sábado, 15 de março de 2008

Portugal: O Eclipse da Crítica

«Se a filosofia é ainda necessária, então só o pode ser como crítica». (Theodor W. Adorno)
«A função social autêntica da filosofia consiste na crítica do existente». (Max Horkheimer)
«A teoria social é teoria histórica e a história é a esfera da possibilidade na esfera da necessidade. (...) A teoria social interessa-se pelas alternativas que assombram a sociedade estabelecida como tendências e forças subversivas. Os valores ligados às alternativas tornam-se realmente factos quando transformados em realidade pela prática histórica. Os conceitos teóricos terminam com a transformação social». (Herbert Marcuse)
«... Aquilo que é não pode ser verdadeiro». (Ernst Bloch)
«... Nada daquilo que alguma vez aconteceu deve ser considerado como perdido para a história. Certamente só à humanidade redimida pertence plenamente o seu passado». (Walter Benjamin)
O que é a crítica? É difícil dar uma resposta a esta questão, sem tomar uma posição política contra a situação social em que os portugueses estão mergulhados. Crítica e política estão intimamente ligadas, porque a filosofia está empenhada na luta pela mudança social qualitativa. Como dizia Althusser, a filosofia é, em última instância, "luta de classes na teoria". Os conceitos filosóficos revelam que o mundo social não é o que aparenta ser e que poderá vir a ser diferente do que é. O pensamento crítico implica necessariamente um atitude de admiração ou, se preferirem, de espanto diante do mundo, sem a qual não é possível colocar questões e tentar descobrir respostas, seguindo uma metodologia científica.
Herbert Marcuse já nos tinha advertido, na sua obra «Razão e Revolução», que a teoria de Marx é uma crítica: ao contrário das categorias da dialéctica idealista de Hegel que se aplicavam à ordem existente, os conceitos de Marx visam uma nova ordem social e, por isso, são uma acusação da totalidade da sociedade estabelecida. O pensamento crítico não se satisfaz com os «dados» supostamente evidentes da ordem instituída, porque, estando ao serviço da emancipação, o único interesse que o move (Habermas), precisa de negar as evidências da lógica da dominação e transcendê-las, de modo a revelar uma nova ordem por vir.
Os conceitos de Marx são, pois, conceitos negativos: criticam e negam as falsas evidências ideológicas produzidas pela sociedade estabelecida, em nome de um outro princípio de realidade que ainda não é mas que devia ser. Analisa as concepções oficiais, não para as aceitar e fazer o seu jogo, mas para desmistificar a ideologia dominante que opera nelas. Por isso, os seus conceitos podem iluminar uma prática transformadora do mundo, isto é, uma praxis política. A crítica é sempre crítica do que existe (crítica imanente) em nome daquilo que ainda-não existe mas que devia existir (crítica transcendente). Crítica imanente e crítica transcendente completam-se: sem transcendência (utopia positiva) não pode haver verdadeiramente crítica.
O actual sistema de ensino português não fomenta o pensamento crítico e, comparando a educação antes e depois de 25 de Abril de 1974, somos forçados a constatar que as políticas da educação nestes últimos 34 anos arruinaram paulatinamente o ensino, a educação e a formação cultural: o analfabetismo diplomado é actualmente uma realidade esmagadora e terrível. As novas pedagogias administrativas destruíram o conhecimento e a crítica, porque as novas classes dirigentes exercem uma dominação (Weber) nunca antes vista na História de Portugal e não desejam que essa dominação seja nomeada pelo seu verdadeiro nome: uma oligarquia dominada por pessoas pouco inteligentes, extremamente maldosas e visceralmente invejosas e corruptas.
Contudo, esta dominação da corrupção nacional alargada não desculpa a passividade dos «dominados»: o exercício autónomo e independente da crítica não é possível sem esforço, muito esforço, e sem a aquisição prévia de conteúdos de conhecimento. Com efeito, ao contrário do que diz a voz da ideologia oficial difundida pelos mass media, a crítica não é opinião, mas conhecimento emancipador. Por isso, as pedagogias administrativas falharam intencionalmente no seu suposto objectivo educacional: não exigem esforço e conhecimento, apenas falsos resultados estatísticos e burocráticos. Tudo o que transcenda teórica e politicamente os «dados» da realidade estabelecida e o seu universo discursivo (a corrupção) é encarado, pelos mocinhos satisfeitos (Ortega y Gasset) com a sua «vidinha metabolicamente reduzida», como utopia. Mas dizer que a realidade não pode ser mudada e transformada qualitativamente é ser simplesmente burro e é isto o que são os que falam irresponsavelmente contra a utopia ou que recusam a mudança social em nome de um regresso impossível ao passado, em especial à sua infância. No fundo, desejam a própria morte, não a morte que entra no horizonte daqueles que arriscam a vida por um mundo melhor, mas a morte uterina. Em Portugal, as crianças nascem mortas para um mundo moribundo. Numa tal sociedade corrupta, só a violência que visa a libertação pode garantir o futuro.
J Francisco Saraiva de Sousa

