«Acredito que a teoria de Freud é, na sua própria substância, "sociológica", e que nenhuma nova orientação cultural ou sociológica é necessária para revelar essa substância. O "biologismo" de Freud é teoria social numa dimensão profunda, que tem sido obstinadamente nivelada pelas escolas neofreudianas». (Herbert Marcuse) «Nós não desembarcámos neste planeta como alienígenas. A humanidade é parte da natureza, uma espécie que evoluiu ao lado de outras espécies. Quanto mais nos identificarmos com o restante da vida, mais rapidamente seremos capazes de descobrir as origens da sensibilidade humana e de adquirir o conhecimento sobre o qual fundamentar uma ética durável, um verdadeiro sentido de orientação. (...) Uma ética ambiental duradoura visará preservar não apenas a saúde, o bem-estar e a liberdade da nossa espécie, mas também o acesso ao mundo em que o espírito humano nasceu». (Edward O. Wilson) Edgar Morin tem razão quando afirma que o desbloqueio da noção de vida tornou possível o desbloqueio da noção de homem, o que significa, entre outras coisas, que a revelação biológica comanda a revolução científica que abre os domínios da antropologia às ciências biológicas, mas, conceptualmente falando, a sua análise peca por negligência da filosofia. Embora «louve» de modo ingénuo e apressado as tentativas de alguns filósofos, tais como Marx, Engels, Spencer ou Freud, para firmar a ciência do homem sobre uma base natural, Morin, quando considera que a filosofia do homem sobrenatural foi uma das últimas resistências opostas à ciência do homem, parece querer romper com toda e qualquer filosofia, como se esta tivesse os seus dias contados. Este positivismo doentio de Morin não lhe permitiu ver e avaliar o enorme contributo da filosofia para o desbloqueio da noção de homem, em especial o da tradição da antropologia filosófica oriunda de Max Scheler. Na sua obra "Os Graus do Orgânico e o Homem", H. Plessner, embora diga que a filosofia não tenha dado um contributo significativo para a antropologia, procura, sem sair da filosofia, indagar a partir de um ponto de vista biológico qual a estrutura fundamental de todo o ser orgânico. Segundo Plessner, o ser orgânico é uma crescente e gradual "centralização", bem como uma "posicionalidade". Chega-se assim a uma determinação do humano da qual a sua particularidade consiste numa potenciação muito específica dessas duas características do ser vivo. A centralização e a posicionalidade atingem, no homem, a sua "peripécia", no sentido de que aquilo que em todos os sistemas orgânicos é somente uma centralização imanente em conexão com um campo imediatamente circundante alcança no homem uma centralização que é, ao mesmo tempo, distância em relação aos dois aspectos. Assim, a "peripécia" adquire o carácter da reflexividade, pela qual se tornam possíveis tanto a relação do homem consigo mesmo quanto a sua posse de um mundo objectivo. Culminando e aumentando continuamente o princípio da centralização, o homem caracteriza-se por uma centralização que se tornou uma concentração excêntrica. Esta faz do homem, no sentido objectivo, um ser «imperscrutável», o homo absconditus, o qual é para si mesmo «uma questão aberta». Sendo assim, o homem nunca se conhece nas suas últimas possibilidades mas somente nos actos e atitudes que se distinguem dele. Estes são, no entanto, determinados não só pela sua emancipação e liberdade fundamentais mas também pelas suas dependências em relação à natureza, à situação e aos vínculos históricos que o limitam exactamente na sua infinita soberania por eles simultaneamente pressuposta, traçando para a sua liberdade caminhos concretamente finitos. A antropologia de Plessner, bem como a de A. Gehlen e de A. Portmann, é uma teoria do homem a partir da apreensão da sua natureza (antropologia de baixo) e opõe-se, tal como a de Morin, à antropologia a partir da esfera espiritual do homem (antropologia de cima). Mas, ao contrário da antropologia de Morin, a teoria do homem de Plessner não rompe com a filosofia, mas apenas com as filosofias idealistas e espiritualistas do homem. Aliás, Plessner sabe que não é possível uma ciência do homem que não seja simultaneamente filosófica e científica. A breve referência à tradição da antropologia filosófica mostra que a filosofia integrou, muito antes da biologia moderna, que é uma biologia não-cartesiana, o homem no universo. Von Uslar mostrou que, nos sistemas filosóficos modernos, o problema da natureza do homem está colocado em relação com o problema do mundo e da natureza. Isto significa que os filósofos modernos pensaram que o próprio ser do homem deve ser compreendido à luz do ser do mundo de que faz parte integrante. Os três exemplos mais característicos em que o homem é visto como parte da natureza e simultaneamente como espelho do mundo são os sistemas filosóficos de Espinoza, Leibniz e Schelling. Espinoza, Leibniz e Schelling vêem o homem como "parte da natureza" e, simultaneamente, como espelho do mundo. Embora possam ser consideradas, no plano antropológico, como "modelos insulares do homem", estas filosofias modernas não tratam o problema do homem isoladamente do problema da natureza. Nestes três grandes sistemas filosóficos, a questão da natureza humana, tão grata a Edgar Morin, está intimamente vinculada ao problema da realidade do mundo em geral. No entanto, a análise do problema geral da relação homem/natureza varia de autor para autor. De um modo geral, podemos dizer que, na resposta ao problema do portador da unidade e da totalidade do ser, a tónica se desloca da substância para o sujeito. Enquanto que para Espinoza esta unidade é inquestionavelmente a natureza, para Schelling ela coincide totalmente com a unidade do sujeito. Neste aspecto, Leibniz parece representar um meio termo. Com efeito, para Leibniz a unidade do ser manifesta-se já na representação. Da representação à unidade do sujeito, a distância é «curta» e, na história da filosofia, foi ocupada pela filosofia transcendental de Kant. Depois disso, temos a filosofia do idealismo alemão: Fichte, Schelling e Hegel. Leibniz e Espinoza pensam que o problema da natureza do homem está intimamente associado ao problema da unidade do mundo e da natureza. Pensam também que a experiência da alma constitui um acesso para compreender o ser da natureza. Mas o caminho trilhado por cada um deles é inteiramente diverso. A fórmula de Espinoza «Homo pars naturae» insere o homem na totalidade do mundo. Para Espinoza, o homem não é uma entidade puramente subjectiva e espiritual que se contraporia à natureza, mas uma parte integrante da própria natureza. Assim, para Espinoza, o ser aparece a tal ponto como a potência geradora da natureza que o próprio Deus é, em última análise, natureza. A unidade do mundo explica-se, portanto, inteiramente a partir da potência geradora da natureza. O homem é apenas uma parte dela que experimenta a natureza em si mesma na dinâmica dos instintos e dos afectos. Ora, para Leibniz, a experiência da realidade feita no ser do homem é a da representação, isto é, do reflexo da totalidade cósmica em cada ser individual dotado de alma. Se na filosofia de Espinoza a potência geradora da natureza era concebida como uma necessidade absoluta, na filosofia de Leibniz domina a ideia de que seriam possíveis outros mundos inteiramente distintos do universo que realmente existe, não sendo sequer evidente que existe um mundo. Leibniz concebe o ser e a realidade a tal ponto como representação, espelho ou reflexo, que o próprio Deus mais não é que a plenitude da representação na totalidade das perspectivas. Assim, a natureza do homem consiste na representação e na «perspectividade», uma vez que a unidade do todo consiste na compatibilidade e relacionalidade recíproca que existe em todo o ser individual. Esta compatibilidade e relacionalidade estão representadas em cada indivíduo num reflexo caracterizado por uma perspectiva. Ora, este percurso pela história da filosofia visa mostrar que o desbloqueio da noção de homem, que exige uma nova antropologia, é muito anterior à revolução biológica moderna que viu nascer uma biologia não-cartesiana. Contudo, a revelação biológica impulsionou de forma directa e quase imediata o nascimento da nova antropologia. Os dados novos que as ciências biológicas e biomédicas trouxeram reformaram, no sentido de Bachelard, completamente a noção de Homem. Se a metafísica clássica, nomeadamente a de Espinoza e a de Leibniz, prepararam de modo espectacular o terreno da nova antropologia, integrando o homem na unidade do cosmos, este movimento antecipatório da filosofia acabou por refluir com o surgimento do idealismo alemão que traçou uma linha divisória radical entre a filosofia e a ciência. A velha aliança tinha sido assim quebrada. Mas Marx e o marxismo trouxeram um novo impulso: a aliança entre filosofia e ciência foi parcialmente restabelecida no marxismo. Apesar da suposta ruptura epistemológica que atravessa o pensamento de Marx e que o divide em dois grandes períodos (Althusser), as obras de juventude e as obras de maturidade propriamente científicas, o Jovem-Marx estabeleceu de modo firme e seguro o projecto de uma scienza nuova: «A ciência natural acabará um dia por incorporar a ciência do homem, da mesma maneira que a ciência do homem integrará em si a ciência natural; haverá apenas uma única ciência». Embora preparado pela filosofia ao longo das suas intermináveis lutas contra a tirania do pensamento religioso dogmático, que possibilitaram a compreensão do homem na sua finitude, independentemente de qualquer «força» estranha e transcendente, a unificação das ciências naturais e das ciências do homem começou pelas ciências biológicas. Morin considera que o desbloqueio biológico operou-se fundamentalmente em três frentes, a saber: a biologia molecular, a ecologia e a etologia. É certo que foram estas ciências que fizeram surgir brechas no seio de cada paradigma insular, mas, mesmo permanecendo no domínio da biologia, os movimentos de aberturas para os outros domínios até então interditos, e através dos quais se operam as primeiras conexões e emergências teóricas, foi iniciado, de modo surpreendente, pela biologia da evolução. Além da biologia da evolução, da biologia molecular, da ecologia e da etologia, duas outras ciências biológicas, a sociobiologia e a neurobiologia trouxeram, nas últimas décadas, um contributo de tal modo complexo e problemático que se torna necessário reformar todos os modelos antropológicos actuais, nomeadamente o de Morin, e fundá-los provisoriamente sobre novas bases biofilosóficas. Consequentemente, consideramos que o desbloqueio biológico ocorreu, não em três, mas em seis frentes: a biologia da evolução, a biologia molecular, a ecologia, a etologia, a sociobiologia e as neurociências. Cada uma destas ciências biológicas desbloqueia uma determinada noção ou ideia, abrindo assim cada paradigma isolado para os domínios até então interditos. O desbloqueio de uma determinada noção compreende sempre simultaneamente uma ruptura e um acto epistemológico, no sentido preciso de Bachelard. A reforma de uma determinada noção implica sempre a ideia de que essa noção representa, na cultura científica, um obstáculo epistemológico que entrava o desenvolvimento científico. Assim, as noções de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, que dominavam os anteriores paradigmas isolados, constituem verdadeiros obstáculos epistemológicos. Foi preciso esperar pela revolução biológica para vermos essas noções a ser submetidas a uma crítica severa e radical que, na maior parte das vezes, nem sequer a designação nominal conservou. Todas essas noções ideológicas funcionavam no interior de paradigmas ou modelos teóricos que teimavam manter-se isolados uns dos outros. Ora, Prigogine demonstrou que essa imagem do saber compartimentado em áreas e domínios isolados uns dos outros não conseguiu resistir aos efeitos de impacto da revolução científica do século XX. Se hoje o conceito de ciência é, na sua essência, um conceito filosófico, no sentido de implicar uma aliança com toda a cultura e particularmente com a filosofia, o próprio conceito de filosofia precisa de ser revisto e reformado a tal ponto que possa, sem perder a sua autonomia e especificidade, integrar no seu seio a actividade científica. Como o nosso conceito de Filosofia já compreende a actividade científica, não temos qualquer necessidade de reduzir o seu diálogo com as ciências ao domínio da epistemologia, da gnoseologia ou da lógica. Assim como a ciência contemporânea é filosofia, assim também a filosofia é ciência. Só a sua «unificação» dialéctica nos permite o empreendimento ousado de desbloquear as noções ideológicas de vida, de natureza, de animal, de sociedade e de espírito, de modo a preparar um novo terreno do qual possa emergir um novo modelo teórico de Homem. Sem os métodos filosóficos seríamos incapazes de definir o homem como totalidade. Ora, é precisamente o conceito de "totalidade em evolução", mais precisamente de sistema, que devemos opor a cada uma das noções que entravavam o progresso científico. Dessa oposição da ideia de sistema a cada uma dessas noções surgirão ímpetos do génio científico que provocam impulsos inesperados no curso do desenvolvimento científico. Bachelard chamou-lhes actos epistemológicos, mas Foucault, já numa outra perspectiva, optou pelo termo irrupções no saber para os designar. Anexo: Releia "Ateísmo e Filosofia Marxista" e, sobre H. Plessner, o "Riso e o Choro". J Francisco Saraiva de Sousa
quarta-feira, 30 de abril de 2008
O Homem e a Natureza
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segunda-feira, 28 de abril de 2008
Natureza e Vida: Notas sobre BioFilosofia
«Filosofar sobre a natureza significa criar a natureza». (Schelling) A teoria holística da vida e da natureza «tenta transcender a duradoura controvérsia vitalismo-mecanicismo. Ela concorda com os mecanicistas ao afirmar a unidade da natureza, reconhecendo na vida dos organismos diferenças de grau com relação ao restante do mundo físico, embora não difira dele em espécie. E também concorda com os vitalistas ao enfatizar que os organismos são totalidades orgânicas, que não podem ser reduzidas à física e à química de sistemas mais simples. De facto, a teoria holística considera toda a natureza como viva e, nesse aspecto, representa uma versão actualizada do animismo pré-mecanicista». (Rupert Sheldrake)
Alfred North Whitehead, Alexander e Ernst Bloch são alguns dos maiores filósofos contemporâneos que recuperaram essa imagem da natureza como "organismo vivo". A biologia molecular procura explicar os processos comuns aos seres em função do estatuto particular conferido aos seres pela sua própria origem e pelo seu próprio fim. Trata-se, portanto, de um novo paradigma biológico, cuja originalidade reside na metamorfose do conceito de vida. O reconhecimento da unidade dos processos físico-químicos ao nível molecular constitui efectivamente uma crítica severa do vitalismo. A biologia molecular demonstrou pretensamente que não existe entidade metafísica escondida atrás da palavra vida. Qualquer uma das suas propriedades pertence aos elementos que compõem a matéria. Entre a matéria inerte e a «matéria viva» não há nenhuma mudança de essência: a vida é constituída pelos mesmos elementos que compõem a matéria inerte. A única diferença reside na organização desses elementos: os seres vivos são sistemas extremamente complexos, que devem ser analisados na sua estrutura, no seu funcionamento e na sua história.
