quinta-feira, 6 de março de 2008

Bakhtin: Ideologia e Consciência

Notas para uma Pesquisa
Contra o idealismo e o psicologismo que afirmam que «a ideologia é um facto de consciência e que o aspecto exterior do signo é simplesmente um revestimento, um meio técnico de realização do efeito interior, isto é, da compreensão»
, Bakhtin recorda que «a própria compreensão» só pode manifestar-se «através de um material semiótico (por exemplo, o discurso interior), que o signo se opõe ao signo, que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. Afinal, compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; noutros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de [outros] signos».
Neste âmbito, um diálogo com a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer
seria extremamente instrutivo. Ora, dado que todos os signos são materiais e dado que não pode existir consciência humana sem signos, Bakhtin lança, com a sua teoria da linguagem, as bases de uma teoria materialista, isto é, científica da própria consciência. A consciência não é um reino interior fechado e divorciado das relações sociais; pelo contrário, a consciência é o intercâmbio activo, material, semiótico, do sujeito com outros sujeitos e, tal como a linguagem, é simultaneamente «interior» e «exterior» ao sujeito.
Para Bakhtin, a compreensão é uma resposta a um signo através de outro(s) signo(s). Constitui-se, assim, uma «cadeia de criatividade e de compreensão ideológica» que se desloca de signo em signo para um novo signo e que é única e contínua, não sendo quebrada em nenhum ponto dos elos de natureza semiótica que a compõem. Esta cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando-as umas às outras. Como diz Bakhtin:
«Os signos só emergem, decididamente, do processo de interacção entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interacção social»
.
Em matéria de cultura, o erro fundamental da filosofia idealista e do psicologismo reside no facto de situarem a ideologia na consciência e, consequentemente, transformarem o estudo das ideologias no estudo da consciência e das suas leis, independentemente desse estudo ser feito em termos transcendentais ou em termos empírico-psicológicos. Deste modo, a criação ideológica é introduzida à força no quadro da consciência individual que, privada de suporte material, se torna tudo ou nada.
Para o idealismo, a consciência é tudo: situada em algum lugar acima da existência, a consciência determina a existência. Contudo, esta «soberana do universo» é «a mera hipóstase de um vínculo abstracto entre as formas e as categorias mais gerais da criação ideológica»
.
Para o psicologismo positivista, a consciência reduz-se a nada: «simples conglomerado de reacções psicofisiológicas fortuitas que, por milagre, resulta numa criação ideológica significante e unitária»
.
A interpretação errada da regularidade social objectiva da criação ideológica em conformidade com as leis da consciência individual não só a exclui do seu verdadeiro lugar na existência — o universo dos signos —, como também a transporta quer para o reino supra-existencial do idealismo transcendental, de Kant a Husserl, quer para os recônditos pré-sociais do organismo biológico (psicofisiológico). Contudo, segundo Bakhtin,
«o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-humanas. O seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem. A sua especificidade reside precisamente no facto de que ele se situa entre indivíduos organizados, sendo o meio da sua comunicação»
.
Dado os universos dos signos e das ideologia coincidirem e dado o ideológico ser o meio da comunicação entre indivíduos organizados e pertencentes a determinados grupos humanos, parece que Bakhtin é levado a encarar a comunicação como intrinsecamente ideológica, ou melhor, semiótica. Com efeito, para Bakhtin,
«Os signos só podem aparecer num terreno interindividual», entendido não como terreno «natural», mas como terreno onde os indivíduos estão socialmente organizados e formam grupos ou um grupo (uma unidade social): «[...] só assim um sistema de signos pode constituir-se. A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social»
.
Althusser diz que a Ideologia enquanto Sujeito interpela sempre-já os indivíduos como sujeitos, submetendo-os e sujeitando-os assim a «Si mesma». Sem os confrontar, diremos apenas que Bakhtin defende a tese de que «a consciência individual é um facto sócio-ideológico»
. E acrescenta:
«A única definição objectiva possível da consciência é de ordem sociológica. A consciência não pode derivar directamente da natureza, como tentaram e ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingénuo e a psicologia contemporânea (sob as suas diferentes formas: biológica, behaviorista, etc.). A ideologia não pode derivar da consciência, como pretendem o idealismo e o positivismo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso das suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria do seu desenvolvimento, e ela reflecte a sua lógica e as suas leis»
.
Em termos de derivação, as teorias criticadas por Bakhtin tomam a forma da seguinte «equação»: (Ideologia) > (Consciência Individual) > (Natureza), à qual opõe outra «equação» diferente: (Consciência Individual) > (Ideologia + Signos) > (Interacção Social).
A proximidade com o interaccionismo simbólico é impressionante, sobretudo com a teoria da origem social do Self de George Mead
. Bakhtin continua:
«A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interacção semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência do seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem o seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples acto fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem»
.
A última afirmação de Bakhtin é deveras interessante, já que possibilita desenvolver uma hipótese neurobiológica da consciência: a consciência enquanto «acto fisiológico» — ou como sistema de regulação neural — é, durante a sua maturação e desenvolvimento, submetida a um processo de modulação e de formação social e semiótica, do qual resulta a «consciência verbalmente constituída». O suporte biológico da «proto-consciência» é, ele próprio, moldado pelos signos e pela comunicação ideológica, no decurso das interacções sociais, de modo a «converter-se» numa consciência elaborada linguisticamente, capaz de atribuir sentido não só ao acto fisiológico que possibilita um tal desenvolvimento epigenético, mas também ao mundo em que é «lançada».
Da definição da consciência individual como fenómeno sócio-ideológico, Bakhtin deriva o seguinte princípio metodológico:
«O estudo das ideologias não depende em nada da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela». O contrário é que é verdadeiro: «A psicologia objectiva deve apoiar-se no estudo das ideologias. A realidade dos fenómenos ideológicos é a realidade objectiva dos signos sociais. As leis dessa realidade são as leis da comunicação semiótica e são directamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e económicas. A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base económica. A consciência individual não é o arquitecto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos»
.
Só o reconhecimento deste facto e das suas consequências torna possível construir uma psicologia objectiva e um estudo objectivo das ideologias. É necessário abandonar a consciência como «asylum ignorantiae» de todo o «edifício filosófico»
e separá-la dos fenómenos ideológicos, para seguidamente os ligar «às condições e às formas da comunicação social»: «A existência do signo nada mais é do que a materialização dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos».
Anexo: Os pseudo-esquerdistas serão levados a pensar que Bakhtin concede o primado à sociologia (pensamento igualitário) sobre a psicologia (pensamento da diferença), mas estão redondamente enganados, porque a filosofia da linguagem de Bakhtin implica uma nova antropologia: o homem semiótico!
J Francisco Saraiva de Sousa