28 comentários:

Manuel Rocha disse...

Bem...que seja só na segunda feira !

Mas foi uma optima prenda para o fds dos seus leitores, este seu post.

Gostaria a penas de lhe deixar uma nota. Acho que a sua análise não perde a minima acutilância se a generalizar ao "ocidente" em vez de a restringir apenas a Portugal.

Votos de um excelente fim de semana !

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Sim, aplica-se a todo o Ocidente, infelizmente. O Ocidente está a morrer e o sistema partidário, o Estado gordo, o funcionalismo público, as políticas burocráticas, a União Europeia, enfim a democracia tal como a conhecemos, são os seus coveiros.

Começo a ficar cada vez mais convencido que precisamos de uma ditadura esclarecida. Estamos sem saída. Os corruptos devem ser afastados pela força do poder.

Portugal é uma fatalidade sem solução! a moral não é suficiente para afastar a corrupção do poder, nem as eleições. Tal é a farsa nacional!

E. A. disse...

Bom dia!

...a filosofia é, em última instância, "luta de classes na teoria".

Isto é a expressão do seu ponto de vista. Para mim, a Filosofia é crítica do que está estabelecido, do que é tomado como verdade, mas não é campo de batalha entre dominadores e dominados.
A crítica "transcendente", é condição necessária para a crítica "imanente"; afinal Platão tinha visto tudo. :)

Mas se "dizer que a realidade não pode ser mudada e transformada qualitativamente é ser simplesmente burro", então não diga que as crianças nascem mortas. Parece-me incoerente...

"Ditadura esclarecida": eu própria seria a favor de uma aristocracia, se isso fosse profícuo. Mas, quem suficientemente "esclarecido" para "ditar"?

Bom fds!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A filosofia é crítica! E a crítica deve iluminar a praxis política, a que muda o mundo. Os actuais jovens não são rebeldes: querem vida garantida, sem esforço, e são muito conformados ou conformistas. Com efeito, que trazem de novo? Qual a sua mensagem? Silêncio total! Eclipse mental e cognitivo! São analfabetos funcionais!
Todos somos (mais uns do que outros), como diria Hegel, mortos adiados! Sim, as crianças nascem mortas, porque o mundo comum está morto. Ausência de projecto! Apenas reivindicações (sindicais) metabólicas! Comer, comer e mais comer e muita merda. Sem realismo não há política de mudança esclarecida!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E Platão disse que a filosofia era um "campo de batalha", expressão retomada por Kant e, mais recentemente, por Althusser! :)

E. A. disse...

Althusser poderia ter utilizado a expressão, mas definitivamente não com o mesmo significado. Filosofia n são palavras, mas sentidos.

Então se os jovens são eclipsados mentalmente, e o F. é tão iluminado que até cega de tanto brilho, proponha um plano político, ou um partido, ou uma organização que derrube violentamente o poder e depois possa fundar a tal "ditadura esclarecida", sendo q n há mais solução "realista" do que esta.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Pois, parece não haver outra "solução" e isso implica repensar a crítica que Arendt faz do totalitarismo e que Popper atribui a Platão! Mas não sou político de profissão! A situação da democracia e da "Lei" em Portugal é insuportável! Irracional! Basta ver TV: tudo cretinos da pior espécie! É preciso vigiar os mass media: estão a matar tudo, devido à estupidez dos seus comunicadores.
Luta de classes na teoria pode assustar mas é um modo claro de dizer que a filosofia é a busca de uma vida justa e digna de ser vivida. Como tal é luta, porque há os que não desejam mudar nada. (Ninguém falou de palavras.) :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon escreveu: "Mas se "dizer que a realidade não pode ser mudada e transformada qualitativamente é ser simplesmente burro", então não diga que as crianças nascem mortas. Parece-me incoerente..."

