O programa de Fátima Campos decorreu em frente da Basílica da Santíssima Trindade e contou, como já dissemos noutro post, com a participação de três bispos, o cardeal de Lisboa, o cardeal Saraiva do Vaticano e o bispo de Leiria-Fátima, e dois laicos, um agnóstico, racionalista e republicano (Mário Soares) e outro católico (Marcelo Rebelo de Sousa). Como seria de esperar, a base material do espírito, ou melhor, o espírito encarnado foi passada em branco, apesar das referências de Mário Soares e do cardeal Saraiva à pobreza e à necessidade de olhar pelos mais pobres, injustiçados, humildes e ofendidos. Inicialmente houve um certo atrito, centrado sobretudo no problema das capelanias, mas Mário Soares soube contorná-lo, com a ajuda de Marcelo Rebelo de Sousa: o carácter do Estado Laico, com a separação entre Estado e Igreja e a afirmação das liberdades religiosas garantidas por esse mesmo Estado foram aspectos que Mário Soares frisou bem e sem equívocos e, reconheço, desta vez sem embaraçar os ideais socialistas. É certo que os direitos humanos vieram à baila, bem como o personalismo de índole cristã. Mas o personalismo não é uma filosofia genuína, mas um conjunto de crenças ideológicas cristãs afirmadas para fazer face à Filosofia Marxista, esta sim uma verdadeira Filosofia, de resto a filosofia inultrapassável do nosso tempo, como disse Jean-Paul Sartre nos anos 60. Quando se debateu a Tratado Reformador Europeu, voltou à baila a referência das raízes hebraico-cristãs do Ocidente, mas Mário Soares soube afirmar o valor superior da laicidade que, na verdade, possibilita a gestão das liberdades religiosas plurais sem guerras entre religiões num Estado de Direito que garante os princípios democráticos fundamentais. Num país plural, o Estado deve saber garantir a liberdade religiosa, sem privilegiar uma em detrimento de outras, embora possa manter relações mais importantes com aquelas confissões que respeitam o jogo das regras democráticas. em particular as cristãs. É evidente que o berço da nossa civilização ocidental encontra-se na Grécia, da qual herdámos a racionalidade, portanto a Filosofia e a «ciência», e a democracia, herança conservada pelos romanos e, em diálogo com a qual o cristianismo «estranho» se helenizou e foi como cristianismo helenizado que influenciou a nossa civilização ocidental, a matriz que possibilita falar de uma única cultura europeia, apesar das especificidades culturais nacionais. O islamismo não está na raiz da nossa cultura, como foi demonstrado claramente, entre outros, por Oswald Spengler. A leitura da mensagem de Fátima como mensagem da Paz é bem vinda e, se assim for, esperemos que faça o seu percurso mundial e que seja bem sucedida. Mas esta é uma versão politicamente correcta da mensagem de Fátima, que não invalida a análise científica e política que se fez ou possa vir ser feita sobre a construção social e ideológica desse fenómeno. Conforme demonstrou Althusser, o marxismo não é teoricamente um ateísmo, mas, nas suas análises, pode criticar a religião pelos seus efeitos negativos, insurgindo-se nomeadamente contra a sua participação política na esfera pública, porque a política, como demonstrou Hannah Arendt, não deve estar submetida a ideias a-políticas. A laicidade da política garante a democracia e o seu aprofundamento. De todos os cidadãos, os a-religiosos são aqueles que têm sabido manter um Estado Democrático que garante com imparcialidade a liberdade religiosa, o que já não pode ser dito dos tempos em que o poder religioso e o poder político se identificavam condenando os não-crentes à tortura e à morte. Mário Soares tem toda a razão ao dizer que a laicidade é o valor central da república e da democracia, sem o qual a defesa dos direitos humanos e o seu respeito não seriam possíveis, como se comprova nos regimes teocráticos islâmicos. J Francisco Saraiva de Sousa
3 comentários:
Deixei de referir um aspecto do debate que merece atenção: os bispos mostraram temer novo surto de anticlericalismo e Mário Soares confortou-os dizendo que não iria permitir tal coisa.
Francamente, não percebo esta atitude de Mário Soares: Julga-se dono ou o «padrinho» da democracia portuguesa? Uma democracia que, como foi lembrado no «Prós e contras» sobre a Guerra, «manchou a bandeira nacional», quando, sem fazer a descolonização, abandonou os portugueses à morte! Uma democracia que silenciou os espoliados do Ultramar e os combatentes! Uma democracia que pretende abafar a liberdade!
O papel da Igreja no atraso da sociedade portuguesa ainda não foi estudado, como se os historiadores e especialistas portugueses não tenham compreendido a tese de Max Weber, segundo a qual o protestantismo fomentou o espírito capitalista, pelo menos no Norte da Europa e nos USA.
Para mostrar a minha boa vontade, desafio os católicos ortodoxos a meditar no facto do paladino do princípio de tolerância religiosa, John Locke, ter dito que este não devia ser estendido aos católicos, porque estes eram e são intolerantes. Ou seja, a tolerância deve ser estendida a todos, excepto aos intolerantes, entre os quais Locke incluia os católicos. Mesmo que não se concorde com esta formulação do princípio de tolerância, o que importa reter é que um dos defensores da democracia liberal considerava os católicos como intolerantes e, portanto, como pessoas capazes de abolir as opiniões diferentes.
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