "eternidade" segregada pela sociedade metabólica: uma sociedade ecologicamente destrutiva e quase antropofágica.
É certo que, como mostrou Ernst Bloch contra Freud, Jung e Adler, a fome constitui o impulso básico e primordial cuja satisfação garante a sobrevivência e a conservação da vida, mas quando esta satisfação se torna o único objectivo da vida, como parece suceder nas sociedades ocidentais, a cultura entra num processo de regressão e a hipersaciedade, isto é, a tendência para a obesidade, é acompanhada por uma nova forma de pobreza: a miséria intelectual. O homem metabolicamente reduzido é uma criatura miserável. A adaptação incentivada pelo sistema da indústria cultural e pelo próprio processo de consumo dispensa o impulso de transcender a sociedade estabelecida, portanto a esperança no sentido de Bloch, e o homem reduzido a consumidor e devorador dos recursos naturais, energéticos e culturais torna-se apático e dependente dos poderes estabelecidos.
Como é que a abundância cria a indigência cognitiva? A sociedade de consumo interfere de múltiplas maneiras com o mecanismo neurofisiológico da dor e do prazer: cria e satisfaz constantemente necessidades sem recorrer à repressão. Este funcionamento hedonista gera a consciência feliz e satisfeita consigo mesma, incapacitando cognitivamente os seus portadores. Com efeito, K. Lorenz já tinha mostrado que, devido à progressiva dominação técnica da natureza, o homem moderno deslocou o mecanismo neurofisiológico da economia prazer-desprazer no sentido de uma hipersensibilidade crescente a respeito de todas as situações de estímulo negativo, ao mesmo tempo que a sua capacidade de prazer se foi embotando: «A crescente intolerância para com o desprazer — conjugada com a atenuação do poder atractivo do prazer — induz os homens a perder a capacidade de empreender trabalhos difíceis, cuja promessa de prazer reside no resultado posterior. Origina-se assim uma exigência impaciente da imediata satisfação de todos os desejos que despontam», de resto alimentada e incrementada pelos mass media, pelas empresas comerciais, pelas diversas indústrias juvenis e pelo sistema educativo.
Este esforço imoderado para evitar a todo o custo o menor sentimento de incomodidade impossibilita inevitavelmente certas formas de prazer. Ao reprimir a hipersensibilidade ao sofrimento, o homem moderno vedou a si mesmo o acesso à alegria: A consciência feliz «conhece o gozo, mas não a alegria (...). A crescente intolerância actual a respeito do sofrimento transforma os altos e os baixos da vida humana, comandados pela natureza, em superfície artificialmente nivelada; das grandes vagas, com suas cristas e depressões, faz uma vibração a custo perceptível; da luz e da sombra, origina um cinzento uniforme. Numa palavra, prepara um tédio mortal». Enfim, o consumidor anestesiado foge da sua própria sombra. Na sua condição de animais metabolicamente reduzidos, os humanos são insuportáveis, vazios e destituídos de profundidade cognitiva. Movem-se em manada e não sabem donde provêm, onde estão, para onde desejam ir ou mesmo para onde estão a ser conduzidos: comportam-se como "gado doméstico", obesos, pouco inteligentes, incultos, incapazes de pensar e muito pouco alegres.
Um filósofo tão "hedonista" como Herbert Marcuse reconheceu que a consciência feliz resultante da satisfação das necessidades instintivas gera submissão e facilita a aceitação dos malefícios da sociedade estabelecida. O agente político da mudança social radical, o proletariado, deixou de ser uma classe potencialmente revolucionária a partir do momento em que muitas das suas necessidades e reivindicações foram satisfeitas. A redução da jornada de trabalho e a elevação do nível de vida disponibilizaram mais tempos livres. Porém, estes tempos livres não são ocupados para desenvolver as capacidades cognitivas, mas dedicados ao consumo compulsivo. As pessoas que desconhecem a insatisfação e a tensão tornam-se apáticas e conformistas e, como foram poupadas do esforço, do sofrimento, da dor ou da privação, não sabem o que é a alegria resultante de uma conquista difícil. Além disso, sofrem de atrofia dos órgãos mentais e, por conseguinte, são incapazes de perceber as contradições e as alternativas da sociedade estabelecida. A dor e o prazer são as duas faces da mesma moeda: qualquer uma delas proporcionada em detrimento da outra não produz pessoas alegres, mas animais metabolicamente reduzidos que passam pela vida sem saber o que significam a vida, a natureza e a história das sociedades humanas.
Anexo: «A pobreza é mais do que a privação, é um estado de constante necessidade e de miséria aguda cuja ignomínia consiste na sua força desumanizante; a pobreza é abjecta porque coloca os homens sob a ditadura absoluta dos seus corpos, isto é, sob a ditadura absoluta da necessidade tal como todos os homens a conhecem a partir da sua mais íntima experiência e independentemente de todas as especulações». Este texto de Hannah Arendt apresenta a pobreza como uma "ditadura absoluta da necessidade". De facto, quem vive neste estado de absoluta privação material está privado da liberdade e, portanto, do acesso à esfera pública. Embora tenha excluído a "questão social" da política, H. Arendt acaba por reconhecer que o exercício da cidadania exige a eliminação prévia da pobreza material ou corporal.
J Francisco Saraiva de Sousa

