terça-feira, 25 de março de 2008

Body Piercing, Personalidade e Comportamento Sexual

No seu derradeiro curso de introdução à Filosofia, Theodor W. Adorno (1962-63) desafiava a filosofia contemporânea a retomar a problemática da relação entre o corpo e a alma, que dominou as grandes filosofias do racionalismo do século XVII (Descartes, Espinosa e Leibniz), ao mesmo tempo que lamentava a ausência de uma solução no âmbito da teoria crítica. Actualmente, este problema da relação entre corpo e alma está no centro das reflexões da filosofia da mente (John R. Searle, Daniel Dennett, David Chalmers, Patrícia Churchland), a qual reformulou o problema em termos neurocientíficos. Porém, ao reduzir o problema à relação entre cérebro e mente, a filosofia da mente deixa escapar a complexidade da formulação clássica do problema, tornando-se incapaz de contribuir para a elaboração de uma filosofia do corpo e de iluminar uma praxis política.
O estudo empírico dos piercings corporais constitui uma via excelente para esclarecer, de forma social e politicamente relevante, as relações entre o corpo e a mente. Neste âmbito objectal, já possuímos muitos estudos que procuraram estabelecer ligações entre os piercings corporais, as características sociodemográficas, os traços de personalidade e o comportamento sexual (Armstrong et al., 2004; Buhrich, 1983; Caliendo et al., 2005; Carroll et al., 2002; Claes et al., 2005; Ferguson, 1999; Forbes, 2001; Holtham, 2004; Nathanson et al., 2007; Roberts et al., 2004; Skegg et al., 2007; Steele, 1996; Stirn, 2003; Sweetman, 1999; Willmott, 2001). A prática de inserir agulhas, anéis e outros objectos dentro da carne foi documentada na maioria das culturas ao longo dos séculos (Myers, 1999; Ferguson, 1999; Falcon, 2000; Lehmann et al., 2000; Meyer, 2000), mas, ao nível das sociedades ocidentais, só floresceu abundantemente nas últimas décadas (Tweeten & Rickman, 1998; Ferguson, 1999; Armstrong et al., 2002), com o aumento significativo dos piercings íntimos (intimate piercing), em especial os piercings mamilares (nipple piercings) e os piercings genitais (genital piercings).
Das teorias existentes sobre as modificações corporais, destacaremos a teoria da significação dos piercings em termos de expressão corporal do self (Stirn, 2003; Sweetman, 1999; Skegg et al., 2007), em detrimento da teoria dos piercings como moda (Steele, 1996) e da teoria dos piercings como marcadores de culturas desviantes (Nathanson et al., 2007). Esta teoria aborda o piercing, bem como outras modificações corporais (tattoos), como uma maneira de construir a auto-identidade através da atenção dirigida exclusivamente para o corpo. Isto significa que o chamado “self pós-moderno” (Sweetman, 1999) usa o seu próprio corpo como uma forma de expressão, provavelmente em detrimento das suas faculdades mentais e cognitivas superiores, as quais parecem estar em regressão: o "fora" parece dominar em detrimento do "dentro", como se o raio de acção do self tivesse sido restringido à sua própria superfície corporal como sinal da sua impotência social!
Skegg et al. (2007) investigaram as associações do piercing corporal com outras características sociais, a personalidade e o comportamento sexual, numa amostra de jovens adultos (Nova Zelândia). Os seus resultados abonam a favor da teoria de que o piercing corporal tem significação em termos de expressão corporal do self. A avaliação destas características numa amostra de indivíduos com e sem piercings corporais mostrou que as mulheres com piercings, quando comparadas com as mulheres sem piercings, eram muito mais propensas a exibir traços de personalidade de baixo constrangimento e de elevada emocionalidade negativa, e disseram ter tido múltiplos parceiros sexuais do sexo oposto ou parceiros do mesmo-sexo no ano anterior. Além disso, eram menos propensas a ter peso em excesso. Os indivíduos que tinham vivido fora da Nova Zelândia ou que eram de etnia Maori eram mais propensos a ter piercings. O desemprego e o baixo status ocupacional não estavam significativamente relacionados com o piercing.
Os resultados deste estudo de Skegg et al. (2007) mostraram que ter múltiplos parceiros sexuais heterossexuais ou do mesmo-sexo é mais comum entre mulheres adultas com piercings corporais (independentemente da sua localização) e com fraco auto-controle. A associação entre estes traços da personalidade e o piercing corporal não foi descoberto nos homens, o que parece sugerir a existência de uma diferença de género: o piercing corporal pode ser um indicador do comportamento sexual, pelo menos entre as mulheres. Caliendo et al. (2005) mostraram que as pessoas com piercings mamilares e genitais eram mais propensas a ser homossexuais ou bissexuais do que os restantes membros de uma amostra americana, associação já constatada noutros estudos anteriores (Ferguson, 1999; Buhrich, 1983).
Ortega y Gasset tinha dito no século passado que a nossa época era a "época do mancebo", portanto, do corpo masculino atlético. Robert Mapplethorpe e Tom Bianchi foram os fotógrafos da época do "mancebo gay". Após a sua «libertação» da dominação masculina, as mulheres abdicam da sua especificidade maternal e imitam os homens, recriando o seu corpo e cobrindo-o de piercings e de tatuagens, de modo a emitir a mensagem de «disponibilidade sexual»: o piercing corporal feminino exprime, portanto, uma identidade (sexual) pessoal, enquanto o piercing corporal masculino significa um identidade de grupo. (O próximo post será dedicado ao desenvolvimento deste mesmo tema.)
J Francisco Saraiva de Sousa