12 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Bem, vou forçado a voltar à política activa! Novos posts sobre política de NOVA ESQUERDA! :)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Avanço com uma tese: O maior inimigo da Teoria Crítica, portanto, do marxismo, é o "comunismo", aliás uma ideia estranha ao pensamento de Marx, e o voluntarismo político de esquerda, da Velha Esquerda! O "socialismo" ou "social-democracia" é o herdeiro e o protagonista desse marxismo genuíno, aquele que transparece no elogio que Marx faz das forças de produção «burguesas», no começo do "Manifesto Comunista".

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Isto significa que o marxismo é, politicamente falando, liberal: defesa da liberdade, portanto, da democracia, e da justiça social, portanto, da intervenção do Estado na racionalização da economia.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Contudo, alguns esquerdistas não respeitam o espírito liberal do marxismo. Desejam um ESTADO MUSCULADO e GORDO, como se Marx tivesse sido apologista de um tal Estado, logo ele que referiu a extinção do Estado! Pragmatismo político: o que ele defendia era um Estado exíguo e eficiente na gestão da "coisa pública". Poucos funcionários mas competentes! Mais poder para os cidadãos! Democracia mais participada! Por isso, defendia a educação e dizia que os "educadores" ou, se preferirem, os professores deviam ser EDUCADOS, para estarem à altura da sua nobre missão!
Marx não está de acordo com estas manifestações emocionais dos professores, de resto impulsionadas pelos sindicatos (criticados por Lenine) e pelas forças da oposição (a burocracia também criticada por Lenine). Afinal, o comunismo não é leninista!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Então, o que é o comunismo? simplesmente uma "doença infantil" do marxismo! Digo "doença", porque o marxismo não é um comunismo, até porque nunca defendeu uma concepção igualitária da "igualdade", isto é, da justiça social! O materialismo defendido por Marx é absolutamente "aleatório"... Por isso, qualquer visão positiva da sociedade futura seja um equívoco!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O próprio Marx é herdeiro da tradição grega do pensamento político: representa sempre no seio dessa tradição "o sonhar acordado" ou o "sonhar para a frente", ao mesmo tempo que condena todo o sonho reificado, coisificado, congelado! O comunismo é pensamento congelado e colonizador: pretende colonizar o próprio tempo! Ideia absolutamente estranha à dialéctica de Marx! Nada está garantido e muito menos uma síntese que violenta o particular, o específico, o indivíduo.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Hoje o marxismo ou é liberalismo com preocupação social ou não é nada! Mas o marxismo é o sonho que orienta a política da mudança social qualitativa! O monstro é o comunismo!

Manuel Rocha disse...

Bem...como sabe não concordo nada com esta prática de publicar três posts nun dia !!!

E ainda por cima com um post extra nas caixas de comentários...

:)))

Tudo isto é porque o Porto foi eliminado ?!

:)))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O Porto foi uma vitória moral amarga! :)

lp disse...