52 comentários:

Denise disse...

Ainda não li, tenho de ir ao SAP... Gostou do miminho desta manhã por mail?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Denise

Adorei o miminho! Agora estou a combater uma dor de cabeça terrível. Estou a alinhavar as teses que, no seu conjunto, constituem a minha resposta ao desafio colocado pelo amigo Manuel Rocha, ao mesmo tempo que as vou partilhando publicamente no seu andamento progressivo, aberto a sugestões. Com base na perspectiva do Manuel, procuro iluminar novos caminhos, capazes de levar as pessoas a tomar consciência da crise ecológica, de resto uma crise antropológica, e da inviabilidade do seu estilo de vida consumista, e talvez a desejar a mudança qualitativa radical.

Manuel Rocha disse...

Hummm...

Na perspectiva da desintegração cultural, vejo mais potencial na linha de pensamento de Bloch do que em Arendt. O conceito que esta dá de pobreza suscita-me algumas resistências. Há pobreza digna. Tenho por pobreza a contigência de viver com pouco e com dificuldades. Miséria é ser incapaz de resolver essas dificuldades. Aqui é que a questão cultural faz a diferença...não acha ?

PS: Leve a dor de cabeça a apreciar as moças da Ribeira...pode ser que ela fique por lá com alguma...;)

PS 2: Acho que Vossa Distracção não percebeu que o F Dias fez um transplante de figado...( penso eu de que...)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

O seu desafio bem pensado leva a questionar muitas "verdades aceites e consideradas evidentes". Estou a tentar articular alguns conceitos, mas vejo que essa articulação implica a problematização dalgumas teorias dos mestres.
Não estou a levar em conta a fome e a miséria dos povos não-ocidentais, porque esta é coproduzida pelo capitalismo global. Também deixei de lado a "pobreza envergonhada" que existe nas nossas sociedades.
Faça sugestões...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

H. Arendt era proveniente de uma família abastada, enquanto E. Bloch viveu no seio de uma família pobre e certamente sabia o que era a fome, de resto revivida aquando do seu exílio nos USA. Daí a diferença: Arendt tende a excluir a questão social da política e Bloch elabora uma dialéctica que vai da fome à esperança como docta spes: a sede ou a fome pela revolução.

Ao contrário do que diz Josué de Castro, a sociedade da abundância pode reduzir a fome, mas esta redução não significa "revalorização fisiológica do homem", como podemos verificar no dia a dia. Ela traz atrofia mental e cognitiva: regressão cultural. No fundo, é essa a minha tese básica.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Sim, acho que sim, portanto concordo com esta sua perspectiva:

"Tenho por pobreza a contigência de viver com pouco e com dificuldades. Miséria é ser incapaz de resolver essas dificuldades. Aqui é que a questão cultural faz a diferença...não acha?"

Ou seja, a sociedade da abundância, de consumo e de risco, cria e amplia essa "miséria" de que fala: a atrofia mental é precisamente a incapacidade de "resolver dificuldades". Mas faz mais: com a ajuda dos mass media coloniza a cultura e neutraliza o seu potencial negativo (a perda da historicidade), promovendo a adaptação em vez da crítica e da mudança. Portanto, o consumidor e devorador de energias finitas não é autónomo, mas heterónomo, infantilizado, dependente e alienado: heterodirigido pelo sistema de consumo e da indústria cultural.
E o mais grave é que os pobres sonham em "ser ricos". Na linguagem de Bloch, diriamos que os sonhos diurnos, os da esperança, foram também eles colonizados pelo capitalismo tardio.

Manuel Rocha disse...

Boa linha !
Fogo á peça !