Mas onde está a incoerência? A Papillon omitiu um frase entre as duas que refere. Além disso, parece esquecer que a filosofia tem o seu "momento retórico". Fui muito hegeliano! :)

E. A. disse...

"Uma vida sem exame não é digna de ser vivida"... Este é o princípio socrático fundador da Filosofia.
Mas, este exercício crítico é primeiro individual e vital, e depois social e político.

Se há os que “não desejam mudar nada”, não consigo crer ou conceber que “lutando”, eles mudem de facto. Ou então é uma mudança aparente, e prolongamos indefinidamente o jogo das aparências.

A Europa, ou o Ocidente, definha, porque os seus valores colapsaram. A ciência e a tecnologia correm sem freio; a Filosofia ficou confinada a um capricho, como qualquer outro “fetiche”; a democracia revela a sua incapacidade constitutiva de fazer frente à incontinência capitalista.

Então, o que fazer, para não boicotar o futuro às crianças? De modo a que elas não nasçam logo “mortas”?
Para mim, é restituir-lhes possibilidades de ser e valores. É aprofundar-lhes a memória, para que o futuro seja mais vasto, também. É promover-lhes auto-estima e segurança, pois sem coragem não há espírito crítico, nem denúncia.
Só assim, a desejada mudança surge naturalmente, ou melhor, torna-se imanente porque apropriada e sua.
Mudança violenta, como o F. alega, é desconfiar à partida da autonomia que ao mesmo tempo reclama! É contraditório!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Só que esse modelo "educativo" que defende falhou: as crianças não se tornaram adultos autónomos, responsáveis e cidadãos! Que fazer? Valores, mas estes não são exteriores à realidade: respiram-se, como dizia Natália Correia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto ao futuro da Filosofia, é a sua perspectiva que defende. Para nós, a filosofia tem dimensão política! Veja o Comício do PS aqui no Porto! :)

E. A. disse...

Sim, é claro que é a MINHA perspectiva. É assinada por MIM, logo é MINHA.

Se o F. é do PS e se tem maioria absoluta, anseia pelo quê?

O modelo "educativo" que falo n falhou, porque nem sequer é posto em prática, ou é-o de maneira não-plena.

Ok, por mim chega.
Divirta-se.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ok Divirta-se também e pense na missão social da Filosofia! :))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Memória?
Mas tudo actualmente "condena" a memória. As cabeças já não memorizam nada, nem os números de telefone! A filosofia que não busca a perfeição privada deve estar atenta às novas realidades e retomar a sua grande tradição. Afinal, a filosofia não são palavras!

Manuel Rocha disse...

Então ?!

Ainda aqui está ?!

Perdeu o comboio para o fds nos Montes Cantábricos ??

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Amigos

Não defendo a "força" como princípio de mudança. Apenas disse que os corruptos, dado não terem vergonha, não anandonam o poder, a menos que sejam expulsos. Sempre que a liberdade e a democracia estejam em causa defendo o recurso à violência!

Manuel Rocha disse...

“As novas classes dirigentes exercem uma dominação nunca antes vista…”

Ousemos ser críticos e pôr em causa o que parece evidente, procurando uma teoria emancipadora.

E se as classes dirigentes estiverem elas próprias prisioneiras da inércia do movimento sem retorno gerado pelas permanentes metamorfoses do capitalismo democrático de que nos servimos soba a forma da sociedade de consumo ?

E se civilizacionalmente nos deslocamos numa via de sentido único, transportados num veiculo ideológico que afinal é obra colectiva, porque tb adoptada como justificação de nós próprios , mas que nos aprisiona, e connosco os dirigentes a quem democraticamente não permitimos sequer a conceptualização de vias veleidades alternativas ?

Não seremos afinal e apenas prisioneiros da nossa própria “capacidade metabolicamente reduzida”, que defendemos com as armas da democracia ? Afinal, quem é que nos domina ? Os dirigentes ou os paradigmas que incorporamos sem reservas ?