26 comentários:

E. A. disse...

Não concordo que os estudos sobre piercings sejam realmente determinantes para o desenho da relação corpo-mente.
E isto porque não consigo separar o estudo da expressão corporal do self dos estudos sobre piercings como moda, e como manifestos de culturas desviantes. Ou seja: é uma matéria muito flutuante.
Prova é que, aquando da minha adolescência, toda a gente tinha piercings, ou aqueles que os papás deixavam ter, e mais tarde, a maternidade, o trabalho ou mesmo a maturidade por si só, (além de possíveis transtornos ao nível da saúde) fizeram que fossem removidos, com a mesma banalidade de quando foram colocados. Quando digo "toda a gente" quero dizer: foi um fenómeno de moda. Os piercings mais discretos - umbigo, língua, orelhas - faziam parte de quase todas as "tribos"; os piercings em sítios mais arrojados e hardcore, às "tribos" mais desviantes. Daí que tb seja relacional que as mulheres com piercings sejam mais libertinas, porque essas "tribos" estão associadas a todo o tipo de alienação - sexo, música, drogas.

Ou seja: penso que n nos traga nada de novo, não obstante o seu interesse!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Papillon

Os piercings trazem um dado importante: o predomínio do corpo e de desejos associados ao corpo. O corpo converte-se numa enorme medusa que conquista novos territórios numa luta constante contra o «espírito». De certo modo, a resposta filosófica ao domínio do corporal é uma nova filosofia do espírito. A recriação do corpo ainda não é compreendida. A Papillon reconhece-o, embora depois o negue. :)

E. A. disse...

Mas o que é que eu nego?

Eu n neguei o predomínio do corpo sobre o espírito. Isso é demasiado evidente para ser negado.

O que eu nego é a relevância sintomática dos piercings como dado para esclarecer tal fenómeno, pois, a meu entender, não denotam tamanha profundidade de sentido e ser que esses estudos lhes atribuem.