Vejo a questão um pouco na mesma optica com que olho para o adulto que resulta do menino mimado. Não cresce em autonomia. É dependente, reinvindicativo e inconsequente.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

O que me assusta é ver o mundo caminhar às escuras e não ter vontade de quebrar o compromisso com os mestres, porque na verdade é necessário mudar de rumo na filosofia e na política.

Se fossem feitos estudos neurocognitivos, penso que a regressão cognitiva podia ser compreendida e ajudar a conhecer aquilo que precisa ser urgentemente mudado.

André LF disse...

Excelente texto, Francisco!
Em vez de consciência feliz, resultante da satisfação das necessidades instintivas (Marcuse), eu diria consciência de bovinos apascentados, porque é evidente o embotamento das capacidades cognitivas e do senso crítico.
Gostei muito deste trecho: "O agente político da mudança social radical, o proletariado, deixou de ser uma classe potencialmente revolucionária a partir do momento em que muitas das suas necessidades e reivindicações foram satisfeitas".
De fato, o tempo livre que resultou da redução da jornada de trabalho e do aumento do poder aquisitivo é preenchido pelo consumismo voraz e por outras práticas perniciosas. O ócio, em vez de criativo, tornou-se destrutivo.
Concordo consigo: as pessoas que não conhecem a tensão e a frustração de seus desejos hedonistas se tornam apáticas e conformistas. Além disso, há o recrudescimento do individualismo e do egoísmo. Estamos perdendo a capacidade de valorizar a "res publica".
Ultimamente é comum ver as pessoas trancando-se nos seus apartamentos, como se estes fossem bunkers de luxo, alheando-se de tudo, menos de seu conforto.
A tendência de algumas construções modernas parece destinada a perpetuar o nosso isolamento.
Muito bonito o texto de Guerra Junqueiro.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Este era o desafio que o Manuel me colocou e o tema da pobreza é actualmente muito complexo. Isto que disse é compatível e assenta na teoria marxista da pobreza: as relações de exploração do homem pelo homem resultantes de processos estranhos de acumulação de capital.

Sim, essa noção de condomínios fechados é deveras preocupante. Cá os condomínios fechados e os eficícios de habitação de luxo são os primeiros a ser vendidos a elevados preços: um roubo.

A nova pobreza é transversal a todas as classes e camadas sociais: pobreza de espírito. Esta pobreza manifesta-se na relação com a natureza e a história, consigo mesmo e com os outros.

Sim, o egoismo é atroz: o caso de incesto na Aústria é prova disso. Como é possível raptar a própria filha durante mais de 20 anos na cave da casa e fazer-lhe (salvo erro) 7 filhos/netos?! Ninguém suspeitava de nada!?

André LF disse...

O caso de incesto na Áustria é uma prova contundente do egoísmo e do alheamento da população.
A indigência de espírito talvez seja mais grave do que a pobreza material.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

De facto, a pobreza ou indigência de espírito (o segundo termo parasita Rilke) implica o "alheamento ou alienação do mundo", tal como viu Hannah Arendt.
Quanto mais se hiperatrofia o eu, mais pobre ele fica, quase no sentido inverso ou literal do termo em Mestre Eckhart. Aliás, o self hiperatrofiado implica essa perda de contacto com o mundo! Perde a "vontade" de o mudar...
O tema é deveras complexo e será melhor caminhar mais devagar, porque penso que seremos levados a problematizar muitas evid~encias dadas como certas!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Há um problema com a democracia:

Se pensarmos nas vitórias recentes de Sarkosy em França e de Berlusconi na Itária ou na vitória dos conservadores nestas eleições locais, podemos ver como as pessoas se comportam nas eleições: não seguem ideologias; votam no sentido de dar o poder àquele partido que promete dar-lhes mais poder aquisitivo ou regalias. Tanto faz ser de Direita ou de Esquerda! Esta democracia tal como funciona não garante estabilidade e segurança: fomenta a corrupção, a vida fácil e abre as portas às ditaduras. Regressão cognitiva total! A "res publica" implodiu-se...

André LF disse...

Sim, e este fenômeno é freqüente no Brasil. Lula foi reeleito graças às suas medidas de caráter assistencialista e demagógico :(
Trata-se, como disse, de uma democracia a serviço da corrupção, da promessa de favores e vida fácil.
O governo de Lula tem sido um dos mais corruptos da nossa história. É triste observar um ex-metalúrgico e líder sindical que, eleito Presidente, acaba se rendendo ao jogo sórdido da corrupção. Ele deslumbrou-se com um poder. Tornou-se um bobo da corte a serviço dos crápulas do PT.
A esquerda no Brasil é muito malandra! Nunca definiu claramente os seus objetivos. Limitou-se a copiar os modelos de outros países, sem levar em conta as nossas peculiaridades.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Der Horror Vater

Afinal, um dos inquilinos (12 anos) ouvia ruídos do tipo "bater com a vassoura nos canos" e observou diversas vezes o pai maldito a carregar as compras ao fim da tarde pelas traseiras e jardim! Acabei de ver a reportagem da RTPN. A planta da cave parece ter sido desenhada tendo em vista o seu uso. Todos obedeciam às ordens do Vater.

