Num texto anterior, «Karl Marx, o Filósofo da Pobreza», retomei a análise de Hannah Arendt sobre a revolução, para apresentar a filosofia de Marx como uma filosofia política da pobreza. Ao afirmarmos que a filosofia de Marx pode ser lida como uma filosofia política da pobreza, abandonamos a teoria do proletariado e da sua missão histórica, brilhantemente elaborada por Georg Lukács e com a aprovação de Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre, e damos início a uma nova leitura de Marx. Esta leitura pretende apurar o seu contributo para a construção de uma democracia real, num mundo cada vez mais global e cada vez mais desigual.
As relações de Hannah Arendt com o marxismo são ambíguas: critica severamente algumas teses de Marx, ao mesmo tempo que o admira. A sua suspeita de que a «questão social» solapou a «questão da liberdade» no pensamento de Marx merece atenção, mas, na vida real das pessoas, as duas questões estão intimamente relacionadas, a menos que se tolere a «democracia predatória» que predomina nas actuais sociedades ocidentais. A distância da Filosofia em relação à Política dá-lhe autoridade para lembrar aos que fazem política, sobretudo em nome do socialismo, que a liberdade e a pobreza são incompatíveis, sobretudo quando se trata da «liberdade de uns poucos» e da «pobreza de muitos». Reduzir o acesso à esfera pública a poucos que usam e abusam do poder político para satisfazer interesses privados não é um procedimento democrático.
O conceito de pobreza apresentado por Hannah Arendt não é muito diferente daquele elaborado por Marx:
«A pobreza é mais do que a privação, é um estado de constante necessidade e de miséria aguda cuja ignomínia consiste na sua força desumanizante; a pobreza é abjecta porque coloca os homens sob a ditadura absoluta dos seus corpos, isto é, sob a ditadura absoluta da necessidade tal como todos os homens a conhecem a partir da sua mais íntima experiência e independentemente de todas as especulações».
Marx, «o maior teórico que as revoluções jamais tiveram» (H. Arendt), viu que a liberdade e a pobreza eram incompatíveis e que a pobreza pode ser, em determinadas situações sociais, uma arma ou força política de primeira ordem, porque é «o resultado da exploração de uma "classe dominante", a qual está de posse dos meios de violência» física e sobretudo ideológica, como demonstrou Althusser. Creio que o pensamento de Marx pode ser recuperado sem lhe atribuir «a doutrina mais perniciosa da idade moderna, ou seja, que a vida é o bem supremo e que o processo vital da sociedade é o verdadeiro centro do esforço humano». Com efeito, os seus textos de Juventude ou mesmo da maturidade não apontam na direcção de uma «sociedade de consumidores». A liberdade e a democracia ocupam papéis de destaque no pensamento de Marx, de resto o maior admirador das obras revolucionárias da burguesia («Manifesto do Partido Comunista»). O que diferencia a concepção marxista da democracia da concepção «liberal» é o facto de Marx desejar realizar uma democracia real. Sem resolver previamente o problema da pobreza, falar de liberdade e de democracia é pura hipocrisia. A existência da pobreza invalida a democracia e torna o pobre escravo da necessidade: a privação material determina e implica necessariamente outras formas de exclusão, em particular a exclusão política.
Embora possa ser visto como uma «fenómeno social total» (Marcel Mauss), o fenómeno da pobreza é, em última análise, um fenómeno económico, resultante da exploração do homem pelo homem. É, por isso, que a pobreza não pode ser eliminada com «políticas da nutrição», ou seja, por instituições que alimentam os pobres, sem os livrar da pobreza. Marx nunca defendeu uma tal política metabolicamente reduzida: alimentar os pobres e vesti-los. O objectivo da política de Marx é abolir realmente a pobreza, ou melhor, as pobrezas, mediante reformas económicas estruturais, acompanhadas por outras reformas sociais, políticas, educacionais e culturais. Aqueles que encaram a pobreza como mera «privação material» tendem a responsabilizar os pobres pela sua pobreza e a ilibar a consciência dos que enriquecem à custa da produção da pobreza. Eles reduzem a pobreza a um problema técnico, que procuram resolver com uma «política de nutrição». Ora, esta política metabolicamente reduzida não é a de Marx, mas a daqueles que usam a esfera pública para defender os seus interesses privados. Aliás, com uma mão alimentam esporadicamente os pobres e com a outra sobrecarregam-nos com impostos. Uma política verdadeiramente socialista ou social-democrata deve ter como prioridade eliminar as condições económicas que favorecem a existência e o agravamento da pobreza, porque, ao contrário do que se afirma, a análise marxista da luta de classes e do poder político não foi superada, embora deva ser revista e adaptada às transformações sociais ocorridas: ela deve ser utilizada para denunciar o uso e abuso do poder, em nome da democracia, para monopolizar todos os aparelhos de Estado, incluindo os ideológicos, colocando-os ao serviço dos interesses privados das novas classes políticas que o partilham com os detentores do poder económico. Estas novas classes de políticos corruptos e seus associados são os coveiros da democracia e das liberdades que dizem defender, que, tal como a nobreza e a realeza do Antigo Regime, falam em «direitos adquiridos» que desejam ver legitimados pela autoridade religiosa. Ao contrário dos USA, a Europa nunca se libertou da autoridade do Antigo Regime: os cidadãos nunca foram iguais perante a lei. É, por isso, que tenho falado de «democracia feudal» ou mesmo «fascista». J Francisco Saraiva de Sousa
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