Ortega y Gasset é, provavelmente, o filósofo espanhol mais conhecido mundialmente e, apesar da Espanha ser nossa vizinha e partilhar connosco uma história de lutas e de amores, os portugueses nunca leram seriamente a obra de Ortega y Gasset, que, no seu tempo, soube impor-se através dos meios de comunicação escrita, quando os jornalistas faziam jornalismo sem pretensões intelectuais ilegítimas. E, mesmo quando é mencionado, os portugueses fazem-no por pensar erradamente que o seu pensamento é acessível e de fácil assimilação. No entanto, apesar da linguagem clara de Ortega y Gasset, as análises nacionais mostram-se, tal como sucede com a «apropriação» dos pensadores portugueses, incapazes de compreender a filosofia deste ilustre filósofo espanhol. Esta incapacidade nacional de pensar com conceitos revela o estado da cultura e do ensino nacionais e a razão de ser desta situação desgraçada: o sistema da luso-corrupção que também escolhe e dirige «quem ensina o quê aos portugueses, de modo a que estes continuem atrasados e a-críticos».
«La Rebelión de las Masas», obra que está por detrás da elaboração do conceito de «indústria cultural» (Horkheimer & Adorno), «La deshumanización del Arte» e «Que es Filosofia?» são obras de Ortega y Gasset editadas recentemente em português, relativamente conhecidas, mas raramente lidas e bem compreendidas. As elites nacionais falam muito da política da leitura e da necessidade da leitura, acusando os portugueses, entenda-se a ralé, de não terem hábitos de leitura, mas a verdade é que o mau exemplo parte delas: se elas lessem, compreendessem e ensinassem, os portugueses seriam mais cultivados e, depressa, compreenderiam que o que está mal em Portugal e que bloqueia o seu desenvolvimento são precisamente as elites organizadas em máfias envolvidas na teia da luso-corrupção que engorda à custa da esmagadora maioria dos portugueses.
Até aqui o meu discurso tem sido muito democrático e este tom democrático parece não estar em consonância com o estilo aristocrático de Ortega y Gasset. De facto, politicamente falando, pertencemos a «famílias» políticas muito diferentes, mas, apesar de reconhecer e criticar o conservadorismo de Ortega y Gasset, admiro a sua obra, com a qual entrei em contacto, na sua própria língua, desde praticamente bebé, como costumo dizer quando desejo destacar a minha «autoridade biológica». Ao ler Ortega y Gasset devemos ter esse cuidado: analisar as suas teses filosóficas à luz dos seus potenciais efeitos ideológicos e políticos e «apropriarmo-nos» dos conceitos filosófica e cientificamente relevantes, transformando-os em conceitos mais democráticos e descontaminados de conservadorismo.
Ora, um conjunto desses conceitos pertinentes encontra-se numa obra relativamente ignorada ou, pelo menos, silenciada de Ortega y Gasset: «Hombre y la Gente» (2 volumes na edição espanhola que possuo/Revista de Occidente).
«Hombre y la Gente» é uma obra de antropologia filosófica elaborada contra as ciências sociais e humanas, nomeadamente a sociologia e a linguística. A antropologia de Ortega y Gasset é essencialmente «sociológica», ou melhor, expõe uma teoria da sociedade mediada linguisticamente. Esta formulação é intencionalmente provocante, mas capta efectivamente a originalidade de Ortega y Gasset que reivindica «una nueva linguística»:
«Resulta, pues, vivimos, desde que vemos la luz, sumergidos en un océano de usos, que estos son la primera y más fuerte realidad con que nos encontramos: son sensu stricto nuestro contorno o mundo social, son la sociedad en que vivimos. Al través de ese mundo social o de usos, vemos el mundo de los hombres y de las cosas, vemos el Universo».
A partir daqui Ortega y Gasset elabora uma teoria que sabe traçar as linhas de demarcação entre as suas teses e as defendidas por outros, abrindo as portas à teoria da comunicação, enraizada no «decir de la gente» (opinião pública). De certo modo, esta obra procura fundamentar o seu pensamento político, exposto na obra «La Rebelión de las Masas». Mas onde fica o seu conservadorismo? A releitura permite neutralizá-lo, aliás já o neutralizámos quando responsabilizámos as pseudo-elites nacionais pelo estado de ofuscamento e de miséria nacionais, e com a ajuda de Ortega y Gasset:
«Conviene que el intelectual no crea demasiado en sí mismo. Después de todo, lo más bello que hay en la inteligencia, lo que la distingue de otras calidades más toscas --- como la belleza física, la fuerza, la nobleza genealógica o el dinero ---, es que siempre es problemática. (...) El hombre inteligente ve constantemente a sus pies abierto e insondable el abismo de la estulticia. Por eso es inteligente: lo ve y retiene su pie cautelosamente».
J Francisco Saraiva de Sousa
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