E. A. disse...

Repare, os piercings estão associados às tais "tribos" sociais, e isso sim é um fenómeno de interesse, dado que surgiram nos anos 60, e com elas a libertação: das mulheres em relação aos homens, dos jovens em relação aos ditames morais bafientos dos seus pais - homofobia, racismo, sexismo, etc. E isto é louvável! Viva a liberdade! Viva o amor - com ou sem piercings!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Penso que a Papillon não está a ver a conexão entre todos esses fenómenos e, sobretudo, a libertação de forças destrutivas e auto-destrutivas, porque diz "viva o amor, viva a liberdade". Ora, o que está em causa é esse "viva": o mundo está ameaçado por medusas gigantes que produzem neurotoxinas que lhes paralisam o próprio cérebro e as suas funções superiores. Ou seja: as medusas invadem cada vez mais os mares devido às mudanças climatéricas e matam tudo em seu redor. Os oceanos regridem no tempo. Ora, nós também estamos a regredir em termos de espírito e de conhecimento. A liberdade converteu-se na liberdade de uma "queca": portanto, no seu contrário! REGRESSÃO!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Onde predomina o Corpo, a Alma está morta! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Mais: os piercings estão associados às perturbações alimentares: estas mulheres fazem piercings para tentar manter uma boa imagem corporal quando, na verdade, o seu corpo, além de feio, está a morrer em agonia. A Papillon deve dizer: Viva a Liberdade! Mas que liberdade? Sexar compulsivamente é ser livre?

E. A. disse...

eheheheh... eu sabia!
os meus "vivas!" foram provocatórios. Sou uma espécie de medusa, mas eu só causo irritações epidérmicas! eheh

Não sou apologista da "libertação por uma queca", porque uma queca n salva ninguém.

O seu diagnóstico está correcto, n disse o contrário, (apesar do seu tom fatalista), mas como travar o esvaziamento da maré (socorrendo-me a sua imagem)? Está toda a gente a dormir um soninho descansado e de tal maneira profundo que só acordarão quando o céu lhes cair em cima!

N percebo, repito, é a relevância dos piercings: eles não são contagiosos, nem auto-contagiosos, no sentido em que eles são um manifesto, a meu ver, com nenhum significado, são inertes.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, os piercings não são contagiosos ou talvez sejam dado estarem na moda. Mas podem estar ligados ao contágio de DST pela mediação de certos traços de personalidade referidos.
Também não sou contra ou a favor dos piercings: vejo neles mais um indicador preocupante dos rumos epocais. Só isso: a filosofia pode estar atenta a estas pequenas coisas...

E. A. disse...

Hmmmm... a libertação que aconteceu e se prolongou foi tremendamente importante! Por mais excessos que se cometeram/cometam, os ideais e ideologias que moveram esses grupos foram muito importantes - socialmente, artisticamente, politicamente...

Concordo que a liberdade derivou para uma "liberdadezinha", cega, sem gravidade, nem profundidade.

Os distúrbios alimentares são um excelente exemplo desse falso controlo, dessa pretensa liberdade que as mulheres se regozijam em ter...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Tempos contraditórios os nossos! Umas engordam e submetem-se a tratamentos radicais para perder peso, outras emagrecem até morrer! E tudo isto porque as pessoas não conseguem ultrapassar a sua condição metabolicamente reduzida. Para elas, ser livre é comer, comer e comer, seja o que for. Doença: Obesidade! puf ;)

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O exemplo das medusas era giro: somos responsáveis pela sua proliferação fatal. Regressão aos oceanos primordiais! E nem sabemos combater as suas toxinas letais... Fatalismo? Talvez realismo...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

A Papillon já reparou que as pessoas só "reagem" quando sentem os "textículos" apertados? Não se debatem os assuntos de forma altruísta! Sintomático.

E. A. disse...

Teve a ver o programa da rtp2! Eu estava a ver o Mezzo.

A anorexia é uma coisa terrível. Perturba-me ainda mais do que a obesidade! Aliás, a obesidade por si, n representa necessariamente uma perturbação psiquiátrica, mas acho que os pais deveriam ter atenção. Ser gordo, além de inestético e perigoso para a saúde, é uma ofensa aos milhões que passam fome. Devemos ser mais frugais e conscientes a comer.

Eu tenho fé no Homem, como já disse, por outras vezes. Se hoje n temos o antídoto para a invasão de medusas, amanhã teremos. :)

Claro, as pessoas só discutem aquilo que lhes interessa e que o seu raio de visão consegue chegar, que geralmente é até ao seu umbigo. (porque umbigo todos temos e testículos não).