Jacques Monod caracterizou os sistemas vivos por três propriedades fundamentais: teleonomia, morfogénese autónoma e reprodução invariante, que se encontram estreitamente associadas em todos os sistemas vivos. A mais fácil de definir quantitativamente é a reprodução invariante: Monod definiu o «conteúdo de invariância» de uma dada espécie como sendo «igual à quantidade de informação que, transmitida de uma geração à seguinte, assegura a conservação da norma estrutural específica». Embora pareça evidente, a teleonomia é uma noção que se revela profundamente ambígua à análise, uma vez que implica a ideia subjectiva de projecto. Monod optou por definir, arbitrariamente, o «projecto teleonómico essencial» como «o que consiste na transmissão, de uma geração a outra, do conteúdo de invariância característico da espécie». Estas três propriedades dos sistemas vivos não são, como julgava o vitalismo, três manifestações de uma mesma e única propriedade mais fundamental e mais íntima, inacessível a toda a observação directa.
O «segredo da vida» reside, pelo contrário, no tipo de relação que se estabelece entre as três propriedades dos sistemas viventes: Monod estabeleceu-o ao dizer que a invariância genética se exprime e se revela apenas através e graças à morfogénese autónoma da estrutura que constitui o sistema teleonómico. Daqui resulta que, em primeiro lugar, a invariância reprodutiva precede necessariamente a teleonomia e, em segundo lugar, o estatuto destas três noções não é o mesmo. A invariância e a teleonomia constituem efectivamente propriedades características dos seres vivos. Quanto à estruturação espontânea deve ser considerada antes como um mecanismo, que intervém tanto na reprodução da informação invariante como na construção das estruturas teleonómicas.
A biologia moderna só aceita como única hipótese válida a tese segundo a qual a invariância precede necessariamente a teleonomia. Isto significa que, em termos darwinianos, a aparição, a evolução e o aperfeiçoamento progressivo das estruturas cada vez mais intensamente teleonómicas são devidas a perturbações ocorridas numa estrutura possuindo já a propriedade de invariância. Esta estrutura é capaz de conservar ao acaso e de submeter os seus efeitos ao jogo da selecção natural. A teoria da evolução esboçada por Monod não é rigorosamente a de Darwin, mas uma nova teoria que implica o conhecimento dos mecanismos químicos da invariância reprodutiva e da natureza das perturbações (mutações) a que estão sujeitos estes mecanismos. A teoria selectiva da evolução de Darwin só conseguiu todo o seu significado, toda a sua precisão e toda a sua certeza, quando se «criou», no século XX, a biologia molecular.
Da fusão da teoria molecular com a teoria da evolução surgiu uma nova síntese teórica ou um novo paradigma científico, que é a teoria molecular da evolução. Uma tal teoria sintética e unificada tem a seu favor poderosos argumentos de método, dos quais Monod destaca apenas três. Até ao presente, a teoria selectiva da evolução foi a única a ser compatível com o «postulado da objectividade», a ser compatível com a física moderna, e a assegurar em definitivo a coerência epistemológica da biologia, conferindo-lhe o seu lugar entre as ciências da «natureza objectiva». Monod defende explicitamente a tese de que a unidade das ciências biológicas reside na teoria selectiva e molecular da evolução. Podemos ir ainda mais longe e dizer que a biologia molecular considerada como paradigma científico é uma teoria selectiva e molecular da evolução. O novo paradigma rompeu completamente com todas as teorias ideológicas da vida, que ocupavam anteriormente o lugar que, por direito, pertence às teorias científicas da vida: o Continente Vida.
Monod classificou as teorias da vida, de acordo com a natureza e a extensão do princípio teleonómico a que fazem apelo, em dois grupos fundamentais: as teorias vitalistas e as teorias animistas, às quais convém acrescentar as teorias mecanicistas e as teorias sistémicas. Aliás, o vitalismo deriva, de certo modo, do animismo e, por isso, não se justifica tratá-lo à parte ou isoladamente, como faz Monod. A escolha filosófica é mais entre a teoria mecanicista da natureza e da vida, com Deus como figura opcional, e a teoria da natureza como algo vivo, mas sem Deus, ou a teoria de um Deus vivo junto da sua "criação", a natureza viva (J. Cobb; Ch. Birch). 1) As teorias vitalistas que, como o vitalismo metafísico de Bergson, admitem um princípio teleonómico ao qual é expressamente atribuído não operar senão no seio da biosfera, donde resulta uma distinção radical entre os seres vivos e o universo inanimado. O vitalismo (H. Driesch) sustenta que os organismos vivos são animados e não inanimados, sendo organizados por almas imateriais, factores vitais, impulsos formativos ou enteléquias. Isto significa que o vitalismo é um desenvolvimento da teoria animista da natureza que predominou na Europa antes da revolução científica mecanicista. Mas, ao contrário desta última que tratava toda a natureza como viva, o vitalismo confinou a vida aos organismos biológicos, deixando a restante natureza aos cuidados da física mecanicista. 2) As teorias animistas que, como o progressismo cientista de Teilhard de Chardin ou o animismo metafísico de Leibniz, apelam para um princípio teleonómico universal, responsável pela evolução cósmica e pela evolução da biosfera, no seio da qual esse princípio se exprimiria de modo apenas mais preciso e intenso. Como escreve Monod: «Estas teorias vêem nos seres vivos os resultados mais acabados e perfeitos de uma evolução universalmente orientada que culminou, porque devia culminar aí, no homem e na humanidade». Quer sejam vitalistas ou animistas, as teorias ideológicas da vida pressupõem a mesma hipótese de que a invariância é protegida, a ontogenia guiada, a evolução orientada, por um princípio teleonómico inicial, do qual todos estes fenómenos seriam manifestações.
Esta hipótese é o inverso da hipótese defendida actualmente pela biologia molecular, segundo a qual a invariância precede necessariamente a teleonomia. O carácter ideológico, quer dizer não-científico do vitalismo e do animismo, transparece claramente no abandono, parcial ou total, confessado e consciente ou não, do postulado da objectividade que se define como «a recusa sistemática em considerar como podendo conduzir a um "verdadeiro" conhecimento toda a interpretação dos fenómenos, dada em termos de causas finais, quer dizer, de "projecto"» (Monod). No entanto, os seres vivos são seres que se caracterizam por um projecto teleonómico essencial. Isto significa que a biologia molecular deve ser necessariamente mecanicista para salvaguardar a sua «objectividade»?
François Jacob demonstrou que o reconhecimento da «finalidade» dos sistemas vivos implica necessariamente uma crítica radical do reducionismo e consequentemente (como pensamos) do mecanicismo. Contrariamente à biologia clássica, a biologia moderna exige, nas suas análises, uma referência constante ao projecto dos organismos, ou seja, ao «sentido» que confere a própria existência às suas estruturas e às suas funções. A estrutura não pode ser dissociada do seu significado, não só no organismo mas igualmente na sucessão dos acontecimentos que conduziram o organismo a ser o que ele é: «Todo o sistema vivente é o resultado de um certo equilíbrio entre os elementos duma organização. A solidariedade desses elementos faz com que cada modificação levada a qualquer ponto ponha em causa o conjunto das relações e produza mais cedo ou mais tarde uma nova organização. Isolando sistemas de natureza e complexidade diferentes, tenta-se reconhecer-lhes os constituintes e justificar-lhes as relações. Mas qualquer que seja o nível estudado, quer se trate de moléculas quer de células, de organismos ou de populações, a história é apresentada como perspectiva necessária e a sucessão como princípio de explicação. Cada sistema vivente resulta, portanto, de dois planos de análise, de dois cortes, um horizontal, outro vertical, que apenas podem ser dissociados para comodidade de exposição. Por um lado, há que distinguir os princípios que regem a integração dos organismos, a sua construção, o seu funcionamento; por outro lado, os que dirigiram as suas transformações e a sua sucessão. Descrever um sistema vivente é referir-se tanto à lógica da sua organização como à da sua evolução» (Jacob).
Da integração destas duas lógicas resulta, como já vimos, a unificação da biologia evolutiva e da biologia molecular, isto é, a unificação da própria biologia, cujo paradigma — a teoria molecular-selectiva da evolução — constitui aquilo a que se chama a Síntese Moderna. A ecologia, a etologia, a neurociência, a imunologia, a sociobiologia, a primatologia e a nova botânica, entre outras, são ciências naturais que fazem parte integrante da Nova Síntese. Cada uma delas soube alargar e aplicar a teoria da evolução ao seu campo específico de «análise». A moderna teoria da evolução representa, portanto, uma unidade de explicação comum às diversas ciências biológicas (E. Mayr). Para todos os efeitos, a natureza parece estar a voltar novamente à vida no âmbito da teoria científica e filosófica, tornando-se cada vez mais difícil justificar a negação da vida da natureza, bem louvada pela hipótese Gaia de James Lovelock.
