Bargh & McKenna (2004) elaboraram uma teoria social da Internet que, ao contrário da perspectiva mais negativa de Griffiths (2001) ou de Cooper et al. (1999), acentua os efeitos positivos exercidos pela Internet sobre a vida social quotidiana dos seus utilizadores. A Internet e a comunicação mediada por computador «beneficiam» aqueles indivíduos cujas identidades são socialmente muito estigmatizadas, possibilitando-lhes revelar aspectos das suas vidas íntimas que encobrem na vida offline dos outros indivíduos com quem convivem diariamente. Para estas pessoas estigmatizadas, a "vida on-line" é muito mais gratificante que a "vida off-line" e, frequentemente, após terem revelado, no meio virtual, aspectos significativos dos seus «eus verdadeiros» (Rogers), tendem a integrá-los nas suas vidas reais. Os portugueses, cujos comportamentos on-line investigo intensivamente desde 2000, não escapam a este padrão descoberto e, tal como os estrangeiros, usam frequentemente a Internet para revelar aspectos reais dos seus «eus reais» a outros que partilham desses mesmos traços e, deste modo, agirem em conformidade com as suas verdadeiras identidades. Sherry Turkle (1997) interpretou esta tarefa de "refazer" as suas identidades no meio virtual, levando apenas em conta e sobrevalorizando a experiência dos MUDs (Multi-User Domains), como a emergência da oportunidade das pessoas expressarem múltiplas facetas da sua personalidade, muitas vezes inexploradas, de brincar com a sua identidade ou experimentar novas identidades, donde resulta que «a identidade de uma pessoa no computador é a soma da sua presença distribuída». «A prática vivida nas janelas é a dum eu descentrado que existe em muitos mundos e desempenha muitos papéis ao mesmo tempo», cabendo aos Muds «oferecerem-nos identidades paralelas, vidas paralelas». Aliando-se ao pós-modernismo, Turkle afirma mesmo que, nos mundos mediados pelo computador, «o eu é múltiplo, fluido e constituído em interacção com uma rede de máquinas». Embora esta perspectiva capte traços das "identidades pós-modernas" (Bauman) de muitos utilizadores da Internet, os nossos resultados não confirmam esta generalização. Com efeito, a nossa cyberpesquisa revelou que a maior parte dos utilizadores da Internet não perdeu o bom senso que lhes permite distinguir entre realidade e fantasia. Pelo contrário, os portugueses tendem a exibir uma concepção bastante "pragmática" da Internet, visto que, com excepção de uns poucos que vivem dependentes da vida no ecrã, sabem conjugar a vida real com a vida no ecrã, que encaram como uma nova arena social que permite realizar as suas "ficções verdadeiras" que, posteriormente, tendem a incorporar nas relações que estabelecem com os outros nos contextos práticos da vida quotidiana. A comissão europeia diz que Portugal é o 3º país melhor classificado no ranking dos serviços electrónicos. Neste aspecto, cabe dizer que os homens utilizam mais a Internet do que as mulheres, cujos usos da Internet tendem a restringir-se a um mínimo de «aplicações». Este dado corrobora a nossa ideia de que os portugueses, mais os homens do que as mulheres, mais os jovens do que os mais «velhos», integraram rápida e facilmente o computador e a Internet na sua vida quotidiana. Este facto mostra que a Internet tem efeitos sobre a vida real e quotidiana das pessoas, quer ao nível das instituições públicas ou das empresas que melhoram a qualidade dos seus serviços, com menores custos e sem perdas desnecessárias de tempo, quer ao nível da vida diária das pessoas. Se tentarmos clarificar melhor a distinção entre «vida electrónica autónoma» e «vida electrónica heterónoma», chegaremos à noção de que existem duas maneiras dos utilizadores se relacionarem com o computador e a Internet: uns, os peregrinos de Bauman, usam estas novas tecnologias para enriquecer a sua vida real e o seu eu, enquanto outros, o deambulador, o vagabundo, o turista e o jogador de Bauman, se deixam aprisionar na rede, sacrificando a sua vida real às satisfações momentâneas obtidas dos usos compulsivos da Internet. Confrontamo-nos com a concepção dual da Internet que, à imagem de Jano, tem duas faces (Barak & King, 2000): um lado positivo e claro, outro lado negativo e escuro, e a «escolha» de uma das vias em detrimento da outra depende muito do perfil psicológico do utilizador e de outras variáveis sociais. (Sobre estes assuntos pode ler, entre outros posts, GaySex on the Internet e Internet Sex Addiction.) J Francisco Saraiva de Sousa
16 comentários:
Interessante esta tipificação.