Manuel Rocha disse...

Eu tenho uma questão recorrente e ainda não esclarecida quando me deparo com este género de estudos: como é que se constroem estas amostras? E outra ainda: com que critérios de representatividade?

Agora vamos rir um pouco...

Os meus primeiros trabalhos de campo de estatistica foram feitos em horticultura, para determinar respostas à fertilização azotada de tomate para indústria. Ora depois do recurso às tabelas de númerosa casuais para determinar quais as linha e a posição das plantas na linhas, cujos tomates nascidos na segunda inserção floral iriam ser medidos, é que se passava uma semana de cócoras a fazer o trabalho de levantamento de dados. Na área das sociologias, as experiências que tive limitavam-se a "avaliar" o que "estava à mão" deixando de parte o rigor que o Moral impunha na definição da amostragem, sob pena de se ficar sem "clientes" e sem dados...

Resumindo...não consigo imaginar quem usa piercings alinhado regularmente num campo como tomateiros...portanto, como raio se constroem estas amostras ?!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Manuel

Existem todos os tipos de amostragem e muito estudos que refiro recorrem a arquivos fabulosos que acumulam informação através dos anos (largas dezenas).
Mas a escolha do tipo de amostragem também depende do desenho experimental: por exemplo, os estudos que referi a propósito dos transexuais não precisam de amostragens probabilísticas.
O meu problema é a possibilidade de transformação do homem: os "tomates" colocam problemas mas o maior problema é o próprio homem.

Papillon

Sim, por isso escrevi "testículos" com "x", dizendo "textículos"...

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Quanto aos testes estatísticos utilizados, são extremamente complexos. Não falo disso porque o blogger não permite usar equações e outra simbologia. Da outra maneira, dá muito trabalho! :(

Manuel Rocha disse...

Pois...

Conta-se que o Ary dos Santos quando lhe faltava a rima também recorria à "horta"...

:))

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Esse Ary já morreu, suponho! Não sabia que era "alternativo"! Pena não estar entre os vivos: a sua "horta" poderia ser útil à pesquisa! :))

Manuel Rocha disse...

Por Toutatis, não quero que traga as fórmulas para aqui, mas se deixar por aí um link de estatistica para estudos deste género até sou capaz de passar por lá ...

O caso é que o que tenho visto de métodos quantitativos em ciências sociais, se exceptuarmos a demografia, acabam por nunca ser esclarecedores na definição dos intervalos de confiança da amostra e na sua determinação.

Repare..não estou a colocar em causa as conclusões do post...é uma questão lateral.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Sim, percebi. Mas se o blogger possibilitasse editar tabelas era mais fácil expor os resultados. Neste caso, podia ter apresentado mais dados "resumidos" desse modo. Converter tudo em imagem dá muito trabalho.
Os centros de pesquisa fornecem esse material ou mesmo o software. As revistas de estatística tratam desses problemas: recebo algumas mas é difícil acompanhar tudo. Alguns dos estudos aqui citados recorreram à epidemiologia: estudos de coorte.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Não tem assinatura institucional com grandes editores online? Eu recebo os artigos via email, além de consultar os sites com password.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ou bancos de dados! Alguns facultam dados que podem ser analisados, meta-analisados, etc...

E. A. disse...

Gostaria de acrescentar algo.

Quando fala da falsa liberdade que a banalização do sexo trouxe, relaciono imediatamente com o défice enorme de erotismo, sedução, cortesia. Os D. Juan(s) desapareceram, as mulheres misteriosas também. Está tudo desvelado, tudo à vista. E quanto mais idade se tem, pior - menos feitiço há.
Perdeu-se o passo mais importante dos preliminares: o mental. Toda a gente faz muito sexo, mas é muito sintético e maquinal.

Sou pela revolução das mentes, até pelo sexo de melhor qualidade!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

O "Mental" foi capturado! :(

E. A. disse...

Viva o novo erotismo! Viva Stendhal!

:)))