J Francisco Saraiva de Sousa
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domingo, 27 de abril de 2008
25 de Abril e Discurso Presidencial
A promessa política do 25 de Abril de 1974 foi, durante estes últimos 34 anos, traída pelo sistema de corrupção inscrito nas esferas nacionais do poder pelos partidos políticos e pelas novas classes dirigentes que usaram a luta política pela conquista do poder político, não para contribuir para a mudança social qualitativa mas para ascenderem socialmente e beneficiarem pecuniariamente com essa ascensão social. A chamada "revolução dos cravos" conheceu o seu período conturbado durante o qual o PCP procurou convertê-la numa revolução "socialista", com o objectivo de implantar uma "democracia popular". Contudo, após as primeiras eleições democráticas, o PS liderado por Mário Soares venceu e, com a ajuda de alguns militares, acabou por ditar o rumo dos acontecimentos, com a implantação da democracia pluralista. Da ditadura à democracia os portugueses deixaram de ser "pobres (sentido lato) não-livres" e passaram a ser "pobres livres". Isto significa que a "pobreza" manteve-se constante aquando da passagem da ditadura para a democracia: a mais-valia da liberdade só poderia converter-se, nestas circunstâncias de pobreza constante, em mera ilusão. A democracia portuguesa é oligárquica e cleptocrática, portanto, uma falsa democracia. Daqui decorre necessariamente que o 25 de Abril não foi genuinamente uma revolução social, porque não ocorreu nenhuma mudança de modos de produção, mas um mero golpe de Estado, sem derramamento de sangue, do qual resultou no final de um período conturbado a implantação da democracia pluralista. Após 34 anos de duração dessa democracia, a sociedade portuguesa ainda não alcançou um princípio básico: a igualdade de oportunidades, devido à voracidade das suas pseudo-elites que se comportam como "elites hereditárias" que controlam, de geração em geração, todos os recursos nacionais, ludibriando a maioria dos portugueses. A traição dessa promessa do 25 de Abril deve ser imputada a todos os dirigentes e partidos políticos, mais a uns do que a outros: as mudanças que operaram não foram suficientes para colocar Portugal entre os países mais desenvolvidos. Daí que muitos portugueses, quando escutavam o anúncio televisivo das comemorações do 25 de Abril, dissessem: "Maldito dia!" Esta reacção reflecte a desconfiança dos cidadãos em relação à política e aos políticos, diante dos quais se sentem desprotegidos e abandonados. Os discursos políticos proferidos não captam a realidade da vida diária dos portugueses: os políticos tratam dos seus interesses particulares e ignoram o interesse nacional. Nestas últimas comemorações, o Presidente da República, Cavaco Silva, proferiu um discurso na Assembleia da República: Com base num estudo realizado pela Universidade Católica (era preciso o estudo?), o Presidente mostrou estar deveras preocupado com o afastamento ou alheamento dos jovens da política. (E será só da política?) As três questões colocadas (Quem foi o primeiro Presidente da República após o 25 de Abril?, Quantos países compõem a União Europeia? e O PS detém actualmente uma maioria parlamentar?) não foram respondidas correctamente pelos jovens entre os 15 e os 17 anos de idade, o que indica que eles se alhearam da política, desconhecendo o real significado do 25 de Abril. Ora, após a visibilidade da crise do sistema judicial, da crise da educação, da crise triste do PSD ou da mediatização dos casos graves de corrupção política, não era necessário um estudo para saber que os jovens são profundamente ignorantes e irresponsáveis. Porquê? A crise da escola, a crise da educação, a vida facilitada, as novas tecnologias da comunicação, o papel nefasto dos mass media ou mesmo a comida disponível, portanto, tudo aquilo que fizeram os governos depois do 25 de Abril reflecte-se nessa busca activa pela ignorância e pela vida fácil que dispensa o pensamento. Os próprios deputados e lideres políticos, incluindo os dirigentes partidários, são a face ou imagem visível dessa ausência de pensamento e de conhecimento. Sem esforço e sem um sistema de punição/recompensa não há conhecimento! Basta ir a um grande centro comercial e observar atentamente os comportamentos e o aspecto dos chamados humanos portugueses: a regressão mental, cognitiva e corporal está presente no aspecto e no comportamento. Uma "queixa" frequente dos portugueses é de que não têm memória: são, pois, seres sem memória, e, até ao nível das operações motoras, revelam deficiências. Porquê? Porque o sistema educativo foi destruído pelas políticas da educação. Ora, o mais preocupante é que ninguém capta esta regressão mental e cognitiva: Portugal é um imenso hospital de seres mentalmente deficitários. Este é o maior efeito da sociedade de consumo: não tanto pobreza e miséria materiais, mas sobretudo pobreza e miséria de espírito. O futuro de Portugal está assim irremediavelmente adiado e talvez perdido: as gerações mais novas são tanto ou mesmo mais "ignorantes" que as gerações anteriores. Não admira que os portugueses sejam escravizados em Espanha ou na Holanda: o português é mentalmente medroso e submisso. Aqueles que denunciam esta terrível realidade esquecem que foram eles os seus principais criadores e, por isso, se pretendem acabar com a mentira política e as falsas promessas eleitorais, deviam assumir as suas próprias responsabilidades pela situação indigente em que vivemos. J Francisco Saraiva de Sousa
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sábado, 26 de abril de 2008
Medicina sem Humanidade
Alexander Mitscherlich forjou a expressão "medicina sem humanidade" para denunciar a ausência da dimensão pessoal do homem doente no âmbito da medicina moderna, cujo triunfo assenta exclusivamente na aplicação dos métodos das ciências naturais e, ultimamente, dos métodos tecnológicos: «O médico deixa de adoptar a figura do curandeiro, rodeado do mistério dos seus poderes mágicos, para passar a ser um homem de ciência» (Hans-Georg Gadamer). A medicina científica ou, como dizia Claude Bernard, "experimental", encara a doença como um "defeito objectivo" que pode ser "corrigido" através de uma "reparação". Como ciência natural, a medicina moderna isola o seu objecto, abstrai-o de todos os outros contextos e objectiva-o: «A ciência moderna e o seu ideal da objectivização significa para todos (médicos, pacientes ou simples cidadãos alerta e preocupados) uma tremenda alienação» (Hans-Georg Gadamer). Isolamento é a palavra chave da medicina moderna: em primeiro lugar, o homem doente é isolado do seu meio vital, através da hospitalização ou do internamento, e, em seguida, a doença é isolada do homem, sendo o doente reduzido a um "quadro clínico típico". Só depois de analisados os fenómenos típicos de uma doença em "um caso" dessa doença é que se inicia a terapia planeada e dirigida. As funções fisiológicas e patológicas são traduzidas em funções clínicas, isto é, num "conjunto de dados" que possibilitam apreender determinadas limitações e aberrações. A subjectividade do doente permanece diafragmada, como indica a progressiva renúncia ao diálogo entre o doente e o médico. O diálogo é substituído pela orientação baseada nos dados recolhidos e registados. O doente já não aparece directamente como pessoa capaz de participar activamente na sua própria cura, mas é representado por sinais e símbolos inteligíveis apenas à especialização médica. A linguagem humana torna-se supérflua na "arte de curar" e a clínica torna-se essencialmente muda. O doente converte-se em objecto de estudo estatístico e de terapêutica, aprendendo a ser um paciente mudo da clínica que lhe presta os seus serviços. Tal como qualquer outra ciência natural, a medicina moderna é um "saber da dominação" (Max Scheler). Ora, como demonstrou Hans-Georg Gadamer, «não é possível tratar realmente nenhuma pessoa que se olhe a si mesma apenas como um «caso», e nenhum médico pode, por seu turno, ajudar um indivíduo a superar uma doença grave ou mais ou menos leve aplicando-lhe apenas o poder rotineiro da sua especialidade. Em ambas as perspectivas somos partícipes de um mundo da vida que nos suporta. E a tarefa que se nos impõe como seres humanos consiste em encontrar o nosso caminho nesse mundo vital e em aceitar os nossos condicionalismos. Tal caminho implica, para o médico, a dupla obrigação de unir a sua competência altamente especializada à sua participação no mundo da vida (Lebenswelt)». Contudo, apesar do seu inegável triunfo, a medicina científica não pode superar o conhecimento de que o objecto de investigação e de tratamento médicos é o sujeito humano. Isto significa que, na medicina, o homem como sujeito que trata (médico) se contrapõe ao homem como sujeito tratado (doente): ambos são sujeitos humanos que participam no mundo da vida. De certo modo, a medicina moderna não pode aplicar a dicotomia sujeito-objecto à existência do homem, porque o doente continua a ser uma pessoa. Mesmo que seja convertido em objecto de tratamento terapêutico, o portador de uma doença continua a ser sujeito como homem doente. Por isso, uma medicina verdadeiramente humana não pode pressupor uma relação sujeito-objecto e o dualismo que lhe é subjacente, pelo menos desde Descartes. A medicina psicossomática elaborada por V. von Weizsäcker anula o «desencantamento do objectivismo das ciências naturais», mediante a «introdução do sujeito» do homem doente na patologia, dando acesso a uma ontologia do homo patiens encarado como totalidade psicossomática. Deste modo, a relação médico-doente é sempre uma relação sujeito-sujeito e a alienação do corpo e da dor é eliminada através de uma medicina do corpo que aceita a auto-experiência corporal na vida da pessoa e da sociedade. Contudo, este novo paradigma médico implica uma nova filosofia da natureza e esta foi formulada por Ernst Bloch que leu o Jovem Marx (ou mesmo Hegel) à luz da filosofia da natureza de Schelling, antecipando uma solução para a crise ecológica. (Leia Ernst Bloch: A Filosofia da Esperança ou este post do blogue "CyberPhilosophy".) Advertência. O assunto deste post é demasiado complexo e, por isso, foi impossível desenvolver a fundamentação filosófica dos dois paradigmas médicos mencionados: o científico e o psicossomático. Além disso, como vivo em Portugal, sei que não vale a pena pensar, porque neste país o pensamento não tem abrigo. Em Portugal nada tem futuro, a não ser a corrupção, a inveja, a mentira, a trapaça, o medo, enfim a estupidez. Portugal é o túmulo do génio. Merda de país o nosso! Ao contrário do que tenho dito, a Filosofia não abandonou a natureza ao cuidado de uma ciência natural mecanicista e violenta, embora tenha contribuído decisivamente para a elaboração dessa imagem moderna da natureza. Segundo Collingwood, «Hegel quis ir de Galileu para Einstein mais ou menos em linha recta», abrindo a cosmologia à história. E Ernst Bloch elaborou uma filosofia da natureza não-mecanicista: a natureza é sempre natura naturans e natura abscondita, de modo a garantir a sua autonomia como natureza-sujeito e a libertá-la da noção de natureza dominada. A pátria surge assim como relação entre homem e natureza e a técnica da aliança lança uma ponte entre a subjectividade do homem e a subjectividade da natureza, impossibilitando o seu uso destrutivo, porque a natureza é a habitação do homem. O recurso à antropologia de Plessner ajuda a clarificar esta nova visão da natureza exterior e interior e a denunciar a alienação do homem do seu corpo. (Veja Helmuth Plessner: Conditio Humana.) J Francisco Saraiva de Sousa
sexta-feira, 25 de abril de 2008
O Sistema Nervoso dos Insectos
Em vez de falar do 25 de Abril de 1974, essa promessa traída pela corrupção, prefiro escrever sobre a organização do sistema nervoso dos insectos. Afinal, alguns insectos sociais (Karl von Frisch, Edward O. Wilson, Wilhelm Goetsch) cooperam mais do que os dirigentes portugueses entregues aos seus negócios corruptos. Da ditadura à democracia os portugueses deixaram de ser "pobres" (sentido lato) não-livres e passaram a ser "pobres" livres. Isto significa que a "pobreza" manteve-se constante: a mais-valia da liberdade converteu-se, nestas circunstâncias de pobreza constante, em mera ilusão. A democracia portuguesa é oligárquica e cleptocrática, portanto, uma falsa democracia. Daqui decorre necessariamente que o 25 de Abril não foi genuinamente uma revolução social, porque não ocorreu nenhuma mudança de modo de produção, mas um mero golpe de Estado, sem derramamento de sangue, do qual resultou no final de um período conturbado a implantação da democracia pluralista. Após 34 anos de duração dessa democracia, a sociedade portuguesa ainda não alcançou um princípio básico: a igualdade de oportunidades, devido à voracidade das suas pseudo-elites que se comportam como elites hereditárias que controlam, de geração em geração, todos os recursos nacionais, ludibriando a maioria dos portugueses. Esta organização faz-nos lembrar algumas sociedades de insectos e é provável que o português seja um insecto-homem. O plano corporal dos insectos é muito similar ao dos outros artrópodes, embora apresente algumas modificações, sobretudo ao nível do sistema nervoso, que se sobrepõem ao plano dos restantes artrópodes. Com efeito, no sistema nervoso dos insectos, os gânglios estão mais conectados e podem ser facilmente identificadas três regiões distintas: 1) um protocérebro, que recebe estímulos dos olhos;
2) um deuterocérebro, que recebe estímulos das antenas;
