quarta-feira, 7 de maio de 2008

Obscenidade e Capitalismo da Fome

«Obscena não é a gravura de uma mulher nua que expõe os pêlos do púbis, mas a de um general completamente vestido que exibe as suas medalhas de recompensa numa guerra de agressão; obsceno não é o ritual dos hippies, mas a declaração de um alto dignitário da Igreja de que a guerra é necessária para a paz». (Herbert Marcuse)
A análise crítica da sociedade de consumo exige novas categorias: morais, políticas, estéticas. Marcuse avançou com a categoria de obscenidade: «Esta sociedade é obscena em produzir e exibir indecorosamente uma abundância sufocante de mercadorias, ao mesmo tempo que priva largamente as suas vítimas da satisfação de necessidades vitais; obscena em atulhar-se a si própria de bens, enquanto as latas dos seus desperdícios envenenam o mundo dos explorados; obscena nas palavras e nos sorrisos dos seus políticos; obscena nas suas orações, na sua ignorância e na sabedoria dos intelectuais que tolera». Com a aplicação desta categoria de obscenidade, Marcuse procurava forjar novas palavras e, portanto, novos conceitos livres da distorção do seu significado pelo establishment: «A terapia linguística postula a transferência de standards morais (e da sua validade) do establishment para a revolta contra ele». (Desafio os meus amigos, Manuel Rocha, Papillon, André LF, Denise, Helena Antunes e Tia Adoptada, a contribuir para esta tarefa de remodelar o vocabulário em termos de Grande Recusa.)
A sociedade visada pela crítica de Marcuse ainda continua a ser a nossa sociedade, nomeadamente a sociedade portuguesa, que temos descrito como uma sociedade metabolicamente reduzida e profundamente corrompida nas suas altas esferas de decisão, e que, vista à luz desta categoria moral, se revela como uma sociedade imoral. É uma sociedade bloqueada dominada por uma ideologia afirmativa: os portugueses aceitam a agressão e a corrupção como procedimentos normais nos negócios e nos diversos sectores do Estado, bem como da sociedade civil. Todos conhecem casos de corrupção danosa e alguns bem gritantes são divulgados pelos mass media, mas sem consequências jurídico-políticas. Os luso-corruptos são completamente obscenos e, mesmo quando publicitados, não reagem com vergonha, ou seja, não transmitem o sentimento de culpa que acompanha geralmente a transgressão de um tabu, porque perderam a vergonha e o pudor. A sociedade luso-corrupta não tem vergonha. A tolerância portuguesa é simplesmente resignação e conformismo. Os luso-corruptos abusam do poder em benefício próprio e justificam os sacrifícios exigidos aos portugueses alegando que não existem alternativas. Aquilo que Mário Soares gosta de denominar «pensamento único» mais não é do que o «pensamento unidimensional», conceito elaborado por Marcuse que nós preferimos tematizar como pensamento metabolicamente reduzido: «Submete-te ao sistema e conduz a tua vidinha como puderes, porque não existem alternativas. Afinal, estamos condenados à morte».
É evidente que uma teoria crítica da sociedade tem dificuldade em lidar com este conformismo afirmativo, pela simples razão de ter como objectivo prático ajudar os homens a mudar qualitativamente a sociedade. Marcuse procurou pensar este conformismo apático das «massas» através de uma síntese entre o marxismo e a psicanálise, aquilo a que se chamou o freudomarxismo. Mas, ao contrário dos outros teóricos críticos (Adorno, Horkheimer), Marcuse valorizou em Freud o seu biologismo (a teoria das pulsões ou dos instintos), o que lhe permitirá pensar uma «base biológica para o socialismo».
Esta ideia seminal de Marcuse é muito actual no nosso tempo, sobretudo se abandonarmos a psicanálise e a substituirmos pela ecologia e pelas ciências biológicas, em particular pelas neurociências. É necessário repolitizar a mente e o corpo dos indivíduos e levá-los a revoltar-se contra o poder instituído. Utopia? Claro, sem utopia não podemos desconstruir a ideologia que se encontra incorporada no próprio processo de produção e de consumo. A luta deve ser travada dentro dos próprios indivíduos, antes de virem para a rua: «Uma revolta na qual o organismo todo, a própria alma do ser humano, se torna político. Uma revolta das pulsões de vida contra a destruição organizada e socializada».
O conceito marcuseano de uma base biológica para o socialismo pode ser repensado a partir de um outro conceito que lançou, sem no entanto apreender todo o seu alcance: «Além e acima do nível animal, os seres humanos são maleáveis, corpo e mente, até mesmo na sua própria estrutura pulsional». Lorenz, o fundador da escola objectiva de etologia, compreendeu isso: a estrutura instintiva humana pode ser modificável. A repolitização da alma e do corpo encontra nesta estrutura maleável dos instintos humanos a sua possibilidade de «sucesso», desde que saiba destruir o espírito de má publicidade que domina a sociedade de consumo. Nesta sociedade ameaçada pelo capitalismo da fome, «a satisfação está sempre ligada à destruição. A dominação da natureza está ligada à violação da natureza. A procura por novas formas de energia está ligada ao envenenamento do ambiente. A segurança está ligada à servidão, o interesse nacional à expansão global. O progresso técnico está ligado ao controle e à manipulação progressivos dos (próprios) seres humanos» (Marcuse).
O sistema auto-destrutivo domina-nos reduzindo-nos a animais, ou seja, a seres metabolicamente reduzidos que não precisam de pensar para viver. Fomenta a ignorância activa, em vez do conhecimento emancipador, de resto desqualificado quando reduzido a meia dúzia de algoritmos que se aprendem na escola para executar uma tarefa remunerada que possibilita ao organismo viver e reproduzir-se, sem transcender a sua mera condição de animal. Numa sociedade metabolicamente reduzida, a democracia faz parte das obscenidades do sistema. O ser metabolicamente reduzido aprende a dizer que é livre e, nesse acto, torna-se cada vez mais escravo do sistema de publicidade. Para ele, ser é comprar e consumir e nada mais existe para além desse horizonte metabolicamente reduzido. O sistema produz-se e reproduz-se sem oposição real. A geração de Maio de 68 que está no poder traiu a Grande Recusa. Hoje está do lado dos opressores e é tão obscena quanto o general De Gaulle. O capitalismo é obsceno, feio, falso, paradoxal, insustentável, desnaturado e escuro (darkness).
J Francisco Saraiva de Sousa

