Os meus amigos online que não me conhecem offline devem estar a pensar que sou marxista, como se ser marxista fosse um pecado. Isto faz-me lembrar um professor de história que me disse que era «marxista por acidente». Ele via-me como um «burguês» (sic: sou mais elitista do que burguês!) inteligente e intelectualmente forte, forçado a admitir a «força da verdade» do materialismo histórico, mas não muito empenhado pela chamada luta política do proletariado. A verdade é que eu continuo a pesquisar e ele converteu-se num funcionário público que aguarda a segurança da sua reforma. Os homens de Esquerda, sobretudo aqueles que viveram o 25 de Abril, são actualmente homens resignados e profundamente conservadores, muito semelhantes aos «carrascos» que denunciaram durante o processo revolucionário. Mas o meu professor de história, embora fosse relativamente inteligente, nunca se apercebeu que eu fazia outras leituras: lia John Stuart Mill e Alexis de Tocqueville, lia Max Weber e Émile Durkheim, lia Raymond Aron e Oswald Spengler, enfim até já tinha lido Hitler. Contudo, como ele era «marxista adulterado», lia mais os marxistas, nomeadamente Maurice Dobb e Paul Sweezy, Ernst Mandel e Paul Baran, Oskar Lange e Joan Robinson, Murray Wolfson e Robert L. Heilbroner, para o confrontar e testar no seu próprio terreno e mostrar que a sua leitura de Marx era muito redutora e economicista, ao mesmo tempo que recorria a outros autores liberais e marxistas para defender o indivíduo e restituir-lhe a liberdade. No máximo, o meu suposto marxismo era profundamente liberal e um pouquito individualista, mas não teoricamente humanista, tal como tinha aprendido com Althusser ou mesmo Adorno. Entende-se agora o sentido da expressão «marxista por acidente». Liberalismo e justiça social dificilmente casavam na cabeça do meu professor. Mal ele sabia que lia Sombart e Schumpeter e... tudo o que me atraia. Numa escola «vermelha», tinha de ser «maquiavélico» mas sem perder a minha identidade pessoal e teórica. John Stuart Mill, o pai do liberalismo político, alertava-me para a defesa da minha liberdade e individualidade contra a tirania da maioria situada mais a esquerda do PCP. Herbert Marcuse ensinava-me a ser rebelde: uma subjectividade rebelde que, embora dissidente, sabia conjugar individualidade, liberdade e justiça social. A frequência desta literatura diversa, aliada a minha pequena luta pela sobrevivência num meio hostil e mesquinho, protegeu-me sempre do dogmatismo e fez de mim um homem liberto, sempre pronto a questionar e a aprender. No fundo, estou agradecido aos meus eternos «inimigos» que tudo fizeram e ainda fazem para apagar a minha estrela, mas sem sucesso: fornecem-lhe sempre mais hidrogénio... Pensando neste episódio biográfico, e uma vez que já o accionei, com sucesso momentâneo, num seminário com uma turma de alunos que odiavam visceralmente o pensamento crítico, convido-vos a ler atentamente o «Ensaio sobre a Liberdade» de Stuart Mill, porque, se o tivessem lido e assimilado, não diriam as asneiras ditas aquando da publicação das figuras de Maomé e da liberdade de expressão. A propósito, conheci Maomé pela via dos grandes filósofos, de Schopenhauer a Weber, passando por Hegel e Marx. Spengler e Henri Pirenne abriram-me ainda mais os olhos. É recompensador ser filósofo e cientista atento à realidade em devir, mesmo quando se caminha sozinho num deserto, o da sociedade metabolicamente reduzida... J Francisco Saraiva de Sousa
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