3) e um tritocérebro, que inerva o tubo digestivo anterior e a região cefálica. Os olhos dos insectos e as suas vias neuronais associadas no lóbulo óptico estão muito desenvolvidos. Os seus membros estão especializados para realizar muitas funções distintas, tais como voar, caminhar, saltar, manipular ou mesmo para produzir sons. Os gânglios nervosos do tórax fixam as asas e as extremidades, sendo consequentemente grandes e importantes centros de integração sensorial e de controle motor. Além dos centros nervosos e das conexões de fibras, o cérebro dos insectos utiliza órgãos neuro-endócrinos para controlar determinados processos corporais. Desses órgãos o principal é o corpo cardíaco, situado posteriormente ao cérebro. Os gânglios emparelhados localizam-se próximo da aorta e estão conectados ao cérebro mediante um tronco nervoso. As células nervosas do cérebro sintetizam hormonas, que passam às terminações nervosas do gânglio através dos axónios do tronco nervoso. As neuro-hormonas são segregadas a partir das terminações nervosas, enquanto as outras hormonas são segregadas a partir das células que se localizam dentro do próprio gânglio. As neuro-hormonas e as hormonas são depois libertadas na corrente sanguínea. Isto mostra que o corpo cardíaco é um órgão neuro-hemal. Ligado ao corpo cardíaco está o corpo alado, que é um órgão constituído por uma parte neuro-endócrina e outra endócrina intimamente interconectadas. Ambos são corpos ou órgãos directores para o controle neuro-endócrino e endócrino nos artrópodes, de resto análogo à hipófise dos vertebrados. Durante o seu desenvolvimento, a maioria dos insectos passa por fases larvares, as quais requerem uma remodelação do corpo, incluindo o sistema nervoso, para alcançarem a forma adulta. Esta metamorfose está sob controle destes órgãos neuro-hemais. Os insectos sociais, nomeadamente as formigas, as abelhas e as vespas, alcançaram o cume da evolução dos invertebrados através da formação de colónias ou de sociedades, nas quais há divisão do trabalho entre os diversos tipos de indivíduos especializados, em particular a rainha, as operárias e os guerreiros. Algumas adaptações e os mecanismos nervosos associados estão relacionados com estas novas funções sociais dos insectos. (Leia o resto aqui.) J Francisco Saraiva de Sousa
quinta-feira, 24 de abril de 2008
Filosofia Médica: Uma perspectiva teórica
A disciplina de Filosofia Médica ou Iatrofilosofia está lamentavelmente ausente nos currículos nacionais dos cursos de medicina, talvez devido à incapacidade de pensar conceptualmente exibida pelo português, que, por isso, «tem um verdadeiro horror à Filosofia, imaginando encontrá-la em tudo o que não entende. O português, continua Teixeira de Pascoaes, não quer interpretar o mundo e a vida, contenta-se em vivê-la exteriormente», de um modo emocional e trapaceiro que afoga a inteligência, e, mesmo quando parece despertar para o pensamento, fá-lo fingidamente não para compreender o mundo mas para tirar proveito e benefício próprios. Apesar de possuir uma língua erudita e rica, o português nunca produziu uma filosofia e a miséria dos cursos de filosofia estão aí para o confirmar. A elaboração de um programa de Filosofia Médica não é tarefa nada fácil até mesmo para aqueles que sabem pensar sem trapacear, dada a extensão da bibliografia e a própria complexidade da medicina contemporânea. Contudo, pretendo combater determinadas tendências que parecem ocupar corruptamente o terreno da Filosofia Médica, através da enunciação de duas teses básicas negativas: Tese 1. A Filosofia Médica não deve ser reduzida a um ramo da epistemologia, chamado iatro-epistemologia, que se ocupa da análise dos pressupostos filosóficos das ideias e das práticas médicas e da investigação dos problemas filosóficos surgidos da pesquisa e da prática médicas. Com esta primeira tese não pretendemos excluir a teoria do conhecimento científico do âmbito da filosofia médica; apenas lhe negamos a via de acesso privilegiado, sem abdicar do estudo da classificação e da hierarquia das ciência médicas. Tese 2. A Filosofia Médica não deve ser reduzida a um ramo da ética, chamado bioética, embora trate necessariamente de problemas éticos colocados pela pesquisa e pela prática médicas e abordados em função das éticas filosóficas. Com esta segunda tese não pretendemos excluir a bioética ou mesmo a ética profissional do território da filosofia médica; apenas a subordinamos a uma nova política dos cuidados de saúde. Com a enunciação destas duas teses negativas simples, abrimos um novo campo de estudos para a filosofia médica, liberto dos estratagemas moralistas, empresariais, corporativistas e religiosos instalados, de modo a pensar radicalmente a especificidade da medicina actual, altamente tecnológica, farmacológica, genética e cada vez mais submissa à lógica capitalista de mercado. O nosso plano de estudos de Filosofia Médica segue quatro caminhos selvagens e a nossa reflexão gira em torno das seguintes temáticas dominadas por uma delas: A) Filosofia da Biologia ou Biofilosofia. Apesar de já existirem revistas de biofilosofia, a literatura é ainda muito escassa neste domínio da investigação filosófica, apesar de filósofos clássicos importantes, tais como Aristóteles, Kant e Hegel, terem dedicado muita atenção aos fenómenos biológicos. O próprio Darwin reconheceu a superioridade da biologia aristotélica, bem explanada no seu tratado De Anima, em comparação com a de Linnaeus e a de Cuvier, e P.B. & J.S. Medawar dedicaram-lhe um artigo interessante no "Dicionário de Biologia". Ora, como já sabia Paracelsus, a concepção da vida está intimamente ligada a uma teoria da natureza, donde resulta a necessidade de pensar uma medicina do ambiente. B) Filosofia da Tecnologia ou Biotecnologia. Com excepção dos trabalhos de Hans Jonas, fortemente marcados por uma abordagem ética e jurídica, a biotecnologia não tem sido bem estudada pelos filósofos profissionais, apesar de constituir o maior desafio da sociedade contemporânea, ao qual convém acrescentar a engenharia biomédica, a engenharia genética, a telemedicina (medicina em rede e medicina telemática) e a cybermedicina. O projecto do genoma humano não pode ser desprezado. C) O Normal e o Patológico. Os conceitos de doença e de saúde têm sido muito estudados, mas numa perspectiva demasiado "construtivista social", frequentemente com coloração feminista, da qual resulta necessariamente a desconstrução do modelo médico. Torna-se necessário repensar filosoficamente o modelo médico e protegê-lo das ondas relativistas que invadem o pensamento contemporâneo, aliás demasiado feminino. Mas, nesta tarefa de repensar o modelo médico no quadro do actual pluralismo médico, é preciso ter em conta a tese de Ivan Illich, segundo a qual «a organização médica ameaça a saúde», de modo a colocar um travão ao processo de medicalização da vida em curso, colocado ao serviço das indústrias médicas e farmacêuticas, e, numa nova perspectiva mais substancial e relacional, procurar elaborar uma ontologia fenomenológica do Homo Patiens (Homem Doente). Contudo, nesta reflexão verifica-se facilmente que o conceito de doença é médico, mas o conceito de saúde é filosófico e, portanto, político. D) Meditatio mortis. Este tema constitui o fio condutor de toda a elaboração do plano de estudos da filosofia da medicina, possibilitando não privilegiar as abordagens bioética e bioepistemológica. Neste sentido, torna-se necessário não só perspectivar as diversas imagens da morte, mas também mostrar que morte e vida constituem as faces da mesma moeda, de modo a repensar a medicina da dor e a geriatria, esse mito da moderna sociedade de consumo metabólicamente reduzida. Outros temas que podem ser articulados com estas quatro temáticas básicas são a iatrologia (estudo dos problemas lógicos da medicina), iatrossemântica (estudo dos problemas semânticos da medicina), iatrognosiologia (estudo dos problemas do conhecimento médico), iatrometodologia (estudo dos problemas metodológicos da pesquisa e da prática médicas), iatro-ontologia (estudo dos conceitos ou hipóteses ontológicos subjacentes às doutrinas e práticas médicas), iatro-axiologia (estudo dos valores médicos), iatro-ética (estudo dos problemas morais suscitados pela pesquisa e prática médicas) e iatropraxeologia (estudo dos problemas gerais colocados pela prática médica individual e pela concepção da saúde pública). É evidente que um plano de estudos iatrofilosóficos que gira em torno de uma meditatio mortis está fortemente assente na teoria social crítica e não abdica da perspectiva política da autonomia: aquela que deseja transformar o mundo, de modo a torná-lo habitável e mais acolhedor. A Filosofia Médica não é uma mera espectadora da actividade médica, porque pode exercer efectivamente um papel activo na actividade médica e na sua organização. Este papel nem sempre tem sido benéfico, sobretudo em Portugal, porque, neste país, as pessoas não estudam seriamente filosofia da medicina, preferindo reproduzir noções moralistas conservadoras sobre a actividade e a pesquisa médicas. O objectivo da Filosofia Médica é precisamente afastar de cena esses luso-ignorantes maléficos, mais servidores do Diabo do que de Deus, e incentivar os estudos de iatrofilosofia, de modo a contribuir para a formação de médicos com competência filosófica e de filósofos com competência médica. Seguindo o exemplo de Abel Salazar, podemos avançar com um projecto ousado de Filosofia Médica em Portugal. De certo modo, a máxima de Abel Salazar («Um médico que só sabe medicina nem medicina sabe») retoma o projecto filosófico de Hipócrates e da medicina antiga e clássica. Paracelsus disse-o, nos novos tempos, nestes termos: «O médico deve ser superior, deve saber mais. Pois o médico deve ser um pai da Filosofia». Em suma, trata-se de elaborar uma teoria crítica da medicina. J Francisco Saraiva de Sousa
quarta-feira, 23 de abril de 2008
A Utopia Médica de Bacon
«A morte pode tornar-se um símbolo de liberdade. A necessidade de morte não refuta a possibilidade de libertação final. Tal como as outras necessidades, (a morte) pode tornar-se também racional, indolor. Os homens podem morrer sem angústia se souberem que o que amam está protegido contra a miséria e o esquecimento. Após uma vida bem cumprida, podem chamar a si a incumbência da morte — num momento da sua própria escolha. Mas até o advento supremo da liberdade não pode redimir aqueles que morrem em dor. É a recordação deles e a culpa acumulada da humanidade contra as suas vítimas que obscurecem as perspectivas de uma civilização sem repressão». (Herbert Marcuse) Ernst Bloch analisou as «utopias médicas» na sua magnífica obra «Das Prinzip Hoffnung» e, nos seus diálogos com a história da filosofia, destacou sempre o pensamento de Francis Bacon, que partilhava com Thomas More a luta contra o envelhecimento. Aliás, Francis Bacon foi mesmo o primeiro filósofo a exigir o prolongamento da vida como um novo dever dos médicos. Segundo Bacon, a medicina tinha uma tripla função: 1) a preservação da saúde;
2) a cura das doenças;
3) e o prolongamento da vida, que era, segundo ele, «a mais nobre de todas» as funções médicas. Esta ideia seminal do prolongamento da vida está na origem não só de uma nova concepção da morte e do envelhecimento e do surgimento de novas disciplinas e actividades de saúde, tais como a geriatria que Ivan Illich criticou com muita pertinência, como também de um novo mito social: o valor social da velhice, que actualmente em Portugal parece ser «desvalorizado», pelo menos em termos de mercado de trabalho, embora os "colarinhos brancos grisalhos" (W. Mills) se recusem a abandonar as suas longas e pardacentas carreiras, alegando desejar morrer à mesa de trabalho. Isto significa que, para os decisores nacionais, o envelhecimento dos outros começa a ser encarado como um problema económico: a velhice dos outros, não a sua, tornou-se pesada e, neste clima de ganância económica, a eutanásia começa a emergir na agenda dos mass media. Porém, a eutanásia tem emergido de forma dissimulada: o poder estabelecido inventa novas formas de se livrar dos indesejáveis, nomeadamente convertendo-os em "cobaias públicas" para aperfeiçoar as habilidades médicas usadas posteriormente nas clínicas privadas. A utopia realizada está a tornar-se um terrível pesadelo e, para que isso não aconteça sistematicamente contra os humilhados e os ofendidos, a teoria crítica deve rever a sua posição perante o fenómeno incontornável da "morte certa" (Heidegger): o direito individual de escolher o momento apropriado para morrer deve ser garantido pelo Estado e pelo seu sistema nacional de saúde, porque esta escolha é a única que realiza plenamente a liberdade do indivíduo (Hegel). Todos os mortais, mesmo e sobretudo os mais brilhantes entre eles, sentem uma enorme angústia em face da possibilidade incontornável do nada absoluto. Contudo, dado o seu enraizamento na tradição filosófica ocidental e a impossibilidade de domar a morte, os filósofos mais dispares entre si acabam por revelar muitas similitudes entre si, encarando a morte certa como um aviso para assumir uma vida autêntica, independentemente do que se possa entender por autenticidade. Assim, por exemplo, Marcuse e Heidegger são profundamente hegelianos no que respeita à compreensão da finitude humana. Marcuse aceita a eutanásia. Depois de uma longa vida gratificante ou mesmo condenada ao sofrimento sem cura, o mortal pode e deve escolher o momento em que quer pôr termo à sua própria vida, na certeza de que o mundo caminha no sentido certo. Um estudo recente de biomedicina social (Hospital de São João do Porto/Faculdade de Medicina) mostrou que um número significativo de pessoas idosas encaram positivamente a possibilidade de eutanásia, embora este estudo não explicite as razões de tal atitude. Certamente que não desejam uma morte assistida por terem vivido uma vida gratificante, mas talvez porque, a partir de certa idade, a vida deixa de ser vivida com esperança: os cuidados médicos permitem aos velhos adiarem a sua morte, sem lhes fornecer qualquer apoio. O prolongamento da vida é, como demonstrou Ernst Bloch, a realização de uma velha utopia médica, mas, de facto, esse prolongamento é uma agonia constantemente adiada e constantemente condenada à morte certa. Além disso, inverte a preocupação fundamental da política: a natalidade (sem idades) e não a mortalidade (Hannah Arendt). A filosofia da medicina de Bacon tem aspectos muito interessantes no que diz respeito aos regimes de saúde e aos cuidados de saúde: «A observação de si próprio, o que faz bem e o que nos faz mal, é a melhor medicina para preservar a saúde» (Bacon). Com esta tese de Bacon, está esboçada a tese dos cuidados de si como base de uma medicina preventiva, reforçada pela necessidade social de abertura da medicina à sociedade leiga e pela necessidade de implementar um novo projecto aberto de educação médica. Os campos da medicina preventiva e da saúde pública partilham os objectivos de prevenir doenças específicas, promover a saúde e aplicar os conceitos e as técnicas da epidemiologia para alcançar esses objectivos. Dando corpo ao dever médico estabelecido por Bacon de prolongamento da vida, a medicina preventiva procura prolongar a vida das pessoas, ajudando-as a melhorar a sua própria saúde. Por sua vez, a saúde pública procura promover a saúde nas populações através de esforços comunitários organizados. Embora possam ser tratadas separadamente, convém destacar a continuidade entre a prática da medicina preventiva pelos médicos e outros profissionais da saúde, as tentativas das pessoas e das famílias para promover a sua própria saúde e dos seus vizinhos e os esforços dos governos e agências voluntárias para alcançar os mesmos objectivos de saúde. A educação médica ocidental tem destacado mais o diagnóstico e o tratamento médico das doenças do que a promoção da saúde, e, mesmo quando se foca a medicina preventiva, esta tende a ser vista como cuidado de saúde prestado por médicos com a ajuda de outros profissionais da saúde, como se as pessoas, os seus potenciais «doentes», não tivessem o direito e o dever de cuidar de si próprios e só recorrer aos cuidados médicos em situações que não possam controlar. Esta nova perspectiva da medicina preventiva abre-a a todas as pessoas e a educação médica deve aceitar esta abertura, abdicando do monopólio corporativista dos cuidados de saúde, porque a saúde é um bem público e cada um deve assumir a responsabilidade pela sua própria saúde. (Leia este post do Manuel Rocha.) J Francisco Saraiva de Sousa