52 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Olá André

Estava à espera que Google editasse o post: agora focam "agenciados" e posteriormente publicados automaticamente. Afinal, deu certo! :)

André LF disse...

Que bom! Francisco, vc dorme muito pouco, não é?
Vou ler o seu post amanhã, pois hoje o meu cérebro está travado. Dormi muito pouco esta noite. Tenho muitos problemas de respiratórios, e hoje fui acometido por uma bronquite que não me deixou dormir. Tudo isto se deve, em grande parte, à péssima qualidade de ar de São Paulo.

André LF disse...

Leia-se : "problemas respiratórios"
:)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Também vou dormir! Estou a beber leite e vou sleepar. Melhoras rápidas e descanse. :)

André LF disse...

Boa noite!

Denise disse...

Francisco,
Excelente epígrafe de Marcuse que escolheu. Começo a aprender a gostar desse senhor.
A obscenidade portuguesa traduz-se na passividade e cumplicidade dos que falsamente se indignam. Indignação verbal. Não se passa nunca aos actos, pelo Medo que se consolidou na memória colectiva devido a meio século de opressão fascista. Daí o pensamento metabolicamente reduzido de que fala: está mal, mas… fazer o quê? É a vida… a vidinha…
Julgo que o seu texto aponta também para a hierarquia de Maslow e para a dificuldade em atingir o topo. Nivelamo-nos muito pelo básico…

Concluí o 1º ponto da sua encomenda. Diga-me depois se não o desiludi, sim?

Denise disse...

