segunda-feira, 24 de março de 2008

Salmo dedicado a Karl Kraus

Antes de reiniciar a minha actividade mais interventiva depois deste breve período de recolhimento pascal, vou partilhar mais um belo poema de Georg Trakl traduzido por João Barrento. Chama-se "Psalm" e foi dedicado a Karl Kraus.
«Há uma luz que o vento apagou.
Há uma taberna no campo, de onde à tarde sai um bêbado.
Há um vinhedo queimado e negro com covas cheias de aranhas.
Há uma sala que caiaram a leite.
Morreu o louco. Há uma ilha do mar do sul
Para receber o deus do sol. Rufam os tambores.
Os homens executam danças guerreiras.
As mulheres dão às ancas cingidas de trepadeiras e flores de fogo,
Quando o mar canta. Oh, o nosso paraíso perdido.
«As ninfas deixaram as florestas douradas.
Enterra-se o forasteiro. Depois começa a cair uma chuva cintilante,
Aparece o filho de Pã sob a forma de um trabalhador da terra
Que passa o meio-dia a dormir no asfalto em brasa.
Há rapariguinhas num pátio, com vestidinhos cheios de uma pobreza que
trespassa o coração!
Há quartos cheios de acordes e sonatas.
Há sombras que se abraçam frente a um espelho cego.
Às janelas do hospital aquecem-se os convalescentes.
Um paquete entra o canal trazendo sangrentas epidemias.
«A estranha irmã volta a aparecer nos maus sonhos de alguém.
Brinca tranquila nas avelaneiras com as estrelas dele.
O estudante, talvez um sósia, olha-a longamente da janela.
Atrás dele está o seu irmão morto, ou então desce a velha escada de caracol.
No escuro dos castanheiros empalidece a figura do jovem noviço.
O jardim está imerso no entardecer. No claustro esvoaçam os morcegos.
Os filhos do porteiro deixam de brincar e buscam o oiro do céu.
Acordes finais de um quarteto. A pequena cega atravessa a alameda a
tremer,
E mais tarde a sua sombra vai tacteando muros frios, envolta em contos de
fadas e lendas de santos.
«Há um barco vazio que ao cair da noite vai descendo o canal negro.
Na obscuridade do velho asilo há ruínas humanas em decadência.
Os órfãos mortos jazem junto aos muros do jardim.
De quartos cinzentos saem anjos com asas sujas de excrementos.
Gotejam-lhes vermes das asas amareladas.
A praça da igreja está sombria e mergulhada no silêncio, como nos dias da
infância.
Sobre solas de prata deslizam vidas passadas
E as sombras dos condenados descem às águas soluçantes.
No túmulo, o mago branco brinca com as suas serpentes.
«Em silêncio, abrem-se sobre o Calvário os olhos dourados de Deus.»
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

André LF disse...

Kraus merecia esta homenagem! Eis algumas frases deste admirável louco:
"Os alunos comem o que os professores digerem" (Ditos e desditos).
"O vício e a virtude são parentes como o carvão e o diamante" (idem).
"Existem imbecis superficiais e imbecis profundos" (idem)
"Apenas no prazer da reprodução lingüística nasce um mundo a partir do caos" (idem).
"Minha linguagem é como uma prostituta que eu transformo em virgem" (idem).

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Excelentes frases as de Karl Kraus.
Foi traduzida aqui recentemente uma obra dele, mas não a tenho. Gosto das duas últimas frases!

André LF disse...

Qual obra, Francisco?

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

André

Será "O Primeiro Homem" ou qualquer coisa assim do género. Penso que a editora é a Antígona. Vou ver...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

"Os Últimos Dias da Humanidade" de Karl Kraus. A Editora estava correcta! Pode ver via Google: Antígona, Editores Refractários.

André LF disse...

Francisco, acabo de ler o seu texto "Florbela Espanca: Morrer na Morte". Achei-o muito belo e profundo.
As suas considerações sobre "o diálogo com os mortos" e os sacríficios (Sacro-ofícios) realizados por Florbela durante a sua vida, marcaram-me intensamente. Estou a pensar (leia-se também "sentir")num ritmo vertiginoso. Queria de lhe dizer tudo aquilo que o seu texto (um longo Haikai) me provocou, mas não encontro as palavras ideais, e não consigo, como disse Kraus, torná-las virgens. Gostaria que você escrevesse mais sobre a relação entre poesia e filosofia, bem como sobre os poetas que lhe são caros.
Obrigado pelo presente!

André LF disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Obrigado.
Estive a ver os livros editados pela Antígona e tens alguns deveras interessantes. Raramente vejo os livros desta editora nas livrarias! Fiquei interessado no ensaio sobre desobediência civil, um clássico já em português!
Tenho algo mais sobre as relações entre poesia e filosofia, mas é tudo longo. Vou ver...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Uma biografia interessante sobre FlorBela é a da Agustina Bessa-Luís! Natália Correia também escreveu sobre FlorBela.

André LF disse...

Procurei o livro de Agustina Bessa-Luís, mas não o encontrei.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O livro da Agustina Bessa-Luís é "Florbela Espanca": Guimarães Editores.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Está online. Já vi...