2) a cura das doenças;
3) e o prolongamento da vida, que era, segundo ele, «a mais nobre de todas» as funções médicas. Esta ideia seminal do prolongamento da vida está na origem não só de uma nova concepção da morte e do envelhecimento e do surgimento de novas disciplinas e actividades de saúde, tais como a geriatria que Ivan Illich criticou com muita pertinência, como também de um novo mito social: o valor social da velhice, que actualmente em Portugal parece ser «desvalorizado», pelo menos em termos de mercado de trabalho, embora os "colarinhos brancos grisalhos" (W. Mills) se recusem a abandonar as suas longas e pardacentas carreiras, alegando desejar morrer à mesa de trabalho. Isto significa que, para os decisores nacionais, o envelhecimento dos outros começa a ser encarado como um problema económico: a velhice dos outros, não a sua, tornou-se pesada e, neste clima de ganância económica, a eutanásia começa a emergir na agenda dos mass media. Porém, a eutanásia tem emergido de forma dissimulada: o poder estabelecido inventa novas formas de se livrar dos indesejáveis, nomeadamente convertendo-os em "cobaias públicas" para aperfeiçoar as habilidades médicas usadas posteriormente nas clínicas privadas. A utopia realizada está a tornar-se um terrível pesadelo e, para que isso não aconteça sistematicamente contra os humilhados e os ofendidos, a teoria crítica deve rever a sua posição perante o fenómeno incontornável da "morte certa" (Heidegger): o direito individual de escolher o momento apropriado para morrer deve ser garantido pelo Estado e pelo seu sistema nacional de saúde, porque esta escolha é a única que realiza plenamente a liberdade do indivíduo (Hegel). Todos os mortais, mesmo e sobretudo os mais brilhantes entre eles, sentem uma enorme angústia em face da possibilidade incontornável do nada absoluto. Contudo, dado o seu enraizamento na tradição filosófica ocidental e a impossibilidade de domar a morte, os filósofos mais dispares entre si acabam por revelar muitas similitudes entre si, encarando a morte certa como um aviso para assumir uma vida autêntica, independentemente do que se possa entender por autenticidade. Assim, por exemplo, Marcuse e Heidegger são profundamente hegelianos no que respeita à compreensão da finitude humana. Marcuse aceita a eutanásia. Depois de uma longa vida gratificante ou mesmo condenada ao sofrimento sem cura, o mortal pode e deve escolher o momento em que quer pôr termo à sua própria vida, na certeza de que o mundo caminha no sentido certo. Um estudo recente de biomedicina social (Hospital de São João do Porto/Faculdade de Medicina) mostrou que um número significativo de pessoas idosas encaram positivamente a possibilidade de eutanásia, embora este estudo não explicite as razões de tal atitude. Certamente que não desejam uma morte assistida por terem vivido uma vida gratificante, mas talvez porque, a partir de certa idade, a vida deixa de ser vivida com esperança: os cuidados médicos permitem aos velhos adiarem a sua morte, sem lhes fornecer qualquer apoio. O prolongamento da vida é, como demonstrou Ernst Bloch, a realização de uma velha utopia médica, mas, de facto, esse prolongamento é uma agonia constantemente adiada e constantemente condenada à morte certa. Além disso, inverte a preocupação fundamental da política: a natalidade (sem idades) e não a mortalidade (Hannah Arendt). A filosofia da medicina de Bacon tem aspectos muito interessantes no que diz respeito aos regimes de saúde e aos cuidados de saúde: «A observação de si próprio, o que faz bem e o que nos faz mal, é a melhor medicina para preservar a saúde» (Bacon). Com esta tese de Bacon, está esboçada a tese dos cuidados de si como base de uma medicina preventiva, reforçada pela necessidade social de abertura da medicina à sociedade leiga e pela necessidade de implementar um novo projecto aberto de educação médica. Os campos da medicina preventiva e da saúde pública partilham os objectivos de prevenir doenças específicas, promover a saúde e aplicar os conceitos e as técnicas da epidemiologia para alcançar esses objectivos. Dando corpo ao dever médico estabelecido por Bacon de prolongamento da vida, a medicina preventiva procura prolongar a vida das pessoas, ajudando-as a melhorar a sua própria saúde. Por sua vez, a saúde pública procura promover a saúde nas populações através de esforços comunitários organizados. Embora possam ser tratadas separadamente, convém destacar a continuidade entre a prática da medicina preventiva pelos médicos e outros profissionais da saúde, as tentativas das pessoas e das famílias para promover a sua própria saúde e dos seus vizinhos e os esforços dos governos e agências voluntárias para alcançar os mesmos objectivos de saúde. A educação médica ocidental tem destacado mais o diagnóstico e o tratamento médico das doenças do que a promoção da saúde, e, mesmo quando se foca a medicina preventiva, esta tende a ser vista como cuidado de saúde prestado por médicos com a ajuda de outros profissionais da saúde, como se as pessoas, os seus potenciais «doentes», não tivessem o direito e o dever de cuidar de si próprios e só recorrer aos cuidados médicos em situações que não possam controlar. Esta nova perspectiva da medicina preventiva abre-a a todas as pessoas e a educação médica deve aceitar esta abertura, abdicando do monopólio corporativista dos cuidados de saúde, porque a saúde é um bem público e cada um deve assumir a responsabilidade pela sua própria saúde. (Leia este post do Manuel Rocha.) J Francisco Saraiva de Sousa
terça-feira, 22 de abril de 2008
Prós e Contras: PSD: Quem sucede a Menezes?
«Os leitores de Kant puderam aprender (que o nosso planeta é uma esfera e que, como permanecemos na superfície dessa esfera e nela nos movemos, não temos outro lugar para ir e, portanto, estamos destinados a viver para sempre na vizinhança e companhia de outros.) O mundo, contudo, mal prestou atenção. Parece que, em vez de escutar atentamente os seus filósofos, já sem falar em seguir as suas advertências, prefere homenageá-los com placas. Os filósofos podem ter sido os principais heróis do drama lírico do Iluminismo, mas a tragédia épica pós-iluminista quase apagou as suas falas». (Zygmunt Bauman) Hoje (21 de Abril de 2008) Fátima Campos dedicou o seu programa "Prós e Contras" à crise que se vive no PSD, supostamente deflagrada pela demissão de L. F. Menezes, mas que acompanha o PSD desde a sua fundação. No palco estavam, de um lado, Ângelo Correia e Zita Seabra, que não representavam nenhuma candidatura, e, do outro, Pedro Passos Coelho e Patinha Antão, dois candidatos. Na plateia participaram dois politólogos, independentemente do que isto significa: Joaquim Aguiar e André Freire. Os outros dois candidatos, Aguiar Branco e Manuela Ferreira Leite, declinaram o convite para participar. Destes convidados tenho uma clara simpatia por Ângelo Correia que, logo no início, disse aquilo que penso da situação nacional, embora depois tenha sido desviado do seu raciocínio: Em Portugal, "existimos para ter lugares, mas não para dizer o que se pretende fazer nesses lugares". A crise profunda portuguesa reside na ausência de pensamento e, portanto, de ideias e de projectos. Isto significa que a democracia portuguesa está profundamente degradada e corrompida, colocando em questão a própria liberdade assumida como responsabilidade. Em lugar dessa liberdade, está o medo que, nesta hora obscura, é o medo de perder o "lugar", isto é, a "sobrevivência" para a maioria dos portugueses e a "riqueza fácil" para a minoria. Mas Ângelo Correia foi mais longe quando, a propósito de uma reportagem sobre a vida privada de Menezes, que, segundo Zita Seabra, estaria na origem da sua demissão, responsabiliza os profissionais da comunicação social pela degradação da qualidade da política e da democracia, ao mesmo tempo que retomou a sua velha tese de que Cavaco Silva foi o "eucalipto" que secou o PSD e desacreditou a política. Concordo, em termos gerais, com esta visão exposta por Ângelo Correia, mas acrescento a sua consequência política: Não podemos mudar de rumo com os mesmos homens que afundaram Portugal. A mudança desejada implica necessariamente uma ruptura: ruptura com as pessoas e elites estabelecidas, responsáveis pela mentira política, e ruptura com as políticas seguidas durante estes últimos 30 anos. Este Estado omnipotente foi criado por estes homens que lideraram e lideram Portugal para garantir os seus interesses de grupo ou mesmo privados. Isto significa que o Estado português é um monstro corrupto ou, pelo menos, manipulado por políticos e por outros agentes corruptos. A crise do PSD está ligada a esta corrosão do Estado: o PSD ajudou-o a criar. Por isso, o PSD não faz parte da solução do problema, porque ele próprio é um dos problemas: a sua ideologia sempre foi o "oportunismo", cujo objectivo é conquistar o poder para satisfazer a gula dos seus "barões". Por isso, recuso-me a entrar no diálogo entre os dois candidatos presentes. Mais "liberalismo" (Pedro Passos Coelho) ou mais "social-democracia" (Patinha Antão) constitui um falso dilema, até porque o PSD não é nem liberal nem social-democrata. As falsas promessas populistas não são o caminho correcto de uma nova política de mudança social qualitativa. A social-democracia é pensamento de Esquerda e, em Portugal, ela tem sido legitimamente protagonizada pelo PS, o qual não se deixa aprisionar pela imagem que dele fazem os lideres do PSD: um mero tampão que visa bloquear a ascensão do PCP à sua esquerda, para que o PSD execute aquilo que o PS supostamente executa mal, devido às suas bases eleitorais! Quem tenha o mínimo de inteligência e de cultura filosófica, sabe que isso não corresponde à realidade e, se fosse honesto, reformava-se. Entrar no discurso das privatizações (da gestão dos hospitais, da TV pública, da Caixa Geral de Depósitos, etc.) é pura irresponsabilidade que, segundo sabe o nosso bom senso, conduz à corrupção e ao seu agravamento: ao enriquecimento dos "mesmos" e à miséria do país, portanto, à manutenção do Estado que pretendem reformar. Ao contrário do que disse Joaquim Aguiar, dizer a verdade não mata e a "morte feliz" que disse ser preferível constitui a maior barbaridade que um homem pode dizer, porque significa promover a mentira sistemática, condenando os outros à sua menoridade, precisamente a mentira que nos tem governado, sobretudo na sua "versão laranja". Porém, merece algum crédito quando defendeu a necessidade de "refundar os partidos e a democracia". Pelo menos, encaro esta necessidade de refundação da democracia portuguesa como o tema que deveria ocupar a agenda das muito próximas comemorações do 25 de Abril de 1974. Como frisou Ângelo Correia, esta refundação exige muito trabalho de pensamento crítico e criativo, aquele que tem estado ausente da cena ou esfera pública, dado esta estar refeudalizada pelas novas classes dirigentes e os seus lacaios da comunicação social, e, sobretudo, mudança radical de pessoas e de lideres políticos. Faltou apenas questionar que tipo de capitalismo desejamos, embora André Freire tenha mostrado que o neoliberalismo não produziu aumento significativo da produtividade, mas maiores desigualdades entre os muito ricos e os muito pobres, lembrando que algumas reformas tidas como necessárias estavam a ser executadas pelo actual governo socialista. (Sobre a candidatura da "Dama de Ferro à portuguesa" leia aqui este post.) J Francisco Saraiva de Sousa
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segunda-feira, 21 de abril de 2008
Não-Conformidade de Género, Homofobia e Ansiedade
Neste post, pretendo apresentar um estudo realizado por Sandfort, Melendez & Diaz (2007), de modo a explicitar melhor o conceito de homofobia à luz da experiência portuguesa. A amostra deste estudo era constituída por homens gay e bissexuais latinos radicados nos USA e recrutados em três grandes cidades americanas: New York (309), Miami (302) e Los Angeles (301). Os participantes fazem parte de minorias étnicas e, por isso, são alvo de uma dupla-discriminação: sexual, por não serem homens heterossexuais, e étnica, por serem latinos.
Quanto à não-conformidade de género, isto é, à expressão de características que são social e culturalmente associadas com os membros do sexo oposto (Bailey & Zucker, 1995), os homens gay e bissexuais latinos que não exibem conformidade de género, adoptando traços do sexo oposto, relataram mais abuso sexual infantil, disseram ter sido verbal e fisicamente abusados e violados por familiares e/ou amantes com muita frequência e relataram maior número de experiências em que foram alvo da homofobia. Deste grupo aqueles que se consideram efeminados mostraram elevados níveis de ansiedade mental e baixa auto-estima (Harry, 1983). Quanto maior o grau de conformidade de género exibida pelos homens gay e bissexuais, maior parece ser a homofobia interiorizada dirigida contra os mais efeminados. Por isso, estes últimos estão sujeitos a vir a sofrer maior número de problemas de saúde, bem como os efeitos nefastos da solidão, e muitos deles podem tentar o suicídio (Savin-Williams & Ream, 2003).
A homofobia medeia a ligação entre a não-conformidade de género e a ansiedade mental. Ela resulta não só das interacções estabelecidas com homens e mulheres heterossexuais, mas também com membros da comunidade gay que, de certo modo, interiorizaram a homofobia. A idealização da masculinidade, por vezes muito caricatural, e a rejeição gay da feminilidade, muitas vezes chamada "sissyphobia", constituem factores que fomentam o desenvolvimento, no seio da comunidade gay, de atitudes e de reacções negativas em relação aos homens gay efeminados, bem como a sua rejeição como potenciais parceiros sexuais (Altman, 1982; Gough, 1989; Levine, 1992, 1998; Bergling, 2001).