As melhoras, André.
Aqui em Portugal começam as crises alérgicas com o sol e as flores e o calor.
Conhece o nosso país?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Denise

Já li o Ponto 1 do seu trabalho sobre a literatura (também) para a infância. Daqui a pouco já comento.
Marcuse era um intelectual muito empenhado na luta contra as injustiças e um defensor da libertação. Estou a tentar sensibilizar os editores para estas obras ignoradas em Portugal.

E. A. disse...

A última citação de Marcuse:

a satisfação está sempre ligada à destruição. A dominação da natureza está ligada à violação da natureza. A procura por novas formas de energia está ligada ao envenenamento do ambiente. A segurança está ligada à servidão, o interesse nacional à expansão global. O progresso técnico está ligado ao controle e à manipulação progressivos dos (próprios) seres humanos,

fez-me pensar que o capitalismo empolou a ciência e a tecnologia de um modo nunca antes visto, por forma a encontrar soluções numa regressão quase infinita, por exemplo: inventamos mais eficazes métodos de segurança, porquanto estamos cada vez mais inseguros; criamos ágoras virtuais, porquanto a informação pública é cada vez mais viciada. O que me leva a observar, que, quer seja o bem essencial da segurança, como o do conhecimento (Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer) há sempre planos de fuga: o Eros (face ao ímpeto auto-destrutivo) resiste sempre, e eu compreendo-o com um alcance maior do que a "simples" sobrevivência darwinista, é querer ser maior. O capitalismo atrofia esse instinto vital, mas n o mata.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

O espírito humano é grande e talvez consiga escapar à lógica do capitalismo irracional.
Esta frase sua resume o que penso quando falo de democracia electrónica:

"criamos ágoras virtuais, porquanto a informação pública é cada vez mais viciada."

Um excelente "plano de fuga". E podemos encontrar inspiração nas obras esquecidas de Schelling que antecipam ideias geniais, apenas retomadas por Bloch e Heidegger.

Por vezes, fico "desesperado" sem saber se vale a pena continuar a lutar pela transparência, mas o meu desejo de recriar um mundo novo é forte, embora também sujeito a atrofia capitalista. As aves são um exemplo de resistência: adaptam-se à vida na cidade dos homens. :)

Denise disse...

Sabe o que me assusta em si Francisco? A sua semelhança com o Anikin Skywalker nessa sua vontade de "melhorar" o mundo.
Não leve a mal. Eu tb quero que o mundo melhore. Mas assusta-me toda essa sua gana.
Assusta-me e delicia-me ;-)

Denise disse...

Vou cogitar sobre o seu desafio

E. A. disse...

Ora, às pessoas nobres e honradas essa pergunta "se vale a pena" n se coloca. A tarefa do homem, o ergon, é sermos melhores, examinarmos a vida, determiná-la em perfectio. A virtude vem de vis - força! :)
Só os fracos desistem.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

É isso mesmo: "Só os fracos desistem." E como não somos fracos, não vamos desistir.

Denise

Essa "gana" de que fala deve ser efeito dalguma conjugação hiperactiva de genes. Nada posso fazer para a contornar: venço-a durante umas escassas horas, mas ela tomou a minha vida. :(

André LF disse...

Obrigado, Denise!
Não conheço Portugal, mas pretendo ir ao vosso país um dia.
Os meus bisavós maternos eram portugueses. Acho que o meu avô materno nasceu em Portugal. Devo ter alguns parentes aí, mas não os conheço.

André LF disse...

Hoje vocês estão inspirados :)

Gostei da sua frase, Papillon:

"A tarefa do homem, o ergon, é sermos melhores, examinarmos a vida, determiná-la em perfectio. A virtude vem de vis - força!"

Francisco, apesar da distância geográfica, nosso objetivo é o mesmo!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André e amigos

A terapia linguística vai ajudar-nos a dar uma voz nova e actual à GRANDE RECUSA. Uma nova actualização ou concretização (os termos da estética da recepção de Iser e Jauss) da Grande Recusa do sistema capitalista: o objectivo do nosso Mosteiro Virtual.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A ideia de Paradoxo da Papillon pode funcionar bem na crítica do establishment. Tem um precedente: Gregory Bateson, que a usa tanto na ecologia do espírito como na sociologia naven (iatmul).
O capitalismo é paradoxal.