Sim, a corrupção é a doença do século. Os pequenos ladrões são severamente punidos; os grandes corruptos ficam impunes e vencem eleições. Que tristeza! A guilhotina devia ser reservada para os políticos e gestores corruptos! Mas são eles que fazem as chamadas "leis"...

Para dizer a verdade, já não acredito na humanidade! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel e André

A Filosofia da Natureza já está relativamente desenvolvida e a seu território histórico começa a ser explorado e explicitado.

Nós portugueses e brasileiros temos documentos únicos em língua portuguesa que ainda não foram devidamente explorados. Não me refiro somente a poesia em língua portuguesa, mas a documentos tais como a "Carta a el-rei dom Manuel sobre o achamento do Brasil a 1 de Maio de 1500" de Pêro Vaz de Caminha.

Esta Carta expõe a representação portuguesa da natureza: "pródiga e edénica, boa para viver, boa para pilhar, paraíso e aventura". Como mostrou Jaime Cortesão, esta é uma visão marcada pela mística franciscana.

Ora, este paradigma contrasta com a visão puritana da natureza, na qual a natureza não é passiva mas terra selvagem que convém dominar e domesticar. Esta visão está ligada ao protestantismo.

Será que estes dois grupos cristãos têm visões diferentes da natureza? Weber associou a ética protestante e o capitalismo. Além disso, o panteísmo patente na poesia portuguesa pode ser visto como um indicador dessa visão luso-brasileira da natureza, bem como o nosso "atraso económico" e a "fragilidade da democracia". Sociedades fechadas e hierárquicas versus sociedades abertas e democráticas: as primeiras luso-brasileiras ou mesmo latinas, as segundas anglosaxónicas!

Com excepção de Jaime Cortesão, os portugueses não cuidam do pensamento. Embora não os conheça, Buarque de Holanda e Da Matta parecem ter explorada esta perspectiva no Brasil. Apenas conheço Gilberto Freyre.

Portugal é terra de invejosos! :(

André LF disse...

Não conhecia a relação entre o conteúdo da Carta e a mística franciscana, vislumbrada por Jaime Cortesão. Pretendo entrar em contato com as obras de Cortesão.
Francisco, não creio que os dois grupos cristãos tenham visões muito diferentes sobre a natureza. Sem dúvida há algo que os une: o instinto de pilhagem e a vontade de poder, que se verifica na intenção de domínio e de controle impostos aos povos conquistados.

André LF disse...

Gosto muito das obras de Gilberto Freyre. Embora não concorde com todas teses de Freyre, sinto-me inebriado pelo encanto de sua prosa e pela abrangência de suas análises.
De Buarque de Holanda, li há muito tempo Raízes do Brasil, considerada referência para a compreenção da nossa história e dos nossos costumes. Vc se refere a Roberto DaMatta, autor de "Carnavais, malandros e heróis- para uma sociologia do dilema brasileiro"?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Da Matta diz que os portugueses desejavam regressar à "terra natal", enquanto os ingleses que partiram já tinha quebrado essa relação: criaram uma nova terra natal.
Já viu como o termo "terra" tem em português tantos sentidos: uma palavra rica!
Os portugueses descobriram novos territórios mas nunca se aventuraram: ficavam na costa e, salvo raras excepções, não foram aventureiros inteligentes como os ingleses.
Jaime Cortesão merece ser republicado e estudado: os novos historiadores são muito opinativos e pouco profundos: tudo bisbilhotice!

André LF disse...

Papillon sumiu. Onde estará a Borboleta?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Era só uma hipótese: estava a ler um livro que trata da imagem da natureza em função dos paises: francesa, inglesa, alemã, chinesa, indiana, americana, etc.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, é esse Da Matta! Também fala da corrupção brasileira, mas não tenho a obra que refere.
A Papillon está de férias no sul de Portugal.

André LF disse...

Qual é o autor deste livro, Francisco?

André LF disse...

Francisco, vc já leu "O Cortiço", de Aluísio Azevedo? Trata-se de uma obra fundamental para entender as peculiaridades do brasileiro :)

André LF disse...