Todos estes problemas confrontados pelos homens gay e bissexuais agravam-se ainda mais quando eles são latinos, porque as culturas latinas são caracterizadas por divisões dos papéis de género muito rígidas, acompanhadas pela ênfase das relações familiares e dos cuidados com as crianças e pela ênfase dada ao respeito e à hierarquia nas relações sociais (Raffaelli & Ontai, 2004). A maioria dos homens homossexuais na sociedade portuguesa, mesmo quando eles se aceitam como tais, transporta em si um conflito existencial permanente: a homofobia interiorizada não tem fim e ressurge, sob diversas formas, ao longo de todo o ciclo vital. A homofobia interiorizada complica a percepção que o homossexual tem de si mesmo e dos outros e colora todas as suas relações interpessoais, bem como o seu projecto de vida e a sua visão do mundo. Constitui provavelmente a diferença subjectiva mais importante entre homossexuais e heterossexuais. A palavra «homofobia» significa medo ou rejeição da homossexualidade e os próprios homossexuais definem-na nesses termos: «Medo, ódio ou repulsa da homossexualidade ou de pessoas homossexuais», que se manifesta em opiniões, actos violentos ou mesmo em negar direitos a pessoas que vivem juntas apenas por serem do mesmo sexo.» Este medo pode parecer instintivo, como o medo do fogo ou das cobras, mas não o é: constitui antes um fenómeno cultural que, longe de ser universal, reveste diferentes formas e significações segundo o contexto. Nas sociedades pré-modernas, as pessoas não eram classificadas segundo os seus comportamentos sexuais: não havia, pois, rejeição da homossexualidade como tal. Nos nossos dias, em determinados países, a homofobia aplica-se apenas aos homens e não às lésbicas, ou apenas aos homens que são penetrados e não aos que penetram, ou então apenas aos homens que são educados como mulheres. Isto significa que não há uma definição única de homofobia: a sua significação muda segundo a época e o lugar. Assim, recentemente surgiram três palavras associadas: bifobia, lesbofobia e transfobia. Contudo, a homofobia designa não só o medo ou a rejeição da homossexualidade, mas também o medo ou a recusa da confusão dos géneros. Os homossexuais tendem a usar a palavra transfobia para designar a «aversão a pessoas que não se enquadram nos papéis sociais pré-concebidos de género ou discriminação desfavorável a estas mesmas pessoas». Com efeito, nas sociedades da América Latina, o homem que penetra outro homem não é considerado como homossexual, mas o homem que é penetrado por outro homem é considerado como homossexual, dado que se comporta «como uma mulher». Do mesmo modo, não é tanto o lesbianismo que é reprovado, mas o facto de que uma mulher possa comportar-se «como um homem». Até mesmo na pornografia gay das últimas três décadas, a homossexualidade deve respeitar os géneros para ser admitida: os protagonistas são sempre homens que exibem a sua mais robusta virilidade e não homens efeminados, que aparecem frequentemente como personagens ridículas e risíveis nas comédias para o grande público. Nos filmes pornográficos heterossexuais, as relações sexuais entre mulheres são perfeitamente toleradas desde que elas sejam femininas: as protagonistas são de uma feminilidade exagerada e não lésbicas de aparência masculina. Daqui resulta que o medo da homossexualidade recobre um outro medo — o da confusão dos géneros, que, ao contrário do primeiro, é mais arcaico e universal. Este medo de que um homem possa cessar de ser homem e uma mulher possa cessar de ser mulher tem provavelmente raízes muito profundas na cultura humana, tanto individual como colectiva. Por isso, é necessário fazer a distinção entre a rejeição da homossexualidade e o medo da confusão dos géneros, porquanto muitos preconceitos sexuais derivam mais do último que do primeiro elemento. De facto, quando acabam de conhecer um homossexual, os heterossexuais dizem frequentemente: «É curioso, eu pensava que eram todos efeminados, mas este tem um aspecto totalmente masculino», ou, quando se referem a uma lésbica: «Mas ela é muito bonita, como uma verdadeira mulher!» Tais comentários levam-nos a reafirmar que a homossexualidade não tem nada a ver com o sexo biológico e não o afecta de nenhuma maneira. Sexo e género não são bem a mesma coisa: o sexo refere-se a determinadas características biológicas: nasce-se macho ou fêmea, com os atributos físicos correspondentes, enquanto o género compreende todo um conjunto de atitudes, ideias, sentimentos e comportamentos que se aprendem desde a infância e que constituem a identidade e o papel masculino ou feminino. Um homem pode ser masculino ou não, mas é sempre um homem, e uma mulher, mesmo quando é masculina, continua a ser uma mulher. Assim, um homem que prefira ser penetrado por outro homem pode ser considerado — e considerar-se a si mesmo — como "menos masculino", sem no entanto deixar de ser um homem. Do mesmo modo, uma mulher que ame mulheres pode ser percebida como "masculina", sem por isso deixar de ser mulher. Este facto é particularmente importante para os homossexuais que manifestam frequentemente uma auto-estima baixa precisamente porque se consideram menos homens ou menos mulheres. Todas estas ideias e todos estes preconceitos constituem o que actualmente se chama homofobia, a qual não está limitada aos heterossexuais. Com efeito, os próprios homossexuais são expostos a estas ideias desde a sua mais terna infância, antes mesmo de ter consciência da sua orientação sexual. Toda a cultura é percorrida pela homofobia, desde os filmes e os livros até às anedotas, passando pelos anúncios publicitários. Qualquer pessoa exposta desde sempre à homofobia acaba por a interiorizar, apropriando-se dela como se fosse sua, de modo que a homofobia se torna «natural»: um valor implícito e não questionado, gerando reacções imediatas, automáticas e aparentemente instintivas. A homofobia cumpre diversas funções importantes para os heterossexuais: legitima a sua própria orientação sexual, fá-los sentir que os seus valores morais e os seus costumes sexuais são naturais e mesmo superiores e permite-lhes sentir seguros e orgulhosos da sua masculinidade ou feminilidade. Independentemente de serem felizes ou não nas suas relações amorosas ou de experimentarem ou não satisfação na sua vida sexual, os heterossexuais têm, pelo menos, a satisfação de se sentirem «normais». Em suma, a homofobia tem, portanto, como função primordial «normalizar» a heterossexualidade e dar-lhe um verniz de superioridade moral que não teria de nenhuma outra forma. Além disso, a homofobia permite ao heterossexual negar em si próprio todo o desejo homoerótico, apesar de todos poderem ter tendências nesse sentido. Como sucede com todos os desejos interditos pela sociedade, este é igualmente projectado para fora e depositado na chamada «minoria homossexual». A projecção é um mecanismo de defesa inconsciente pelo qual nós atribuímos às outras pessoas os traços, as emoções ou os pensamentos que não podemos aceitar em nós mesmos porque são incompatíveis com os nossos valores morais ou com a nossa auto-imagem. Por conseguinte, em vez de os reconhecer em nós, projectamo-los para fora, neste caso investimos os outros das nossas tendências ou desejos homossexuais que não podemos ou queremos ver em nós próprios. Assim, a projecção homofóbica faz com que os homossexuais sejam sempre os outros e, deste modo, salva e liberta o heterossexual da homossexualidade. Este mecanismo explica também o fenómeno colectivo do bode expiatório, pelo qual a sociedade atribui determinados traços que não aceita em si mesma a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. É assim que funciona a homofobia ao nível social: os homossexuais, sobretudo quando são muito visíveis, servem de bodes expiatórios à sociedade heterosexista maioritária. Isto também explica que a libertação gay seja sistematicamente acompanhada por uma reacção em sentido contrário. Um paradoxo e um dilema deste movimento é precisamente que, à medida que os homossexuais se tornam mais visíveis, eles se tornam também um alvo cada vez mais reparável para a projecção homofóbica. Isto explica, em parte, que, nos Estados Unidos, a libertação gay seja acompanhada por uma homofobia cada vez mais explícita, organizada e militante, bem patente em diversos sites ou páginas, muitos dos quais ligados a grupos religiosos. (Recomendo a leitura deste excelente post de um amigo do Porto que escreve a partir de uma zona muito bela de Moçambique: Pemba.) J Francisco Saraiva de Sousa
Quanto à não-conformidade de género, isto é, à expressão de características que são social e culturalmente associadas com os membros do sexo oposto (Bailey & Zucker, 1995), os homens gay e bissexuais latinos que não exibem conformidade de género, adoptando traços do sexo oposto, relataram mais abuso sexual infantil, disseram ter sido verbal e fisicamente abusados e violados por familiares e/ou amantes com muita frequência e relataram maior número de experiências em que foram alvo da homofobia. Deste grupo aqueles que se consideram efeminados mostraram elevados níveis de ansiedade mental e baixa auto-estima (Harry, 1983). Quanto maior o grau de conformidade de género exibida pelos homens gay e bissexuais, maior parece ser a homofobia interiorizada dirigida contra os mais efeminados. Por isso, estes últimos estão sujeitos a vir a sofrer maior número de problemas de saúde, bem como os efeitos nefastos da solidão, e muitos deles podem tentar o suicídio (Savin-Williams & Ream, 2003).
A homofobia medeia a ligação entre a não-conformidade de género e a ansiedade mental. Ela resulta não só das interacções estabelecidas com homens e mulheres heterossexuais, mas também com membros da comunidade gay que, de certo modo, interiorizaram a homofobia. A idealização da masculinidade, por vezes muito caricatural, e a rejeição gay da feminilidade, muitas vezes chamada "sissyphobia", constituem factores que fomentam o desenvolvimento, no seio da comunidade gay, de atitudes e de reacções negativas em relação aos homens gay efeminados, bem como a sua rejeição como potenciais parceiros sexuais (Altman, 1982; Gough, 1989; Levine, 1992, 1998; Bergling, 2001).