E. A. disse...

Mosteiro? O meu cantinho é q tem algo mais de religioso, o seu não. :P
O meu é para rezar e contemplar, o seu é para pensar e questionar - actividades mundanas.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Usei mosteiro para designar a rede que nos liga uns aos outros: cada blog é uma capela desse Mosteiro.

E. A. disse...

N gosto da imagem. Só isso.
A vida de mosteiro é contemplativa, passiva, da imperturbabilidade, da ataraxia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Penso fazer um post sobre Aristóteles e a Música:

"É claro que a finalidade da educação dos mais jovens não deve ser o jogo. Ninguém joga enquanto aprende, pois a aprendizagem surge acompanhada de dor".

Parece o contrário do "duo Aprender Brincando", mas não é: AAristóteles fala da "formação cultural", como dizem na Alemanha, e esta exige "esforço", tenacidade, força de espírito, vontade de vencer a inércia social do sistema. E, nesta perspectiva, "a música contribui para o descanso e o cultivo da inteligência".
Parece-me que esta ideia aristotélica vem em socorro da "regressão da audição" de Adorno. O carácter aprazível e cognitivo da música está a perder-se e, nas nossas escolas, a educação musical não existe tout court.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ui Papillon

Isso era o mosteiro monástico! O nosso seria ou é laico e secular.

Manuel Rocha disse...

Vinha lê-lo mas não consegui passar da frase de abertura:

"Obscena não é a gravura de uma mulher nua que expõe os pêlos do púbis."

Mas, evidentemente, Caro Marcuse!
E depois devia ter acrescentado que obscena, isso sim, é a respectiva abolição nesta modernidade depilada , em lugar de derivar para medalhas, ora essa !!!

Sugiro a criação de um movimento pelo regresso do dito. Quem me acompanha ?

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Marcuse escreveu isso em plena época das revoltas dos estudantes, simbolizadas ou cristalizadas em Maio de 68: o general devia ser algum da Guerra do Vietnam.

O regresso do dito?

Manuel Rocha disse...

André,

Desde que esteve no Algarve a Papillon tem-se revelado ainda mais inspirada do que é usual. Eu julgo que terão sido efeitos dos ventos Levante, mas ela confirmará...

:))

Denise disse...

Acompanho-o eu, meu Vizinho.
Abaixo a depilação genital!

Manuel Rocha disse...

Sim, Francisco, do dito púbis,por Toutatis, de quem devia ser ?!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, a depilação genital! Já troquei impressões com a Papillon sobre esse assunto: está cada vez mais difundida e não é só genital; também é peitoral e axial. Torno o sexo mais gratificante, além de "aumentar" o tamanho da "coisa".
Aa modernidade ainda foi "pilada"; a pós-modernidade pode ser talvez mais "depilada".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mas o púbis existe em toda a parte e, tal como qualquer outra mercadoria, é bem acessível. Obsceno não é o sexo despido, mas o "sexo" encoberto!

Manuel Rocha disse...

Repare, Meu Caro:

O problema é que os "clássicos", como eu, que não se formaram neste contexto pós-moderno, ficam expostos ao susto em situações indevidas, podendo até ver-se na contigência de exigir apresentação do BI para confirmar que a sequência em perspectiva não se revestirá de carácter pedófilo!

:)))

E agora deixe-me ler o seu texto sff....

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Porém, a frase de Marcuse não foi bem interpretada. Obscenidade é uma categoria moral e a terapia linguística visa operar uma transferência dos significados e das valorizações da ordem estabelecida para a revolta contra o establishment. Um modo de levar a cabo a reformulação da própria subjectividade e dos indivíduos que devem transformar o mundo: educá-los para a revolta.
A pornografia era vista como algo obsceno; o general condecorado pelos seus feitos numa guerra agressiva era altamente valorizado. A terapia inverte o esquema: o general vestido e adornado é obsceno, porque deu ordens de abate de inocentes; a mulher nua, mesmo tratando-se de uma actriz pornográfica ou de um modelo da PlayBoy, não é obscena. Este jogo dialéctivo de subversão da "percepção" pode ser levado mais longe: o objectivo é político. Chama-se a Grande Recusa.