Aluísio é considerado o iniciador do naturalismo na literatura brasileira.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O autor (organizador) é Dominique Bourg: Os sentimentos da Natureza.
Não li o Aluísio Azevedo! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas o livro está a desiludir muito o meu espírito, sobretudo quando confrontado com os pensadores americanos, ingleses e alemães. Os franceses estão em crise...

André LF disse...

Se tiver tempo ,Francisco, leia o Cortiço. Sei que vc deve ter muitos afazeres, mas o livro merece a sua atenção :)
Acredita mesmo que os franceses estão em crise?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acredito, porque esteve cá um big francês, presidente de alguma instituição académica (esqueci), que disse isso: não tinham ninguém à altura dos que estão a morrer. Há um que, nas aulas, não diz tudo o que pensa, porque teme que os alunos se apropriem das suas ideias.
É verdade que hoje na Europa em geral o ensino está muito modificado e a relação professores/alunos muito degradada.
Vou tentar comprar O Cortiço ou As Raizes para ler...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Conheço melhor as obras de Darcy Ribeiro e Gilberto Velho! E outros que escreveram sobre os índios brasileiros: antropologia e etnologia. Curiosamente, a maior parte dos livros que tenho sobre o Brasil não são de autores brasileiros.

André LF disse...

São dois exemplos preocupantes :(
Nas universidades brasileiras a relação professores/alunos está também muito degradada. Talvez isto aconteça em todos os lugares do mundo.
Nas universidades brasileiras (leia-se, o sepulcro do pensamento e da criatividade), basta um professor estudar um pouco mais do que os outros, para se sentir uma celebridade do mundo acadêmico. E os alunos, para conseguirem subir os degraus do mundo acadêmico, tornam-se demagogos destas "celebridades". Tornam-se súditos e vassalos. O feudalismo está de volta :(
Há tanta vaidade neste mundo, como já se dizia no Eclesiastes...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Para dizer a verdade aqui em Portugal os professores universitários são uma ausência total de conhecimentos: muito opinativos mas nada para ensinar. Os alunos não frequentam as aulas e são independentes: fazem o que querem... (Há excepções mas mais nas ciências e engenharias: letras são mesmo tretas.)
Mas ninguém quer resolver o "indisciplina" dos jovens! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Se no Brasil for como em Portugal, os que sobem os graus académicos são geralmente as mulheres: o ensino em geral está nas mãos das mulheres!

André LF disse...

Sim, Francisco, aqui há muitas mulheres nas reitorias das universidades.
Geralmente o comando das universidades brasileiras está nas mãos de politiqueiros e demagogos. É lastimável.

André LF disse...

Aqui há uma faculdade em cada esquina, disseminando um ensino de péssima qualidade. Com exceção de algumas faculdades públicas e privadas, a qualidade do ensino é deplorável. Os alunos saem das faculdades analfabetos funcionais graduados :(
Não sabem escrever, expressar as idéias com fluência e não compreendem os textos sugeridos pelos professores.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Estive a ver um documentário sobre o desejo bóer (sul-africanos europeus) de criação de um Estado Independente. Apesar de um certo racismo exibido por esse partido, eles têm uma certa razão: a África do Sul, tal como Moçambique, Angola e Rodésia, está destruída. E os farmers estão a fugir de lá para a Europa. As independências tiveram o efeito contrário: destruição, subdesenvolvimento e violência.

Sim, o mundo da cultura já não tem cérebros para parasitar e reproduzir-se: diplomados analfabetos são piores que analfabetos. Matam tudo à sua volta!

Mas não é só aí: a Europa está decadente e envolvida em corrupção. Os lideres europeus carecem de qualidades e de visão. Comportam-se como se fossem a "última geração de europeus com futuro garantido": o deles porque o futuro mesmo não terá grande "destino". Excesso de bem-estar, de comida, de mimos, de facilidade... produz miséria cognitiva e moral.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E as mulheres não são grande gestoras, salvo brilhantes excepções!
Um dos problemas do ensino reside aí: excesso ou predomínio das mulheres. Mas não é politicamente correcto dizer isto, embora seja um dado estatístico evidente.
Um professor de Harvard criticava o "politicamente correcto" nos USA, que exige que sejam atribuídos, em cada filme ou série, papéis a actores negros. Porém, aquilo é mera ficção, porque na verdade a realidade é outra: a violência é negra, diz ele. Isto é estupidez política. Não é desse modo que se resolvem os problemas sociais e raciais.

Denise disse...