Todos estes problemas confrontados pelos homens gay e bissexuais agravam-se ainda mais quando eles são latinos, porque as culturas latinas são caracterizadas por divisões dos papéis de género muito rígidas, acompanhadas pela ênfase das relações familiares e dos cuidados com as crianças e pela ênfase dada ao respeito e à hierarquia nas relações sociais (Raffaelli & Ontai, 2004). A maioria dos homens homossexuais na sociedade portuguesa, mesmo quando eles se aceitam como tais, transporta em si um conflito existencial permanente: a homofobia interiorizada não tem fim e ressurge, sob diversas formas, ao longo de todo o ciclo vital. A homofobia interiorizada complica a percepção que o homossexual tem de si mesmo e dos outros e colora todas as suas relações interpessoais, bem como o seu projecto de vida e a sua visão do mundo. Constitui provavelmente a diferença subjectiva mais importante entre homossexuais e heterossexuais. A palavra «homofobia» significa medo ou rejeição da homossexualidade e os próprios homossexuais definem-na nesses termos: «Medo, ódio ou repulsa da homossexualidade ou de pessoas homossexuais», que se manifesta em opiniões, actos violentos ou mesmo em negar direitos a pessoas que vivem juntas apenas por serem do mesmo sexo.» Este medo pode parecer instintivo, como o medo do fogo ou das cobras, mas não o é: constitui antes um fenómeno cultural que, longe de ser universal, reveste diferentes formas e significações segundo o contexto. Nas sociedades pré-modernas, as pessoas não eram classificadas segundo os seus comportamentos sexuais: não havia, pois, rejeição da homossexualidade como tal. Nos nossos dias, em determinados países, a homofobia aplica-se apenas aos homens e não às lésbicas, ou apenas aos homens que são penetrados e não aos que penetram, ou então apenas aos homens que são educados como mulheres. Isto significa que não há uma definição única de homofobia: a sua significação muda segundo a época e o lugar. Assim, recentemente surgiram três palavras associadas: bifobia, lesbofobia e transfobia. Contudo, a homofobia designa não só o medo ou a rejeição da homossexualidade, mas também o medo ou a recusa da confusão dos géneros. Os homossexuais tendem a usar a palavra transfobia para designar a «aversão a pessoas que não se enquadram nos papéis sociais pré-concebidos de género ou discriminação desfavorável a estas mesmas pessoas». Com efeito, nas sociedades da América Latina, o homem que penetra outro homem não é considerado como homossexual, mas o homem que é penetrado por outro homem é considerado como homossexual, dado que se comporta «como uma mulher». Do mesmo modo, não é tanto o lesbianismo que é reprovado, mas o facto de que uma mulher possa comportar-se «como um homem». Até mesmo na pornografia gay das últimas três décadas, a homossexualidade deve respeitar os géneros para ser admitida: os protagonistas são sempre homens que exibem a sua mais robusta virilidade e não homens efeminados, que aparecem frequentemente como personagens ridículas e risíveis nas comédias para o grande público. Nos filmes pornográficos heterossexuais, as relações sexuais entre mulheres são perfeitamente toleradas desde que elas sejam femininas: as protagonistas são de uma feminilidade exagerada e não lésbicas de aparência masculina. Daqui resulta que o medo da homossexualidade recobre um outro medo — o da confusão dos géneros, que, ao contrário do primeiro, é mais arcaico e universal. Este medo de que um homem possa cessar de ser homem e uma mulher possa cessar de ser mulher tem provavelmente raízes muito profundas na cultura humana, tanto individual como colectiva. Por isso, é necessário fazer a distinção entre a rejeição da homossexualidade e o medo da confusão dos géneros, porquanto muitos preconceitos sexuais derivam mais do último que do primeiro elemento. De facto, quando acabam de conhecer um homossexual, os heterossexuais dizem frequentemente: «É curioso, eu pensava que eram todos efeminados, mas este tem um aspecto totalmente masculino», ou, quando se referem a uma lésbica: «Mas ela é muito bonita, como uma verdadeira mulher!» Tais comentários levam-nos a reafirmar que a homossexualidade não tem nada a ver com o sexo biológico e não o afecta de nenhuma maneira. Sexo e género não são bem a mesma coisa: o sexo refere-se a determinadas características biológicas: nasce-se macho ou fêmea, com os atributos físicos correspondentes, enquanto o género compreende todo um conjunto de atitudes, ideias, sentimentos e comportamentos que se aprendem desde a infância e que constituem a identidade e o papel masculino ou feminino. Um homem pode ser masculino ou não, mas é sempre um homem, e uma mulher, mesmo quando é masculina, continua a ser uma mulher. Assim, um homem que prefira ser penetrado por outro homem pode ser considerado — e considerar-se a si mesmo — como "menos masculino", sem no entanto deixar de ser um homem. Do mesmo modo, uma mulher que ame mulheres pode ser percebida como "masculina", sem por isso deixar de ser mulher. Este facto é particularmente importante para os homossexuais que manifestam frequentemente uma auto-estima baixa precisamente porque se consideram menos homens ou menos mulheres. Todas estas ideias e todos estes preconceitos constituem o que actualmente se chama homofobia, a qual não está limitada aos heterossexuais. Com efeito, os próprios homossexuais são expostos a estas ideias desde a sua mais terna infância, antes mesmo de ter consciência da sua orientação sexual. Toda a cultura é percorrida pela homofobia, desde os filmes e os livros até às anedotas, passando pelos anúncios publicitários. Qualquer pessoa exposta desde sempre à homofobia acaba por a interiorizar, apropriando-se dela como se fosse sua, de modo que a homofobia se torna «natural»: um valor implícito e não questionado, gerando reacções imediatas, automáticas e aparentemente instintivas. A homofobia cumpre diversas funções importantes para os heterossexuais: legitima a sua própria orientação sexual, fá-los sentir que os seus valores morais e os seus costumes sexuais são naturais e mesmo superiores e permite-lhes sentir seguros e orgulhosos da sua masculinidade ou feminilidade. Independentemente de serem felizes ou não nas suas relações amorosas ou de experimentarem ou não satisfação na sua vida sexual, os heterossexuais têm, pelo menos, a satisfação de se sentirem «normais». Em suma, a homofobia tem, portanto, como função primordial «normalizar» a heterossexualidade e dar-lhe um verniz de superioridade moral que não teria de nenhuma outra forma. Além disso, a homofobia permite ao heterossexual negar em si próprio todo o desejo homoerótico, apesar de todos poderem ter tendências nesse sentido. Como sucede com todos os desejos interditos pela sociedade, este é igualmente projectado para fora e depositado na chamada «minoria homossexual». A projecção é um mecanismo de defesa inconsciente pelo qual nós atribuímos às outras pessoas os traços, as emoções ou os pensamentos que não podemos aceitar em nós mesmos porque são incompatíveis com os nossos valores morais ou com a nossa auto-imagem. Por conseguinte, em vez de os reconhecer em nós, projectamo-los para fora, neste caso investimos os outros das nossas tendências ou desejos homossexuais que não podemos ou queremos ver em nós próprios. Assim, a projecção homofóbica faz com que os homossexuais sejam sempre os outros e, deste modo, salva e liberta o heterossexual da homossexualidade. Este mecanismo explica também o fenómeno colectivo do bode expiatório, pelo qual a sociedade atribui determinados traços que não aceita em si mesma a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. É assim que funciona a homofobia ao nível social: os homossexuais, sobretudo quando são muito visíveis, servem de bodes expiatórios à sociedade heterosexista maioritária. Isto também explica que a libertação gay seja sistematicamente acompanhada por uma reacção em sentido contrário. Um paradoxo e um dilema deste movimento é precisamente que, à medida que os homossexuais se tornam mais visíveis, eles se tornam também um alvo cada vez mais reparável para a projecção homofóbica. Isto explica, em parte, que, nos Estados Unidos, a libertação gay seja acompanhada por uma homofobia cada vez mais explícita, organizada e militante, bem patente em diversos sites ou páginas, muitos dos quais ligados a grupos religiosos. (Recomendo a leitura deste excelente post de um amigo do Porto que escreve a partir de uma zona muito bela de Moçambique: Pemba.) J Francisco Saraiva de Sousa
sábado, 19 de abril de 2008
A Lesbofobia de Egas Moniz
«Os hermafroditas psico-sexuais são igualmente doentes, embora não tão adiantados como os uranistas e as lésbicas. De tempos em tempos igualam-se completamente pelas tendências e pelos desejos.» Após ter feito a «resenha de anatomia patológica da pederastia», onde incluiu «o aumento das nádegas», «a deformação infundibuliforme do ânus», «o relaxamento do esfíncter», «a incontinência fecal», «ulcerações profundas e até fístulas anais» e «doenças venéreas», Egas Moniz dirige a sua atenção para as lésbicas, para ver «se estas invertidas apresentam sinais dos seus hábitos homossexuais». Da prática repetida do «safismo», isto é, da «masturbação bucal com sucção dos clítoris», resulta «a deformação vulvar» caracterizada pelo «alongamento do clítoris, pelo aspecto rugoso e pela flacidez do prepúcio que, em parte, aparece destacado da glande», a qual, «parcialmente descoberta, é volumosa e turgescente». Além deste alongamento do clítoris, «a prática repetida da masturbação sáfica» pode desencadear «mordeduras do clítoris» e o uso da boca provoca «a inflamação aguda ou crónica da abóbada palatina, amígdalas e da úvula, o mau cheiro da bôca, a dor de língua, a palidez dos lábios e da face, o emmagrecimento geral e as perturbações nutritivas». Esta busca frenética de sinais físicos e corporais que denunciem as práticas homossexuais constitui efectivamente a medicalização do preconceito e da discriminação sexuais: o "olhar clínico" (Michel Foucault) é colocado ao serviço do heterosexismo, de modo a exercer o seu poder disciplinar. O tratamento aconselhado das "inversões sexuais" mais não é do que uma espécie de "punição", a medicalização da punição. Adams, Wright & Lohr (1996) realizaram um estudo com dois grupos de participantes: homens homofóbicos (35) e homens não-homofóbicos (29), avaliados e classificados previamente pelo Index of Homophobia (Hudson & Ricketts, 1980). Depois os participantes foram expostos a estímulos eróticos sexualmente explícitos: videotapes de cenas homossexuais, heterossexuais e lésbicas, e a excitação sexual peniana foi monitorizada. Os dois grupos de homens reagiam com aumento da excitação sexual peniana aos filmes heterossexuais e lésbicos. Apenas o grupo homofóbico reagiu eroticamente aos filmes homossexuais. Estes resultados sugerem que a homofobia está associada à excitação homossexual. Isto significa que os homens homofóbicos são provavelmente "homossexuais dissimulados" ou em processo de negação da sua própria homossexualidade, o que pode explicar a sua agressividade dirigida mais contra os homens gay do que contra as lésbicas, até porque os homens toleram a homossexualidade feminina e se excitam com ela, como mostram os filmes pornográficos. Como seria de esperar, Egas Moniz era mais homofóbico do que lesbofóbico. Usou os termos "tribades" ou “sáficas” para designar as mulheres homossexuais, cujos traços descritos acentuam as suas características masculinas: «As tribades têm propensões para os jogos e divertimentos dos rapazes, estimam vestir-se com fatos de homem, desprezam os brinquedos usuais das meninas, tais como bonecas, etc.». Estas propensões comportamentais manifestam-se muito cedo, logo na infância, e, na idade adulta, estas lésbicas adquirem "hábitos masculinos", atingindo o "estado de viraginidade" (concentração máxima de traços masculinos): "Fumam", evidenciam "vocações para os trabalhos masculinos", sentem "repugnância pelos trabalhos de costura", e anseiam por "uma troca de órgãos sexuais": «A tribade passa uma vida íntima de torturas por não ter nascido homem: ela e o uranista completar-se-iam operando uma troca de órgãos sexuais. Dentro de uma forma feminina existe uma alma de homem. Sente-se vigorosa para a luta. Atraem-na mais as sciências do que as artes: estima mais o seu cavalo e a espingarda, com que se entrega aos mais violentos géneros de sport, do que o piano e a máquina de costura. E querendo encontrar dentro do seu sexo paradigmas para imitar, ou admira as másculas mulheres da história ou as que, na sua época, se salientaram pela inteligência ou actividade». Tal como já tinha feito com os homens homossexuais, reduzidos ao tipo "efeminado", Egas Moniz descreve de modo redutor apenas um tipo de lésbica, a "butch", com inclinações "transexuais", embora pareça ter consciência da diferenciação interna existente. Este reducionismo revela-se estigmatizante e, o que é mais grave, facilita a estigmatização sexual dos indivíduos homossexuais. Segundo Egas Moniz, o uso do clítoris nas práticas sáficas torna-o mais longo ("alonga"), o que possibilita a prática "sáfica" de fricção dos clítoris (ou, como se diz hoje, "bate pratos"). A lésbica tende a ser reduzida, sobretudo aquela que é casada com um homem, a "mulier lambens", que sente prazer desempenhando um destes papéis sexuais: "si ipsa lambit genitalia alterius", "lambere genitalia propria", ou felação mútua e simultânea. Egas Moniz via, portanto, a lésbica que suga o clítoris alheio como "activa" e a que o dá para ser sugado ou "mordido" pela outra como "passiva", e com razão, porque, no caso dos uranistas, o que suga é geralmente "passivo": «Na verdade, se há casos, como um citado por Moll, em que uma tribade X só sente prazer si ipsa lambit genitalia alterius, na maior parte dos casos as tribades também se sentem excitadas quando fazem lambere genitalia própria, dando-se por vezes à prática mútua e simultânea.» Aliás, Egas Moniz refere o caso de duas tribades em que uma delas curiosamente «gostava de representar o papel passivo de mulher», embora tivesse «mais tendências masculinas do que a que desempenhava o papel de activo». Egas Moniz apercebe-se da diferenciação interna das lésbicas em dois grupos, em função dos papéis sexuais preferidos: as que apresentam tendências masculinas, as lésbicas de tipo butch, tendem a preferir desempenhar o papel activo, enquanto as “mais femininas” do tipo femme são geralmente mais passivas. A tematização desta diferença ter-lhe-ia possibilitado compreender melhor as associações que procurou estabelecer entre o safismo e a duração das "junções sexuais sáficas", o ciúme, a separação, o "sadismo" (butch), o "masochismo" (femme), a pedofilia e a "prostituição sáfica".
Na exposição de Egas Moniz, transparece um conceito implícito que podemos explicitar: a "prática repetida de cunnilingus" ocorre entre casais heterossexuais e homossexuais: «Entre as tribades há algumas casadas, como aliás sucede, embora mais raramente, entre os uranistas. Algumas dessas são hermafroditas psíquicas, outras são lésbicas que apenas consideram o casamento como uma necessidade social, nunca a manifestação duma necessidade genésica. Para a tribade o casamento é uma verdadeira operação comercial e uma comodidade para a melhor consecução dos seus fins. A mulher depois de casada pode passear mais, ter mais extensas relações e, em suma, livrar-se das críticas dos soalheiros femininos». Para estas tribades, «quer sejam hermafroditas psíquicas, quer absolutamente homossexuais, a cópula não basta para a satisfação das suas necessidades genésicas. É devido a isso que essas mulheres pedem aos homens a que se juntam a prática do cunnilingus». Para alcançar o prazer pleno, a mulher deseja que o marido lhe faça cunnilingus. Ora, como já vimos, esta prática sexual "alonga" o clítoris e, portanto, masculiniza a sexualidade e o prazer femininos. Curiosamente, Egas Moniz diz que as lésbicas têm "repugnância pela maternidade". (Hoje sabemos que isso só é verdade em relação mais às lésbicas do tipo butch do que do tipo femme). Esta hipótese de que uma prática sexual produza como efeito a diminuição do impulso maternal pode ser testada empiricamente. Portugal e a Europa "queixam-se" da baixa natalidade, explicando-a muitas vezes por razões económicas (desemprego, salários baixos) ou pela entrada das mulheres no mercado de trabalho. Porém, como suspeitava implicitamente Egas Moniz, uma mera prática sexual também pode estar na origem do fenómeno. J Francisco Saraiva de Sousa
Na exposição de Egas Moniz, transparece um conceito implícito que podemos explicitar: a "prática repetida de cunnilingus" ocorre entre casais heterossexuais e homossexuais: «Entre as tribades há algumas casadas, como aliás sucede, embora mais raramente, entre os uranistas. Algumas dessas são hermafroditas psíquicas, outras são lésbicas que apenas consideram o casamento como uma necessidade social, nunca a manifestação duma necessidade genésica. Para a tribade o casamento é uma verdadeira operação comercial e uma comodidade para a melhor consecução dos seus fins. A mulher depois de casada pode passear mais, ter mais extensas relações e, em suma, livrar-se das críticas dos soalheiros femininos». Para estas tribades, «quer sejam hermafroditas psíquicas, quer absolutamente homossexuais, a cópula não basta para a satisfação das suas necessidades genésicas. É devido a isso que essas mulheres pedem aos homens a que se juntam a prática do cunnilingus». Para alcançar o prazer pleno, a mulher deseja que o marido lhe faça cunnilingus. Ora, como já vimos, esta prática sexual "alonga" o clítoris e, portanto, masculiniza a sexualidade e o prazer femininos. Curiosamente, Egas Moniz diz que as lésbicas têm "repugnância pela maternidade". (Hoje sabemos que isso só é verdade em relação mais às lésbicas do tipo butch do que do tipo femme). Esta hipótese de que uma prática sexual produza como efeito a diminuição do impulso maternal pode ser testada empiricamente. Portugal e a Europa "queixam-se" da baixa natalidade, explicando-a muitas vezes por razões económicas (desemprego, salários baixos) ou pela entrada das mulheres no mercado de trabalho. Porém, como suspeitava implicitamente Egas Moniz, uma mera prática sexual também pode estar na origem do fenómeno. J Francisco Saraiva de Sousa
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sexta-feira, 18 de abril de 2008
A Homofobia Mórbida de Egas Moniz
«Nos bailes públicos é que o uranista mais se denuncia. Ama a dança extraordinariamente e, se a ocasião é propícia para o disfarce, como pela época do carnaval, aparece vestido de mulher. Espartilha-se, cria formas provocadoras à custa de balões de borracha, pinta-se e adorna-se com brincos e sapatos decotadíssimos.