Manuel Rocha disse...

Ora bem, meu Caro Francisco:

Terá que me fazer o obséquio de reconhecer a este seu "desafiado" um esforçado e continuo contributo para a Grande Recusa cuja apologia, como sabe, acompanho.

Quanto á construção de novas linguagens, pois ajudava se você abrandasse o ritmo de publicações, pois desta forma nem tempo se arranja para o ler, quanto mais para escrever...

E como se não bastasse, ainda cria distracções desnecessárias, embora de toda a actualidade, como é o caso do tema dos comentários anteriores, que, de resto, até deveria ser sugerido ao Prós e Contras: "Púbis: sim ou não ?"

:))))

Manuel Rocha disse...

Papillon,

Vê-se que não conhece o meu "mosteiro".

;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Passo a palavra! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou".

(Uma quadra de um dos Sonetos a Orfeu, Rainer Maria Rilke)

Com esta quadra ponho termo ao "deboche"...

E. A. disse...

vide: Pornography and Obscenity by D. H. Lawrence. (ele neste pequenino ensaio descontruía as palavras e o seu sentido prévio)


Sim, Francisco, a educação musical que se dá nas escolas é um passa-tempo, em que eles nem aprendem música, nem a ouvir música. Eu estudei solfejo e orff ao mesmo tempo quando era criança e penso q seja o melhor método. Educar o ouvido e a criatividade/improviso. Considero a música estruturante na educação e os antigos tiveram isso em conta. Fiz um trabalho de Platão e a música que me deu imenso prazer na altura, dado ele ser, aparentemente, tão avesso à arte. :)


Manuel,

Quanto a esse inquérito ao auditório: veja a minha idade... sou mais que pós-moderna! ;)
É, o Algarve faz-me sempre bem. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Borboleta

Esse é um bom ensaio, mais os de George Steiner e S. Sontag.
Gostou da quadra de Rilke? Muito bonita e talvez resolva meditar Rilke... Gostava de ler o seu "Platão e a Música".

E. A. disse...

N tenho aqui no pc. Já tem alguns aninhos, mas posso scanar e enviá-lo.
Gostei imenso da quadra. :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uns versos para a Papillon:

"Oh como tudo está longe
e há tanto tempo passado.
Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar.
E uma, de entre todas as estrelas,
havia de existir ainda na verdade.
Creio bem que saberia
qual delas foi que durou
sozinha,
qual, como cidade branca,
está no extremo do raio nos céus..."

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"Assim vivemos nós, sempre a despedir-nos"

Ou em português do Brasil:

"Assim vivemos nós em despedida sempre".

Oder em alemão:

"So leben wir und nehmen immer Abschied."