A relação com o outro via Internet não será ( apenas, embora mais versátil ) como a relação com a vida, onde no dia a dia há inúmeras pessoas que desempenham na perfeição um papel social que não tem nada a ver com a sua autenticidade ? E nãs as há também que vestem várias "peles" consoante os contextos ?
Não será a Internet apenas ( mais uma ) outra forma de exprimir idiossincrasias de vária ordem ?
Manuel
Nos USA e, em menor grau, em Inglaterra, os investigadores debatem muito os usos e os efeitos da Internet e da comunicação mediada por computador. Uns reduzem-na à sua face negra, outros, à sua face clara. Contudo, os dois lados esquecem que qualquer tecnologia produz dependência: adição tecnológica.
A adição tecnológica não é preocupante. De facto, os grandes pensadores, se tivessem tido acesso a todas as tecnologias de que dispomos hoje em dia, ficariam maravilhados. O computador e a rede são simplesmente inefáveis: possibilitam trabalho criativo e diálogo permanente, aquilo que eles faziam com a troca de correspondência. As cartas dos mestres são obras científicas e filosóficas únicas!
Porém, há um problema: o modelo de sociedade que entrava este uso criativo e humano das novas tecnologias, mediante mecanismos complexos que produzem regressão mental e cognitiva. Isto significa que uma filosofia da Internet deve levar em conta a natureza da sociedade estabelecida. Infelizmente, os filósofos estão alienados em debates vazios e de costas voltadas para a realidade.
Hoje a filosofia não pode voar ao entardecer, quando uma forma social e histórica chega ao seu fim, como o pássaro de Minerva de Hegel; precisa antecipar-se aos próprios desenvolvimentos sociais e orientá-los. Pelo menos, esta é a minha perspectiva.
Sim, a Internet possibilita esse jogo de experimentar papéis sociais ou peles, mas a maior parte das pessoas não se "perde no canal" (Trakl), até mesmo as que buscam apenas sexo, porque preferem o sexo real.
Não há nada que seja do Homem que não tenha a "outra face"... que não tenha sobre si a espada de Dâmocles, ainda mais a Internet que pelas suas infinitas possibilidades torna-se tão mais prodigiosa, quanto mais pantanosa... :)
Papillon
É isso mesmo: "a espada de Dâmocles".
Boa ideia! Mas, como sou mais lúdico, prefiro acentuar a face branca da Internet em todos os seus domínios. :)
Ai o Francisco é "lúdico"? No outro dia era "sério". É conforme acorda.
Eu gosto da Internet por esta ambivalência iminente. Nada do que é realmente bom na vida nos é confiado sem revés. E aqui vive-se esta negociação em bruto.
Sou sério e lúdico, ao mesmo tempo! Mas não estigmatizo as pessoas ou as regiões. Pelo contrário, procuro libertar a realidade desses estigmas e contribuir para a mudança. É isso que a Papillon ainda não compreendeu. Sou livre e independente: não carrego estigmas ou preconceitos negativos. O Porto está para além desses estigmas lisboetas!
"Negociação" é outro termo fulcral para entender alguns usos da Internet! Aliás, a hermenêutica de Gadamer pode ser utilizada no estudo da Internet: a fusão de horizontes é algo procurado on-line, até porque é difícil alcançar esse acordo off-line.
Ui!
Eu n "estigmatizo ninguém"... o Francisco é que nem sequer sabe o que é caricaturar. Se é assim tão inteligente, sabe, naturalmente, a diferença entre uma coisa e outra. Mas pelos vistos não sabe. Mas tb n se preocupe, porque n mais o "estigmatizarei". Continue a dormitar na "libertação das pessoas e regiões"... blá blá blá... talvez um dia seja condecorado herói por tão nobre causa!