«Tem requebros de prostituta, denguices de mulher venal, com rodopios de saias e exposição de pernas.
«Segreda convites, mostra-se lânguido, submisso, capaz de ter um grande amor. Uns andam mascarados e desejam ir ao engano, como mulheres, por braço de algum ébrio dissoluto. Outros, de cara descoberta, pretendem insinuar-se directamente, na nudez da sua situação deprimente». (Egas Moniz) Egas Moniz (1874-1955) recebeu o Prémio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1949, partilhado por Walter Rudolf Hess (1881-1973), por ter desenvolvido a angiografia cerebral e a sua técnica de lobotomia frontal ou de leucotomia pré-frontal como uma terapêutica para determinadas perturbações emocionais. Os mass media e muitos neurocientistas não perdoaram a Egas Moniz o facto de conceber a destruição de uma grande porção do encéfalo como uma forma de tratamento e, por isso, contam que este médico português acabou estranhamente paralisado por um tiro disparado na espinha por um dos seus pacientes lobotomizados. Portanto, foi feita justiça poética contra aquele que, sem suporte teórico substancial, acreditava que podia corrigir o excesso de emoção através deste procedimento cirúrgico. De facto, nesse tempo sombrio, Klüver & Bucy tinham mostrado que lesões no encéfalo podem alterar o comportamento emocional e, na década de 30, John Fulton e Carlyle Jacobsen tinham relatado que lesões do lobo frontal tinham efeitos calmantes em chimpanzés. Confiante no princípio de que, se o sistema límbico controla a emoção, então as pessoas com problemas emocionais podem ser ajudadas, Egas Moniz não se inibiu e desenvolveu o procedimento cirúrgico da psicocirurgia, aplicando-o aos seres humanos. Milhares de cirurgias foram feitas por todo o mundo nos anos 40 e 50, usando diversos procedimentos, embora só Egas Moniz tenha sido e continue a ser acusado pelos franceses que tudo fazem para que lhe seja "retirado" o Prémio Nobel.
Porém, a lobotomia frontal tem ensombrado outra obra de Egas Moniz, aquela que nos interessa referir neste post: "A Vida Sexual: Fisiologia e Patologia", da qual tenho um exemplar da 4ª. edição de 1918, cujo Prólogo "confronta" o neurologista português com a psicanálise de Freud. Esta obra é, a diversos títulos, brilhante, erudita e bastante avançada para o seu tempo, pelo menos em relação à mediocridade nacional, porque, na verdade, Egas Moniz tinha lido e assimilado as grandes lições dos sexólogos pioneiros, tais como Krafft-Ebing, Moll e Freud. Não pretendo analisar a teoria da sexualidade de Egas Moniz exposta nesta obra revolucionária, mas chamar a atenção para o facto dele ter introduzido as homossexualidades masculina e feminina na segunda secção dedicada à Patologia da Vida Sexual.
A partir de um caso exemplar, A.A., Egas Moniz elabora toda uma teoria da homossexualidade masculina como inversão perversa ("psicopatia sexual"), relatando de modo cruel pormenores comportamentais e anatómicos verdadeiramente surpreendentes. É certo que Egas Moniz vislumbrou a problemática das diferenças sexuais, mas foi excessivamente "redutor" e pouco escrupuloso ao generalizar a partir de casos clínicos. Os seus "uranistas" correspondem ao tipo hiperefeminado de homossexuais masculinos, em particular ao "maricas" ou "agitado" da nossa tipologia das homossexualidades masculinas. A única coisa que o "salva" é o facto de ter reconhecido que «as relações sexuaes uranistas são o mais próximo possível das relações heterossexuais entre pervertidos», porque, entre outros traços partilhados, «os beijos uranistas são por vezes acompanhados, como nos heterossexuais, do contactus linguarum», embora os uranistas façam outras "coisas terríveis", tais como «semen alterius ejaculatum in os proprium devorare» ou, mais raramente, «ejaculavit semen in os alterius, vul ut hic semen devoret», «oscula applicare ad anum alterius», e enfim «alter immitit urinam in os proprium», para não falar da «necrofilia», da prostituição masculina, da pederastia ou dos efeitos anatómicos resultantes da prática do coito anal. Estes "uranistas" examinados por Egas Moniz eram "cidadãos urbanos" de "todas as profissões" (alfaiates, cabeleireiros, floristas, actores, cozinheiros e escritores) e membros "cultos" das "classes elevadas" de Lisboa e de outros "grandes centros", "invertidos e efeminados", "impotentes para as mulheres", "mentirosos e insensatos", com "voz efeminada" e "letra esguia e muito bem cuidada", "ciumentos e insaciáveis", "epilados" e "dissolutos", entre tantas outras "maiores minudências" relatadas com pormenor e abundante recurso ao latim, para não chocar a moral e os bons costumes lisboetas, cujas "misérias do amor" "mórbido uranista" incluíam a «immissio membri in os», «a masturbação mútua, a masturbação anal, o coito anal, inter femora e ainda in axillam». Uma observação pertinente de Egas Moniz leva-me a concluir que alguns dos seus pacientes eram "travestis" ou, como se diz hoje nos "meios homossexualizados", "transexuais" (não operados, talvez lobotomizados), que usavam "vestuários femininos" e traziam «os órgãos genitais ligados ao corpo por um aparelho especial de tal modo, que se lhe não reconheciam à primeira vista»: «O uranista é monoândrico ou poliândrico, exactamente como o homem normal é monógamo ou polígamo. Geralmente tem um escolhido uranista, mas alguns há que chegam a preferir as relações com indivíduos normais que gostam de mulheres. A estes deu Ulrichs a designação de dionistas. Geralmente escolhem indivíduos em que as qualidades viris se salientam». Esta atracção por homens heterossexuais é típica dos travestis ou transexuais que se prostituem nas ruas. Se tivesse sido menos preconceituoso, Egas Moniz teria verificado que existem diferenças internas entre os indivíduos que preferem fazer sexo com pessoas do mesmo sexo, até porque reconhece que «o amor homossexual é inteiramente comparável ao heterossexual»: «Em todos os invertidos sexuais que se juntam em ménage masculino os papéis distribuem-se da mesma forma que no casamento real. Um desempenha o papel obediente e subordinado da mulher, outro dirige, manda e governa com a característica virilidade dum heterossexual». Falta saber se uma tal "homofobia interiorizada" não levou Egas Moniz a fazer uma lobotomia frontal a algum destes "pacientes homossexuais" para o tornar mais calmo, porque os uranistas tendiam, segundo diz, a manifestar um tal "furor uterino" ("neurastenia") que esgotava em poucos dias a energia sexual dos seus "amantes". Adams, Wright & Lohr (1996) mostraram que os homens homofóbicos exibiam um aumento significativo da erecção do pénis quando eram expostos a estímulos eróticos homossexuais masculinos, o que parece sugerir que a homofobia está associada com a excitação homossexual. Uma forma de combater o preconceito sexual é começar a operar uma mudança semântica das palavras usadas para estigmatizar os homens homossexuais e chamar "paneleiros" aos homens homofóbicos.
J Francisco Saraiva de Sousa
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quinta-feira, 17 de abril de 2008
Núcleo Supraquiasmático e Dimorfismo Sexual
«Coração negro, oh noite cerrada,
Quem espelha vossos sacros recantos,
Do vosso mal os derradeiros antros?
A nossa dor deixa a máscara gelada -
A nossa dor, o nosso prazer,
E esse riso de pedra da máscara sem fundo,
Que fez ruir as coisas deste mundo
E escapa a quem o queira conhecer.
Mas ele aí está, inimigo de fora,
Rindo das coisas por que nos arriscamos,
Ensombrando as canções que cantamos
E deixando no escuro o que em nós chora». (Georg Trakl) O cérebro homossexual, masculino ou feminino, diferencia-se do cérebro heterossexual, masculino ou feminino, aproximando-se, nalguns aspectos, do cérebro heterossexual feminino no caso da homossexualidade masculina, e do cérebro heterossexual masculino no caso da homossexualidade feminina. Assim, quando adultos, os indivíduos homossexuais e heterossexuais diferem em mais aspectos do que simplesmente a escolha do parceiro sexual. Algumas destas diferenças apoiam a ideia de que os cérebros dos indivíduos homossexuais se desenvolvem de forma sexualmente atípica, enquanto outras destas diferenças podem simplesmente reflectir as circunstâncias de vida muito diferentes enfrentadas pelos indivíduos homossexuais e heterossexuais.
O cérebro humano é, portanto, um órgão sexualmente dimórfico. Diversos estudos mostraram que existem diferenças entre indivíduos homossexuais e heterossexuais no que diz respeito às estruturas química e anatómica do cérebro, as quais estão provavelmente concentradas num local-chave, o hipotálamo, com conexões com o córtex cerebral. Destacaremos neste post duas estruturas neurais sexualmente dimórficas: o núcleo supraquiasmático e a amígdala.
Existe um núcleo hipotalâmico — o núcleo supraquiasmático (SNC) que, como demonstraram Swaab & Hofman (1990, 1995), é maior nas mulheres e nos homens homossexuais do que nos homens heterossexuais. Responsável pela regulação dos ritmos circadianos dia-noite e sazonais e pelos ritmos diários da secreção de corticóides suprarenais, o SNC recebe eferentes da área preóptica medial, da amígdala medial e do núcleo do leito da stria terminalis (BST). Bakker et al. (1993) trataram ratos com o inibidor da aromatase (ATD) e observaram que os animais exibiam uma preferência sexual por fêmeas na fase escura tardia e por machos na fase escura precoce. Este núcleo é dotado de muitos neurónios produtores de vasopressina.
Ainda não é clara a importância desta diferença para efeitos de orientação sexual. Hall & Kimura (1993) mostraram que os homens homossexuais, que integraram uma determinada amostra de estudantes de licenciatura, manifestaram um padrão de acordar-e-deitar mais semelhante ao das mulheres heterossexuais do que ao dos homens heterossexuais. Em média, as mulheres deitam-se e acordam mais cedo do que os homens e os homens homossexuais tendem a fazer o mesmo. Este padrão não foi observado durante a nossa pesquisa de terreno, a qual decorreu principalmente de noite: os homens e as mulheres homossexuais observados tinham uma vida nocturna intensa. (O poema de Georg Trakl ajuda talvez a iluminar este padrão, se for lido à luz da condenação do heterosexismo.)
Hines, Allen & Gorski (1992) mostraram que, na ratazana, a amígdala é sexualmente dimórfica: o núcleo medial, bem como o núcleo do leito da estria terminal. Goldstein et al. (2001) mostraram que, no cérebro humano adulto, a amígdala masculina é significativamente maior do que a amígdala feminina, levando em consideração o tamanho total do cérebro. Estas diferenças estruturais devem-se provavelmente aos níveis de testosterona que ocorrem durante o desenvolvimento do cérebro, porquanto a amígdala contém elevadas concentrações de receptores das hormonas sexuais e está fortemente conectada com o hipotálamo, e estão associadas a diferenças funcionais e responsivas do cérebro (Baird et al., 2004).
Com efeito, a amígdala desempenha um importante papel na memória emocional (Hamann, 2005) e nas respostas sexuais (Leutmezer et al., 1999). A lesão bilateral da amígdala e áreas corticais adjacentes resulta na chamada síndrome de Klüver-Bucy nos macacos, caracterizada por comportamentos sexuais atípicos e indiscriminados. Nas ratazanas, as lesões da amígdala masculina estão associadas aos comportamentos sexuais apetitivo (envolvendo motivação para alcançar uma recompensa sexual) e consumatório (envolvendo a copulação), como demonstrou Everitt (1990). Embora ainda não haja evidência empírica, supõe-se que a amígdala medial apresente também diferenças em função da orientação sexual.
J Francisco Saraiva de Sousa
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