A Oitava Elegia de Duíno de Rilke compara o modo de ser do homem que sai do ventre materno para viver de frente até à morte, e o modo de ser do animal que vive na eternidade, porque não saiu do seio.
O nosso Destino humano é estar em frente e sempre em frente. A morte pertence-nos: a nossa própria morte. Estamos de tal modo familiarizados com esta atitude de estar em frente que tememos deixar estar em frente: tememos a nossa perda no seio. Eu temo-a e muito, mas sou ser lançado em frente, sempre em frente, e erguido: observo o que me rodeia...
Hoje até me apetece brincar com a poesia, porque estou violento...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Heidegger não aprecia essa atitude humana de estar em frente: vê nela o espírito da ciência e da técnica, o domínio da natureza. Porém, a leitura de Heidegger é simplesmente uma leitura de Rilke. Talvez a leitura de Heidegger seja a mais adequada para dar sentido ao mundo dos povos selvagens, embora Rilke pareça não fazer uma distinção entre dois modos de ser humano. Como ser em risco o homem não tem abrigo e, se o deseja ter, tem de o criar. Criar um abrigo, mesmo que passageiro, implica estar de frente e agir. O abrigo conquista-se. O tempo é Risco e, no "pedaço" que nos pertence, estamos sempre a arriscar, arriscando a nossa própria vida. De certo modo, prefiro ver o Aberto de Rilke como "ausência" de "destino". Tudo nos pode acontecer e estamos sempre em risco: a nossa acção e seus efeitos escapam-nos ao controle. Devemos estar erguidos, de pé, com olhar circunspecto e vigilante. A morte é sempre certa...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Se a dor é fenda, fractura, então o homem é ser dorido/sofrido/fracturado. Esta é a nossa condição de mortais. Estar de frente é ser ao modo de ser da fractura e esta não é somente a fractura interior/exterior, sujeito/objecto, mas também uma fractura que atravessa a nossa própria espessura interior. Corremos o risco de fractura total em diversas frentes. Somos seres fracturantes: a vida é luta. O seio é vivido fugazmente durante os momentos de paixão, mas estes momentos são milésimos de segundo numa vida consagrada à fractura. Donde vem a Relação ao homem? O universo poético de Rilke começa a estremecer: a fissão é apenas uma modalidade de ser fracturado. Há outra: a fusão, mas ambas se banham na fractura.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Nessa fractura que somos, podemos tomar uma decisão: adiar constantemente a morte em atitude circunspectiva e expectante ou antecipar a morte que nos acompanha. Nessa pequena mas dolorosa decisão reside toda a nossa liberdade. Somos seres que adiam a morte autêntica: aquela que resulta da nossa própria decisão. Somos mortos adiados...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

puf... um erro atroz: um "x" em vez de um "s". Talvez tenha sido intencional. Talvez tenha sido a ponta do dedo a trocar a tecla..., mas o X é mais expressivo: fora, completamente fora...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

... de mim, eu estou. afinal, sou um ser fracturante! Rilke fala:

"Creio que a estrela,
de que recebo brilho,
está já morta há milénios.
Creio que no barco,
que passou por mim,
ouvi dizer qualquer palavra de medo.
Na casa bateu horas
um relógio...
Em que casa?...
Gostava de sair do meu coração
para debaixo do céu imenso.
Gostava de rezar."

Vejo agora donde vem a Relação: "Gostava de rezar". Como os poetas são seres tão simples! Anoitece a carne, amanhece o espírito! O espírito azul...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E deste modo me despeço dos laços virtuais. Visto-me de noite e noite profunda eu sou, o fundo da meia-noite onde o azul aparece na sua azulidade, aquela que anseia pelo ainda não-nascido...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Aliás, abriga o não-nascido...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Isso mesmo: a-briga... Nada está destinado ao ser fracturante...

E. A. disse...

Boa noite! Só o leio agora.
Rilke é um magnífico poeta e esse poema é precioso.
Obrigada por ter divagado, pude segui-lo.

Sim, vivemos em pé e de frente, mas não para o futuro, antes, olhando o passado. Por isso tudo é uma despedida. Uma espécie de contra-relógio, comandado por nós, como diz, daí também a fractura: a decisão implica sempre perda, a decisão é uma divisão. Os únicos que vivem a eternidade são os amantes: "neles reina um Deus", diz Holderlin.

Que o azul veludo da noite o embale num colo sereno.

E. A. disse...

Aliás, mesmo que quiséssemos lançar-nos sem reservas para o futuro, temos memória que nos repuxa o movimento. É isso que diz o poema que publiquei no meu blog.
Cada passo dado, determinado por nós, determina-nos a nós, e ressoa em frequências inaudíveis, mas "de repente" ouve-se como um estrondo!
Daí que seja ainda mais arriscado agir: cada acção torna-se uma pegada em cimento fresco, ameaçando seguir-nos até ao derradeiro passo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Acordei e reparei que ainda estava ligado à rede. Como diz o poeta:

"Sem sabermos o nosso lugar certo,
nós agimos em real relação.
As antenas sentem as antenas,
e a lonjura vazia aguentou".

Sonhos azuis!