Um aspecto fantástico da Internet é o facto dela possibilitar a nossa libertação das práticas de agenda dos media electrónicos tradicionais. Podemos criar a nossa própria agenda e podemos participar livremente neste novo espaço público virtual: aquilo a que chamo democracia electrónica. A comunicação deixa de ser de sentido único (emissor > receptor) e passa a ser diálogo: a manipulação jornalística pode ser finalmente combatida. Contudo, há a ambivalência de que fala a Papillon, fazendo eco de Bauman.
Ok Papillon
Não entendo porque razão está a desconversar! Have a nice day!
Eu a desconversar? O F.é que me acusou de "estigmatizar pessoas e regiões"... mas, tem razão, a culpa é minha: eu é que ainda insisto na hipótese remooooota que o F. tem algum, recôndito, sentido de humor. Mas realmente n tem. Tb n se pode pedir tudo. Tão culto que é... teve que escassear a outros níveis.
Have a nice day, too, Mr. F.!
Interessante. Este tema interessa-me pelo lado das identidades. O aspecto dos “eus reais” e das verdadeiras identidades tem-me suscitado interesse nos últimos tempos, se bem que me parece que quanto mais aprofundo mais caminho em superfícies movediças, para não parafrasear o líquido de Bauman. Quanto a líquido, dizem que Jesus Cristo caminhou sobre as águas. Pode ser que este ciclo se tenha fechado e o caos de Edward Lorenz está aí com toda a sua força.
Papillon
O que quer que lhe diga? Penso que já lhe disse que esse humor em torno da pronúncia e da francesinha do Porto é uma imagem gasta e sem graça, porque vivo no Porto e não ouço essa pronúncia. Falta de sentido de humor? Não, mas apenas cansado desse humor lisboeta.
Fernando Dias
A Internet permite esse jogo de mudança de "identidade", até a mudança de papel de género. Esse é um aspecto curioso mas não tão frequente quanto se pensa. O mais frequente em chat rooms é "demarginalizing the sexual self", com os seus efeitos positivos e negativos.
O conceito de identidade ficou prisioneiro da problemática de Erikson. Será melhor regressar a Locke e Hume e relançar o conceito em nova chave. O "líquido" de Bauman esquece que as pessoas ainda são muito "sólidas"! Os estudos empíricos que tenho não confirmam essa noção "líquida" do amor, do casamento, do homem sexual. Uma generalização muito precipitada!
Papillon
Não fique amuada, mas não sei mesmo o que dizer sobre essa matéria! Aqueles que menciona são pessoas muito pardacentas do Porto. Eu não sou "bairrista" mas cosmopolita no sentido de Kant e um pouco de Simmel.
A televisão e os programas produzidos em língua portuguesa tiveram um papel positivo no uso da língua: uniformizam a pronúncia e possibilitam um desempenho linguístico mais correcto.
A Papillon escreveu e com razão:
"Tão culto que é... teve que escassear a outros níveis."
Devo confessar que tenho "escasseado" na análise que faço da Internet. Já tenho alguma experiência da blogosfera e, apesar disso, deixei escapar um facto relevante. Não são somente os indivíduos estigmatizados que beneficiam com a Internet: os "marginalizados" e os "excluídos" também. De certo modo, quase todos nós bloguistas usamos a Internet para partilhar o nosso pensamento e comunicar com os outros. Isto pode significar que não estamos "integrados" no status quo e ainda bem. Somos "rebeldes" e avessos a integração social. Não gostamos da ordem estabelecida e aqui estamos a criar uma "contra-ordem social", novas "contra-linguagens". Somos "marginais" do sistema, mas a Internet permite-nos evitar a "periferia". A Internet pode ser usada como uma "arma política" contra o sistema estabelecido e contribuir para a mudança social qualitativa.
A actividade que descreve no seu último comentário eu chamo-lhe "cultivar as margens"...:)
Por vezes rende boas colheitas !
Bom termo: "Cultivar as margens"! :)
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