E como é que nos emancipamos de nós próprios ?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Não estou de acordo quanto a "branquear" as classes dirigentes (em sentido lato, incluindo os empresários a a banca). A verdade é que o país está numa situação péssima e eles estão "ricos". Se fossem "bons", competentes e honestos não estariamos nesta situação. O capitalismo não pode ser responsabilizado por tudo. Aliás, há capitalismo livre em Portugal? Ou temos capitalismo dependente e parasitário do Estado? Nada funciona bem em Portugal: MUITA CORRUPÇÂO.
A "sociologia" não possibilita responsabilizar Ninguém! As pessoas é que devem ser responsabilizadas...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Estado está GORDO e o sistema de Segurança Social/Estado Social corrompem tudo, usando a "democracia" como nivelamento por baixo. Emagrecer rapidamente o Estado, deixar a economia funcionar por si mesma e responsabilizar as pessoas! ETC.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Viva o FCPORTO! Que se lixe o Leixões!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Se os dirigentes fossem como o Pinto da Costa, tinhamos um sistema "musculado" mas com bons resultados, isto é, com sucesso e prestígio. Mas estamos em Portugal: um país invejoso e uma capital ainda mais invejosa e ladra!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Manuel coloca esta questão:

"E como é que nos emancipamos de nós próprios?"

Resposta hegeliana: o suicídio! A luta em que arriscamos a vida, essa dá sentido e prestígio à vida! A vida metabólica é o mesmo que "pasto": não admiramos "gado".

É claro que já sou pós-hegeliano. Por isso, adaptei a linguagem, dando ao termo suicídio o seu sentido corajoso. O curso de Yena e a Fenomenologia tratam bem deste assunto: o suicídio é o acto pleno de liberdade, o único verdadeiramente livre. (Não interprete isto como branqueamento dos suicídios egoístas.)

Manuel Rocha disse...

Francisco.

Eu não falei em "branquear as classes dirigentes", nem pretendo dizer que qualquer corrupção demonstrada não seja punida!

A minha questão não é essa.

A minha questão tem a ver com a forma como a generalidade de nós concebe o seu papel social, o seu lugar no mundo e a pressecução dos fins que estabelece a si próprio.

Há escolhos ao funcionamento do tecido social que não se explicam com a corrupção. E são muitos. Paradigmas, práticas e formas de estar que levam a desempenhos anti-sociais com a mesma naturalidade com que se respira. Somos todos muito reinvidicativos, mas muito pouco constructivos!

E nestas coisas não basta o rasgo de génio da imaginação arquitectónica de um Sisa quando esboça num guardanapo de papel a pala de um Pavilhão de Portugal ! Ou há "engenharia" para a materializar ou ficará apenas como esboço !

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Sim, há todo esse mau funcionamento que pode ser corrigido. Mas referi-me a outras coisas mais graves. Por exemplo, o JN de hoje tem na primeira página um caso de um deputado do PSD que atribuiu uma verba gorda (dos fundos) a uma empresa e passado um ano foi trabalhar para a empresa que favoreceu. O que é isto? Boa gestão dos fundos? Afinal, onde são investidos os fundos que recebemos da UE? A Irlanda já está na frente; nós estamos atrás. Porquê? É isso a que chamo corrupção e medíocre!

Manuel Rocha disse...

Sim, meu Caro,

Entendo perfeitamente onde quer chegar.E o fiscal da Câmara agradece a renovação da cozinha que ocorre na sequência da persistente coincidência com que não passou pela estrada lateral à obra que se construiu antes do respectivo licenciamento. E a professora acha que não tem nada que permanecer trinta e cinco horas por semana dentro da escola porque na sala de professores só há tres computadores, e....

Falo de uma forma de estar, em que nem todos os exemplos dão primeira página.

Só se sai daqui pelo "suicidio"?!

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, o "suicídio" não significa aqui "matar-se": significa arriscar a vida numa luta de prestígio. Ser livre e lutar por um mundo mais transparente. Está associado à dialéctica do reconhecimento. Dizer não à "vida fácil" e lutar por algo superior aos interesses privados.
Mas esses casos de favores em níveis inferiores não podem ser combatidos enquanto os grandes responsáveis permanecerem impunes.

Manuel Rocha disse...

Não o acompanho por aí, Francisco...reconheço verdade naquilo que citou da Natália, que os valores se respiram, mas as nossas crianças respiram em casa e na escola e não nos corredores de S Bento...portanto...:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Concordo que a educação é a via mais correcta para corrigir estes "erros", mas, como estamos a verificar, o sistema de ensino parece ser uma força bloqueadora da mudança qualitativa. E os mass media não ajudam, dada a sua programação reles e fácil.
Adiar o futuro por mais 15, 20 anos é pesado demais! Precisamos agir já e temos pessoas competentes e corajosas, aqueles que "arriscam a vida" por causas nobres.