O Francisco ora diz que o comunismo nada tem que ver com Marx, ora diz que este defendeu a extinção do Estado. Pois eu estava convencido de que o comunismo era precisamente isso: uma sociedade sem Estado, porque sem classes, sem uma classe dominante.
Só que o Francisco confunde o discurso marxista àcerca da extinção do Estado, com o discurso liberal que defende um Estado pouco pesado ou mínimo, que como disse o outro deve ser desmantelado, ainda que o sistema económico existente continue a ser o capitalismo. Dessa sua confusão resulta a sua ideia original de que Marx era um liberal e adepto do capitalismo (!).
Sim, ele teceu elogios a este sistema económico, mas também disse que era preciso superá-lo, sendo que a sua superação seria atingida através da chamada «ditadura do proletariado», isto é, através do socialismo (o sistema económico que antecede o comunismo, segundo o materialismo histórico). Pensava eu que na «ditadura do proletariado», a propriedade dos meios de produção era colectiva e não privada. Mas parece que para o Francisco, o que Marx defendeu foi a «ditadura dos cidadãos no capitalismo» (!), sem fazer qualquer distinção de classes, e sem defender qualquer desalienação económica. «Cidadãos de todo o mundo, uni-vos!», parece ser a palavra de ordem do «marxismo» original do Francisco. E é desta forma que a teoria da «luta de classes» - o motor da História - é completamente ignorada e esquecida pelo Francisco.
De acordo com o materialismo marxista, a infra-estrutura económica está na base daquilo que é a super-estrutura cultural. Daí que Marx entenda que só através da alteração do sistema económico, se dará uma efectiva alteração social e cultural. Pela desalienação do trabalho, a alienação política, ideológica e religiosa em que os homens vivem seriam também elas vencidas. Ora, o que o Francisco entende é que a economia deve continuar a ser «livre» ou «espontânea», como defendem os discípulos de Hayek e de Adam Smith. O Estado mínimo seria um regulador mais ou menos interveniente, mas não poria em causa aquele livre funcionamento (a «mão invisível») nem a propriedade privada dos meios de produção. Continuaria a estar ao serviço da classe dominante, portanto. Pois... Percebi...
Enfim, Marx enganou-se no título da sua obra «O Capital». A sua teoria da mais valia, não pretendia explicar aquilo em que consistia a exploração capitalista; a exploração do homem pelo homem. Aquilo para que ele queria chamar a atenção eram os «privilégios» dos funcionários públicos que exploram a totalidade dos outros cidadãos, a começar pelos proprietários dos meios de produção. A grande contradição da sociedade capitalista não reside, afinal, na crescente acumulação do capital, mas sim no funcionalismo público «corrupto», «corporativo» e «egoísta».
O que o Francisco devia fazer era apresentar estas suas teses originais no blogue Blasfémias, que pode ser que consiga converter o João Miranda e os seus amigos a este «neomarxismo», representado em Portugal por Sócrates, que acabou de aprovar novas leis para facilitar o despedimento dos funcionários públicos.
Viva a nova «esquerda»! Viva o novo «socialismo»! Viva o novo «marxismo»! E viva a retórica como «arte da mentira e da manipulação»!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

lp

O marxismo é dinâmico e deve adaptar-se às novas realidades. A nacionalização da propriedade privada não resolve o problema da desigualdade social; pelo contrário, possibilita a ascensão de uma nova classe profundamente corrupta. Esse modelo económico faliu... E, em Portugal, produziu corruptos.
A "ditadura do proletariado" aparece 2 ou 3 vezes nos escritos de Marx: nunca foi apresentada como um conceito. E o "comunismo" desempenha mais um papel regulador do que "explicativo" ou "orientador". O proletariado está integrado. Os sindicatos em Portugal parasitam o Estado e não têm qualquer intervenção no sector privado. Lutam contra o Estado, não contra a "exploração" que possa existir no sector privado.
Não temos alternativa económica ao capitalismo. A luta de classes não derruba sistemas sociais e, na história, a classe oprimida jamais foi dominante após uma revolução.
Marx não definiu as classes sociais, nem o Estado: O Capital está incompleto. Apenas indicações: nenhuma teoria completa! A determinação económica não é mecanicista e unilateral, além da infra-estrutura ser complexa.
Enfim, o lp deseja a ditadura do proletariado; eu desejo o aprofundamento da democracia! O lp agarra-se ao passado derrubado com a queda do bloco soviético; eu sonho para a frente. E nessa sua luta O Capital não lhe dá apoio! Nem sequer responsabiliza os capitalistas tratados como portadores!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

lp

O pensamento de Marx é extremamente complexo e susceptível de diversas leituras. O que eu defendo é que a leitura comunista é errada e a prova está na queda do muro de Berlim. Se essas populações estivessem satisfeitas, esse sistema não ruia! Mas ruiu... Fracasso total, do qual é precisa tirar ilações!
A concepção antropológica atribuída a Marx é progundamente errada. Talvez por isso tenha sido induzido em erro quando refere a alienação. Alienação em "O Capital"? Ou fetichismo da mercadoria? Não são dois conceitos teoricamente congruentes! A sua tendência para eliminar a diferença leva-o a negligenciar a cidadania! Negligência pouco grata a Marx! Vejo nas suas palavras a "velha cartilha comunista"! Aquela que ruiu! :(