Regressei de raspão , li o que acrescentou ao texto, li os comentários e regressarei com tempo. Mas a propósito desta última questão, não me parece que os problemas em discussão se resumam a uma questão de géneros...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Denise

Concordo: os problemas são muito complexos mas não é com a hipocrisia que se resolvem, porque nada está a melhorar para ninguém. E seria tão fácil se todos fossem simplesmente humanos sem ódio ou gula!

Manuel Rocha disse...

Finalmente arranjei um tempinho para apreciar devidamente a “minha encomenda”.

O artífice é bom e não deixa o cliente desapontado.
Moldou a peça pela bitola da “paisagem” de um certo tipo de miséria de que o Ocidente ainda mal se apercebe, deslumbrado como está pela descoberta do que julga ser a Terra da Canaã, mas esquecendo que os rios que a regam drenam outras paragens onde, aí sim, já vão evidentes os sinais concretos da desintegração cultural de povos que foram despojados da sua memória e por isso nada mais lhes resta que incorporar sonhos alheios entre os solavancos das derivas de sobrevivência nas margens do "Rio Ajuda".

Era importante percebermos como isso foi possível. Por duas razões. Para evitar que as tentativas de saldo de dividas de má consciência contribuam para o problema e não para a solução; e para, eventualmente, nos evitar a nós mesmos um percurso semelhante.

Vamos a isso, Francisco ?

E aqui fica um desfio ao André, lá no outro lado do mar, para que nos mande para publicação aqui no nosso espaço a sua perspectiva sobre esta matéria a partir do caso do movimento "sem-terra".

;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

Estou com ideia de criar uma nova política: a política de autenticidade baseada na ascese espiritual do homem. Contra o predomínio das ciências sociais e humanas, a ascese vista como aperfeiçoamento espiritual constante pode ser o antidoto, isto é, a cura e a libertação do homem da tirania do consumismo.
Devemos recuperar o espírito das escolas filosóficas antigas e criar comunidades: a escola deve ser um centro de conhecimento e, ao mesmo tempo, um modo de vida. Trata-se de introduzir a ascese no interior da filosofia que visa a transformação do mundo e a realização da utopia da "pátria da identidade": viver em conformidade com a natureza. Essa filosofia só pode ser o marxismo, o grito contra a exploração, a destruição e a corrupção.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

O André deve estar a dormir, mas espero que aceite esse desafio que editaremos aqui nos blogues.
Estou a pensar numa conexão entre marxismo e estoicismo... Um marxismo ascético!

Manuel Rocha disse...

Eu sou um marxista ascético !!!

:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Um dos objectivos era desviar a noção de "progresso" da economia/domínio técnico da natureza para o plano do aperfeiçoamento espiritual do indivíduo enraizado na natureza e na sua comunidade.
Isto significa que a noção de progresso pode ser retomada como aperfeiçoamento do indivíduo: libertá-lo da via consumista e destrutiva. Com esta noção podemos retomar a tradição ocidental genuína e, nesse caso, já não precisamos de entrar em conflito desnecessário com o cristianismo ou a religião; pelo contrário, podemos criar mosteiros laicos e seculares. A crise ecológica é crise antropológica: o desenvolvimento da mente é o antidoto. Bloch tem uma obra dedicada ao estoicismo, mas não a tenho: uma nova noção de cidadania do mundo, da terra! É muito ecológico... e implica uma revolução silenciosa contra o poder estabelecido. Uma forma desse marxismo ascético seria a recusa de viver nas grandes cidades e recolher-se ou refugiar-se em pequenas aldeia ecológicas, tendo por objectivo o exercício diário do aperfeiçoamento do espírito em "conformidade com a natureza". Retomar o velho ideal da "vida justa" dos gregos: a sabedoria!
Esta ideia surgiu da resposta que dei ao desafio que me colocou. Diante da indigência de espírito, esta seria uma espécie de "cura" a la Paracelsus.

Manuel Rocha disse...

Precisamente !
Foi o próprio Paracelsus quem me receitou a vida na serra...

:)))

Não largue este seu comentário...tem aqui matéria muito boa para desenvolver este tópico...

Estou a tentar juntar à perspectiva deste seu post a desintegração cultural do "Sul"...
mas não devo ter tempo para terminar hoje...logo se vê...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Estava a reler Marco Aurélio e retive a sua noção de "fortaleza da alma". E os meus neurónios, em ressonância mórfica, sintonizaram a "fortaleza vazia" de Bruno Bettelheim: um estudo psicanálitico sobre "autismo". Contudo, a sua obra sobre os campos de concentração nazis possibilita repensar a presente condição dos "sem-abrigo" ou "sem lar": a fortaleza interior está vazia e sem-abrigo: apátrida, como dizia Heidegger pensando talvez em Rilke.

André LF disse...

Olá, amigos!

Manuel, mandarei a minha perspectiva sobre esta matéria a partir dos acontecimentos relativos aos sem-terra (MST). Correrei o risco de ancorar em "achismos" :)

Francisco, a propósito da fortaleza da alma, de que fala Marco Aurélio, há um livro muito interessante de Pierre Hadot intitulado "Introduction aux Pensées de Marc Aurèle". Não há tradução para o português...
Peierre Hadot é um especialista em filosofia antiga, principalmente a estóica. Ele traduziu os "Pensamentos" de Marco Aurélio e o "Manual" de Epicteto.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Saiu uma edição portuguesa dos estóicos: Séneca (A Vida Feliz), Epicteto (Manual) e Marco António (Pensamentos). Estas obras já existiam em separado... E há outra obra da fase grega do estoicismo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A obra da Imprensa-Nacional chama-se "Stoa" (Pórtico), mas ainda não a comprei; sairam outras relacionadas com as filosofias helénicas.
Agora estava a passar os olhos pelo "itinerário da Mente para Deus" de S. Boaventura, e lembrei-me dos "Exercícios Espirituais de Santo Inácio".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Deu para perceber que onde está Marco António devia estar "Marco Aurélio".

André LF disse...

Percebi, sim!
Mas há uma grande diferença entre eles :)

André LF disse...

Francisco, mandei-lhe este texto por e-mail.

Atravessando sozinho o deserto, carregando-se a si próprio sem qualquer apoio transcendente, o homem de hoje caracteriza-se pela vulnerabilidade. A generalização da depressividade deve ser atribuída não às vicissitudes psicológicas de cada um ou às “dificuldades“ da vida atual, mas sim à deserção da res publica, que varreu o terreno até a emergência do indivíduo puro.
(Gilles Lipovetsky).

Os mortais moram quando recebem o céu como o céu, deixam à lua e ao sol a jornada que lhes é própria, deixam às estrelas o seu percurso e às estações a sua benção e sua inclemência; não transformam a noite em dia e nem o dia numa frenética agitação (Heidegger).

Amigos, redigi um breve texto, sem pretensões de realizar uma profunda análise sociológica, uma vez que não tenho tais conhecimentos e não conheço detalhadamente a história do Movimento dos Sem Terra (MST). Restrinjo-me, portanto, a reunir reflexões esparsas e espontâneas sobre o assunto proposto pelo Manuel.
As raízes do MST são antigas, uma vez que o problema da ocupação territorial e da reforma agrária existe desde os primórdios da nossa história. O Brasil, desde a sua descoberta, foi considerado uma terra que deveria ser ocupada para não ser perdida. Estabeleceu-se aqui uma colonização predominantemente exploratória.
Diante desse contexto, é natural que surgissem movimentos contrários à colonização exploratória e à ocupação territorial desmedida. O MST enquadra-se nesta trajetória.
Aos poucos o Movimento dos Sem Terra estabeleceu alianças com grupos religiosos e partidos políticos (PT) e as suas ambições se ampliaram. Como acontece em muitas organizações populares, os indivíduos do grupo dotados de maior visão estratégica e discernimento tornaram-se uma espécie de déspotas do Movimento. A maioria dos integrantes do movimento é constituída por pessoas paupérrimas, andarilhos, mendigos, desempregados, enfim, todos aqueles que compõem o grupo dos excluídos. Esta massa de párias obedece aos déspotas do movimento. Estes lhes dão as mais variadas ordens, muitas delas de extrema violência.
Há uma espécie de glamour em torno das ações do MST. Na faculdade vi muitos alunos bem nascidos e bem alimentados usando camisetas do grupo. Indagados sobre o porquê de tal indumentária, eles afirmavam: “Ah, acho bonito o símbolo do movimento. Eles lutam por ‘coisas justas´ “. Em tais comentários manifestam-se a ausência de senso crítico e o fetichismo que incensa o movimento dos sem terra.
Os objetivos do MST são variados e englobam desde a luta pela reforma agrária até a busca voraz por poder político. Seus líderes têm ampla influência política, muitos são membros do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual teve ampla participação na organização das bases do MST.
Sem dúvida, a luta pela reforma agrária é necessária. Entretanto, a meu ver, as falhas do MST residem nas ações que legitimam a sua ideologia. Freqüentemente, um grupo de bandoleiros, ordenado por líderes do movimento inebriados pelo poder, recorre a práticas violentas e manifestamente ilegais: esbulhos possessórios, ocupação violenta, assassinatos, práticas de guerrilha, etc.
Considerando-se as práticas controversas do MST, tem-se uma vaga idéia da relação problemática dos brasileiros com a terra. A nossa representação da natureza é muito complexa e ainda não recebeu ainda devida análise.
Nas conversas com amigos e conhecidos, é comum ouvir o relato de um sentimento de “desenraizamento”, de uma dificuldade de encontrar “a morada” e o temor de nunca achar o lar desejado. Nutrimos uma nostalgia por uma pátria desconhecida, uma espécie de Canaã que nunca será descoberta e habitada. Daí talvez uma das razões para o conhecido nomadismo do brasileiro. Certamente tais sentimentos se devem, em certa medida, aos efeitos da miscigenação que constitui o povo brasileiro e às marcas deixadas pela colonização. Não temos uma identidade nacional bem definida. Apesar das inúmeras tentativas, ninguém conseguiu explicar a nossa relação com a terra e com a morada.
Como nos mostrou o Francisco, na Carta a el-rei dom Manuel sobre o achamento do Brasil a 1 de Maio de 1500" de Pêro Vaz de Caminha
a representação portuguesa da natureza expõe-se nestes termos: "pródiga e edénica, boa para viver, boa para pilhar, paraíso e aventura". Ouso dizer que esta representação portuguesa da natureza é compartilhada por muitos brasileiros, entre os quais os integrantes do MST. Ocupar a terra para subjugá-la. Trata-se de uma relação extremamente patriarcal. A Terra, a mãe de todos nós, é maltratada pelos invasores, independentemente de suas ideologias. O morar autêntico, de que fala Heidegger, está ligado à preservação e ao cuidado. E este preservar não é apenas não causar danos a alguma coisa. O preservar autêntico tem uma dimensão ativa, positiva, e se concretiza quando deixamos algo na paz de sua própria natureza, de sua força originária (Gelassenheit, deixar-ser). Na doutrina de Mestre Eckhart, a palavra Gelâzenheit, do alemão medieval, ocupa um lugar central. Segundo Schürmann, Gelâzenheit designa “ a atitude de um ser que olha os objetos e os acontecimentos não mais segundo sua utilidade, e aceita-os em sua autonomia. Tal atitude renuncia às influências e traz equanimidade da alma. Assim, pode-se traduzir esta palavra por conformação e por serenidade. As duas palavras falam de um desabituar-se a possuir as coisas e a se possuir. Lâzen, lassen, significa ‘deixar’, ‘restituir a liberdade’, e ‘desatar’,. [...] Aquele que aprendeu a ‘deixar ser’ restitui todas as suas coisas à sua liberdade primitiva, devolve todas as coisas a elas mesmas. Ele desaprendeu a sujeitá-las a seus projetos, ele se despojou de toda afirmação de si, na qual o estorvam a curiosidade e a ambição”. Penso que neste belo trecho de Schürmann se delineiam aspectos de uma relação autêntica estabelecida entre o homem e a natureza. Quando observamos as ações predatórias do ser humano sobre a natureza- e aqui também se incluem muitos membros do MST- fica patente a nossa incapacidade para o morar autêntico. Aliada à necessidade de uma educação para o morar autêntico, apresenta-se, de acordo com Francisco, a
a idéia de criar uma nova política: “a política de autenticidade baseada na ascese espiritual do homem. Contra o predomínio das ciências sociais e humanas, a ascese vista como aperfeiçoamento espiritual constante pode ser o antídoto, isto é, a cura e a libertação do homem da tirania do consumismo”. Esta iniciativa é muito pertinente.


Para terminar estas breves viagens, reproduzo as palavras de Nancy Mangabeira Unger:
“O desenraizamento do homem contemporâneo, que se manifesta no plano de sua vivência como ser social, remete a uma condição mais essencial. Destituído de caráter simbólico, seu mundo não se constitui como alteridade nem permite o diálogo. Sob o comando da vontade de poder, sempre hegemônica, da recusa do sagrado, da necessidade compulsiva de reduzir a natureza e outros homens à condição de objetos de sua ganância, ele perde simultaneamente a noção de seu lugar no universo e o contato com as potencialidades constitutivas de sua humanidade. Por isso vive um desenraizamento de sua própria natureza humana. Distante de si e sem continente que lhe dê abrigo, o homem contemporâneo é, em diversos sentidos, o sem-terra”.